Uma conversa sobre os costumes muçulmanos
por Áurea Santos e Marília Chaves
— Biçmillah-Irrahman-Irrahim (ou “Em nome de Deus, O Clemente, O Misericordioso”).
Antes de o Sheik Abdel Rázik pronunciar as palavras em árabe que acalmariam seu espírito e o preparariam para sua refeição, a molokhia (pronuncia-se molorréia) já estava servida à mesa da cozinha. Um prato verde, feito de uma erva que não existe no Brasil, mas foi trazida do Egito. Pode ser consumido como sopa ou servir de molho para acompanhar o pão sírio. Havia ainda carne assada com batata, batata cozida no molho de tomate, arroz branco, arroz misturado com um tipo bem fino de macarrão, tão fino que lembra um fio de cabelo, saladas de tomate, pepino, cebola, homus (pasta de grão de bico com gergelim), e também, especialmente para o Sheik, língua de boi, lógico, nada de porco. Estamos, afinal, em uma casa muçulmana.
O almoço já estava sendo preparado desde cedo. Suma costuma deixar comida de um dia para o outro, mas como haveria visitas, o Sheik pediu para que comida fresca fosse preparada. De estatura mediana, longos cabelos negros e pele morena, típica das mulheres árabes, ela nos recebe com um largo sorriso, ainda de pijamas, no topo da escada que leva a sua casa, localizada exatamente em cima da Mesquita Brasil, no Cambuci, zona sul de São Paulo, a primeira mesquita da América Latina, inaugurada em 1956.
Da sala já era possível ouvir o barulho das panelas. Curiosas para saber o que estava sendo cozinhado, deixamos as bolsas no sofá e nos sentamos à mesa da cozinha. Enquanto tentamos estabelecer uma conversa que pudesse ser entendida por todas — já que Suma não entende tudo em português, e nós, o máximo que sabemos de árabe é uma palavra ou outra — ela nos serve amêndoas, castanhas de caju, maamouls (doce feito de massa branca que pode ser recheado com tâmara, pistache ou amendoim) e chá preto.
Ao mesmo tempo em que mexe no fogão, ela observa o pequeno Ahmed, de 3 anos, que de cima de uma poltrona nos olha com curiosidade e timidez. Naquele momento, só os dois estavam na casa de cinco cômodos. O Sheik estava na mesquita preparando o sermão de sexta-feira, o dia sagrado para todos os seguidores do Islã, em que a mesquita costuma ficar cheia de homens e algumas mulheres que vão orar e ouvir as palavras do Corão, o livro sagrado desta religião. O número maior de homens é devido à obrigatoriedade da presença deles neste dia, o que para as mulheres é facultativo. O filho mais velho do casal, Mohammad, de 9 anos, também não estava, só chegaria da escola depois das 15h.
“Querem ouvir música árabe?”, pergunta Suma. Aceitamos. Ela, então, põe uma fita no rádio em cima da geladeira, e uma voz grossa começa a cantar uma música que, misturada aos sons dos instrumentos, nos dá uma vontade enorme de sair dançando.
“Ele diz: ‘Mamãe, sinto muito sua falta’. Tenho vontade de chorar”. Ao vermos a emoção de Suma quando traduz esse trecho da música, imaginamos o quanto ela sente a falta da família que ficou no Egito, seus três irmãos e quatro irmãs, já que é a primeira vez que ela mora fora do país.
Ela, o Sheik Abdel e os filhos vieram para o Brasil há quase três anos. Recebem dinheiro da embaixada do Egito e encerram sua estadia no Brasil no final de junho. Atualmente, Suma faz só o trabalho de casa, mas no Egito é professora primária, alfabetiza surdos-mudos, e assim ajuda o marido a sustentar a casa. Ela explica que no Egito a vida é mais difícil, e com filhos fica tudo mais caro. Ahmed finalmente toma coragem e ensaia uma conversa conosco. Com fome, pede um pedaço de carne para a mãe.
— Gosta do Brasil? — perguntamos à Suma.
— Sim. As mulheres são inteligentes.
