Artigo: Desmistificando o Islã - Fatalismo
No artigo anterior desta série Desmitificando o Islã (leia aqui), dissemos serem muitos no Ocidente, e entre nós no Brasil, aqueles que reduzem o Islã a poucas noções, entre as quais: fanatismo, fatalismo, poligamia. Lá discutimos o Fanatismo, aqui o Fatalismo e, futuramente, abordaremos a Poligamia.
O homem ocidental moderno caiu em tal niilismo que o distanciou muito do seu semelhante muçulmano. Este, o verdadeiro muçulmano, coloca-se diametralmente numa posição oposta à revolta e à contestação. O muçulmano tem consciência de ter sido criado por Deus, que nele soprou seu espírito e encarregou-o de ser seu testemunho, seu representante na terra, seu lugar tenente, seu vigário (em árabe: khalifa) neste mundo, e no homem depositou uma responsabilidade (no árabe: amána) e o ser humano ousou aceitá-la, tal como consta do Livro Sagrado quando diz: “Por certo, Nós expusemos a responsabilidade aos céus e à terra e às montanhas; então recusaram encarregar-se dela, e, dela, se atemorizaram, enquanto o ser humano encarregou-se dela. Por certo ele é muito injusto e muito ignorante” (Corão XXXIII:72).
Este depósito traz em seu bojo uma dúvida por depositar no homem a liberdade de escolha entre o bem e o mal, a verdade e o erro, a submissão e a revolta, entre o céu e o inferno.
Fatalismo é a doutrina que atribui tudo à fatalidade e não deixa nada ao livre arbítrio e a dúvida que o fatalismo traz é que o ser humano tem livre escolha em seus atos, mas isto não significa que ele não esteja inexoravelmente submetido ao que foi de conhecimento antecedente do Criador, o Deus abraâmico das três religiões monoteístas. Não há dúvida quanto a isto e o Corão e o Hadith (do árabe: conversação, narração do Profeta Muhammad) o confirmam, como veremos a seguir.
A predestinação está no Corão: “Dize: ‘Nada nos alcançará senão o que Deus nos prescreveu. Ele é nosso Protetor’. E que os crentes, então, confiem em Deus” (IX:51). Este versículo não diz que Deus mandou suas criaturas agirem desta ou daquela forma, Ele apenas oferece a sua proteção e o que Ele prescreveu foi aquilo que era do seu conhecimento primordial.
Já o Profeta disse a seus companheiros: “Entre vós, não há nenhum cujo lugar não tenha sido predestinado por Deus quer no céu ou quer no inferno”. Os companheiros disseram: “Oh Profeta de Deus, já que Deus decidiu com antecedência quais eram nossos lugares, podemos nós nos repousar sobe esta certeza e renunciar a nossos deveres religiosos e morais?” Muhammad respondeu: “Não, porque o justo empreenderá boas ações e obedecerá a Deus e que o maldoso cometerá más ações”. De fato, o Corão diz claramente: “Por certo, este Corão guia ao [caminho] mais reto e alvíssara aos crentes, que fazem as boas obras, que terão grande prêmio” (Corão: XVII:9) ou seja, confirmando as palavras do Profeta, as boas obras são premiadas e as más cobradas.
O resultado para o fiel é que cada um certamente achará que está entre os justos e procurará fazer o bem. Considerar O cumprimento de boas ações não pode ser considerado resignação e nem tampouco fatalismo e as más ações jamais poderão ser atribuídas ao desígnio divino.
O Corão é claro quando afirma: “Se bem fizerdes, bem fareis, a vós mesmos, e se mal fizerdes, será em prejuízo de vós mesmos” (Corão: XVII:7). É o livre arbítrio que terá suas recompensas ou castigos.
A noção de qadar (al-qadar: a fatalidade, a vontade de Deus) é um termo utilizado para designar o destino. Ele supõe e trás em si certo Livre Arbítrio (em árabe: al-machiät ul-hurra), como vimos acima nas palavras do Profeta Muhammad a seus companheiros, onde fica claro que há em qadar uma predestinação, mas ele trás também um sentido de medir ou decidir sobre quantidade e qualidade. O termo árabe é base para o qadar wa qadr que indicam as duas situações aplicadas pelo Islã: o fatalismo e o livre arbítrio.
Outra noção, a de maktub (do árabe: está escrito) não conflita com o que vimos acima, é nada mais que outra expressão na mesma direção.
No Islã, como também nas outras duas religiões monoteístas abraâmicas, Deus foi o Criador de tudo, inclusive obviamente dos humanos, e sendo Ele Omnisciente, Ele já sabia quando os criou as características que cada ser teria, como agiria e quais as consequências das ações do crente. Daí podendo ser deduzido que cada coisa que possa acontecer a uma pessoa é do conhecimento do criador e Ele conhece, sem relação ao tempo, o que acontecerá com o ser humano, sem que esta situação signifique que Deus manda alguém praticar o bem ou cometer o mal. A noção maktub, bastante conhecida no mundo não falante do árabe pode ser aplicada à de preguiça individual, à vontade de cometer o erro e querer atribuí-lo a outrem e nada tem com o com Deus, com seu Profeta ou com o Corão. Esta situação só serve de argumento para os inimigos do Islã e do muçulmano, pintando-o como entreguista, fatalista e acomodado. O muçulmano não deve rejeitar o Livre Arbítrio, a sua capacidade de ação e esquecer que ele, como criatura de Deus, trouxe consigo a faculdade da razão, sendo livre em escolher ações positivas ou negativas.
Fica assim evidente que o fatalismo, no Islã ou fora dele, tem limites e que todo ser humano deve evitar se entregar somente a ele; o ator é quem toma o caminho que escolher e é claro no Corão e no Hadith que Deus obviamente sabe o que vai acontecer, tanto sobre a ação quanto sobre sua a consequência.
José Farhat, cientista político e arabista, é diretor de Relações Internacionais do ICArabe.