Artigo: O adivinho e o pessimista
O primeiro garante que mente mesmo quando acerta. O segundo, em algum momento, terá toda a razão. A ver
“O adivinho mente mesmo quando acerta.” Mais de uma vez – se minha memória for melhor do que minha antevisão – ouvi esse aviso de alguém que estava prestes a ler a minha sorte na borra do café. Era o modo, talvez, de contornar a interdição religiosa da prática e de se libertar da responsabilidade por tudo aquilo que, anunciado pela xícara, deixaria de se confirmar na realidade.
Ainda em relação à antecipação do futuro, tinha eu um chefe que não cansava de repetir: “O pessimista, em algum momento, terá inevitavelmente razão”.
Enquanto olho para essa borra de café amargo – não se pode ler a sorte naquele em que se pôs açúcar… – nesta xícara de 2017, não tendo qualquer contato com aqueles que, desde o mundo oculto, poderiam me sussurrar os segredos de Deus, queria muito poder contar uma bela mentira, ou melhor, muitas belas mentiras. Não para enganar, mas para fazer sorrir com esperança. Assim, quando se revelasse toda a falsidade de minhas previsões, ao mesmo tempo que descobririam a minha ignorância, lembrariam ainda assim desse momento de enlevo.
Queria dizer que acordaremos num Brasil de homens probos e de justiça social, em que as crianças não passam fome e ninguém dorme nas ruas, que a guerra na Síria terá acabado, que Trump se revelará um estadista de visão disposto à construção de uma ordem mundial justa e plural, que em todos os lugares os humanos verão nos outros humanos seus iguais em dignidade…
Contaria também, se pudesse, as maravilhas que se anunciam na vida de cada um de vocês, os amores, as riquezas, os sucessos. Não tanto por querer vender esperança, mas para aumentar as minhas chances de, mentindo, acertar ainda assim aqui e ali.
Mas temo ser desprovido de imaginação, e me lembro de ter aprendido ainda criança, quando confessei ao bilheteiro do cinema a minha pouca idade e perdi a chance de ver um filme que alguém pensou impróprio para mim, que a mentira não me vinha naturalmente.
Preciso lhes dizer então, não para estar certo como o pessimista, mas na esperança de errar muito, que em 2017 os refugiados continuarão a contar mais de 60 milhões e muitos deles tentarão travessias mortais, do Mediterrâneo e outros mares, e de tantos desertos, tantos muros; que Estado Islâmico, Boko Haram e congêneres continuarão a pensar como pensam e a agir como agem; que entre nós tantos continuarão sem saber como diferenciar esses muçulmanos de outros muçulmanos, entre o crime abjeto e a luta pela liberdade; que, na melhor das hipóteses, o Iraque, a Síria, a Líbia, o Iêmen serão países em maior ou menor medida destruídos e profundamente divididos; que na Europa a extrema direita estará cada vez melhor, obrigado; que Trump não será pior do que seria Hillary a não ser na medida em que será mais errático e imprevisível; que aqui no Brasil, assim como outros, nossos políticos continuarão a ser o que são e a fazer o que fazem; que teremos um presidente ilegítimo…; e, ah, sim, que a Palestina continuará ocupada.
Quando termina a leitura da xícara, temos sempre a oportunidade de fazer um desejo, pressionar o dedão contra o fundo e esperar que a borra agora transfigurada nos dê uma resposta específica.
Hum… Daqui já posso ver que, depois de alguns desvios, algum sofrimento, em duas ou três unidades de tempo, o seu desejo há de se realizar. Tenho certeza!
* Este texto faz parte do especial 2017 x 24 – visões, previsões, medos e esperanças da edição número 113 da Revista Brasileiros, onde articulistas e colaboradores foram convidados a pensarem sobre o que e o quanto podemos esperar – se é que podemos – para nosso País no próximo ano.
Publicado originalmente: na Revista Brasileiros