Ajudamos a enxugar a louça e a picar o alho. Enquanto Suma acaba de fazer a salada, o Sheik chega para almoçar. Ele então abre a porta e Ahmed faz uma festa para receber o pai. Em uma espécie de túnica listrada azul e branca, ele nos sorri, agradece a visita, senta e nos mostra o papel com o sermão da última oração. O título: “A Generosidade e a Qualidade”. Ele aponta o dedo para a palavra generosidade.
— Isso é uma coisa muito importante dentro do Islã. Ajudar um irmão que precisa.
Damos, então, uma olhada no resumo em português da oração feita toda em árabe pelo Sheik, e que sempre é lida em português no meio do culto para que os demais brasileiros possam acompanhar.
O Sheik ajuda Suma a colocar a mesa e explica que no islamismo o homem deve ajudar a esposa com as tarefas domésticas quando pode.
Ahmed come rápido e vai ver televisão, desenho da “TV Cultura”.
— Muito boa a comida, uma delícia!- elogiamos.
— Graças a Deus - Suma agradece e nota que deixamos um pouco no prato.
— Se não quiserem, não precisam comer tudo.
O Sheik observa:
— A mulher ocidental fica preocupada em manter a forma, ficar magrinha, mas, depois que casa fica assim (imita uma mulher muito gorda, e todos caem na risada).
Perguntamos se é costume seguir rigorosamente os horários das cinco orações diárias. Ela explica que, no caso da mulher, os horários não são rígidos.
— Deus não quer atrapalhar o trabalho da mulher. Quando ela termina o trabalho de casa, aí reza.
— Vocês vêm amanhã? - pergunta o Sheik (era uma quinta-feira).
Explicamos que não poderíamos ir até a mesquita, mas que tínhamos gostado muito das duas orações a que já havíamos assistido.
CONVERSA - Após o almoço, na sala, Suma coloca a bandeja sobre uma cadeira, servindo frutas e chá. Já passa de uma da tarde e a conversa continua.
A televisão transmite “O Homem e as Sete Filhas”. Novela também é sucesso no mundo árabe, revela o Sheik. “Quando dá a hora da novela, as pessoas se despedem e cada um entra em sua casa para assistir”.
Conversamos sobre casamento, namoro, amor, relação entre homens e mulheres. “Uma muçulmana não pode casar com um não-muçulmano. Outro dia na mesquita, um brasileiro veio me procurar. Uma muçulmana havia saído de casa e ido morar dez dias na casa dele. Fizeram coisa errada. Eu disse que não faria o casamento”.
O assunto passa, então, para os filhos. Ele explica que significam o amor. “Os filhos são o resultado do casamento. Você consegue imaginar seu estudo sem tirar o diploma? No casamento é a mesma coisa, se casa, tem que ter filhos. Os filhos trazem paz ao casal. Se não tem filhos, briga muito”.
Questionamos a questão da poligamia no Islã. “Se a mulher não pode ter filhos, o homem pode casar com outra que possa. Os filhos são muito importantes”. Suma concorda com o marido.
Já passa muito da hora da segunda oração do dia. Perguntamos se não estamos atrapalhando a hora da oração, eles respondem que não. Depois de um tempo, explicam que vão rezar e pedem para esperarmos um pouco.
Vão ao quarto buscar um lençol azul e Suma volta com um lenço na cabeça. Abdel troca de túnica, agora de cor cáqui com estampas pretas. Eles dobram e desdobram o lençol, escolhem um lugar da sala para ficar e o estendem com todo cuidado. Descalços, pisam em cima do lençol, fecham os olhos e iniciam a oração. Após algumas palavras proferidas pelo Sheik, Suma o acompanha. Parecem estar em um espaço à parte. Durante a oração, Ahmed brinca de desenhar conosco e fala sem parar. Depois, Suma explica que ele é muito novo para rezar.
O Sheik conversa mais um pouco e se retira para descansar, explicando que teve uma noite difícil, não dormiu direito.
Na novela, um travesti nos chama a atenção. Perguntamos a Suma se a religião permite. “Não, é proibido. Mostra na TV para poder falar sobre o problema”.
Há ainda a cena de um casamento. Os noivos, sentados, observam as alegres dançarinas a sua frente. Perguntamos se Suma sabe dançar. “Só um pouco. Elas dançam bem melhor que eu”.