Livro ‘Arquivos de prisão’ revela a perseguição ao casal promovida pelo Golpe de 64. Leia entrevista com o historiador Ricardo Machado, organizador da obra.
Lançado há dois meses pelo historiador Ricardo Machado, “Arquivos de prisão” (Editora Humana) faz um levantamento da perseguição sofrida pelo casal de intelectuais Eglê Malheiros (1928-2024) e Salim Miguel (1924-2016) durante o Golpe de 64. Na época, ambos já se destacavam como escritores em Santa Catarina, onde, por uma década, estiveram entre os editores da revista literária “Sul”.
Nascido no Líbano, no vilarejo de Kfarsaroun, em 30 de janeiro de 1924, Salim Miguel chegou ao Brasil aos 3 anos de idade, com os pais e duas irmãs menores. A família se radicou no interior de Santa Catarina, onde, inicialmente, Salim foi alfabetizado em árabe e alemão. Só aos 8 anos, quando se mudou para Biguaçu, perto de Florianópolis, o menino aprendeu a ler e escrever em português, o que não o impediu de se tornar um respeitado escritor brasileiro. Ou líbano-biguaçuense, como gostava de se apresentar, em referência à cidade onde viveu até a adolescência.
O casal continua uma referência para as novas gerações. Em 2024, foi lançado o documentário “Eglê” (direção de Adriane Canan) e celebrado o centenário de Salim, que está tendo sua obra completa reeditada pela EdUFSC (Editora da Universidade Federal de Santa Catarina). O livro “Arquivos de prisão” vem se somar a esse movimento, como explica nessa entrevista seu organizador, Ricardo Machado: “Me interesso especialmente por formas de escrita histórica que dialoguem com a história e a arte. Nos últimos anos, tenho trabalhado com projetos que combinam pesquisa sobre os arquivos, narrativas biográficas e experimentações gráficas. ‘Arquivos de prisão’ é uma síntese disso tudo. Gosto de pensar a História como um campo de montagem, capaz de reconstituir vidas e experiências esquecidas — ou deliberadamente apagadas — sem perder de vista as tensões políticas do presente.”
O que te levou ao projeto de “Arquivos de prisão”? Quando começou a pesquisa? Foi antes ou após a volta de Lula ao poder?
Ricardo Machado: Há tempos que me intriga o fato de as ditaduras latino-americanas terem produzido não apenas silêncios, mas também verdadeiras montanhas de papel — documentos que, paradoxalmente, registram com precisão a perseguição, a censura e a violência de Estado. A dimensão e a relevância desse acervo se revelaram para mim ainda durante a pesquisa de minha tese de doutorado, quando passei a acessar o site do projeto “Memórias Reveladas“. Criado em 2009, no segundo mandato de Lula, vinculado ao Ministério da Justiça, o projeto tornou público arquivos referentes de 1960 a 1980 e às lutas de resistência à ditadura militar. Através de acordos de cooperação entre diferentes arquivos de distintas regiões do país, foi possível digitalizar centenas de documentos e colocá-los e uma única plataforma de pesquisa. Isso mudou radicalmente a forma de se fazer pesquisas sobre o período. Ao explorar a plataforma, logo percebi que os nomes de Salim Miguel e Eglê Malheiros surgiam com frequência, compondo uma trama que, embora conhecida, carecia de um olhar mais aprofundado. Esse caminho me levou ao IDCH/UDESC, responsável tanto pela preservação do acervo da Ditadura em Santa Catarina quanto pelo acervo pessoal de Salim e Eglê. Desde então, venho me dedicando a pesquisar esse universo e a orientar estudantes em temas relacionados a história dos artistas e intelectuais de Santa Catarina.
Como tem sido a recepção? Há reações contrárias de setores conservadores?
RM: A recepção tem sido muito positiva entre estudantes, pesquisadores e pessoas comprometidas com a memória e os direitos humanos. Salim e Eglê possuem uma trajetória de grande relevância não apenas para o Brasil, mas, ouso dizer, para o próprio contexto latino-americano. O valor da obra literária e da atuação como articuladores culturais transcende, em muito, o episódio doloroso de sua prisão. Ainda assim, justamente por já serem figuras de destaque nos anos 1960, sua detenção expôs, de forma precoce e inequívoca, a face autoritária do regime, quando muitos ainda não compreendiam plenamente a dimensão do golpe que se instaurava.
Vejo o “Arquivos de prisão” como um alerta diante da persistência de práticas autoritárias em nosso país e de maneira especial em Santa Catarina. Até agora, as reações contrárias têm sido mais veladas do que explícitas: silêncios e desconforto que se percebe nos ambientes mais alinhados ao conservadorismo.
Quando você entrou em contato com a história do casal Eglê e Salim?
RM: Acho que comecei a prestar mais atenção em 2008, quando Salim e Eglê estiveram em Blumenau para lançar “Jornada com Rupert”, publicado naquele ano pela Editora Record. Eu já conhecia algo da obra de Salim, mas a experiência de ouvi-los naquela noite me marcou profundamente.
Hoje, embora já existam trabalhos acadêmicos importantes — como os de Regina Dalcastagnè e Natan Schmitz —, ainda vejo um amplo espaço para explorar a documentação disponível, especialmente após a recente doação do acervo da família ao IDCH. Embora “Arquivos de prisão” tenha como foco apresentar os documentos relativos aos eventos de 1964, procurei, de forma complementar, elaborar um perfil biográfico rigoroso de ambos, com base nas informações públicas existentes. Ainda assim, acredito que é o momento de pesquisadores se dedicarem com mais profundidade ao estudo desses papéis. Essas leituras podem abrir caminhos relevantes: no caso de Eglê, revelar a trajetória de uma intelectual de peso, militante comunista, cuja importância talvez tenha sido diminuída pelo machismo estrutural; no caso de Salim, oferecer novas interpretações de sua obra, marcada pelo uso constante de estratégias de ficcionalização de si mesmo. É um trabalho que ainda está por ser feito — e que, a meu ver, seria fundamental para a nossa História.
Como comparar a Santa Catarina dos anos 1960 com a da última década, quando o estado se tornou o que mais suporte deu ao bolsonarismo?
RM: A Santa Catarina dos anos 1960 era marcada por uma modernização conservadora: crescimento econômico e urbanização acompanhados de forte presença de elites agrárias e empresariais que defendiam uma ordem autoritária como garantia de estabilidade. Hoje, a paisagem mudou no concreto, mas não tanto no simbólico. O bolsonarismo encontrou aqui um terreno fértil: discursos anti-intelectuais, medo da mudança social e uma retórica de “ordem” que ecoa a de seis décadas atrás. O que mudou foi a velocidade e o alcance das redes que espalham essas ideias.
Após o fim da Segunda Guerra, o movimento cultural do Grupo Sul, sediado em Florianópolis, mas com conexões por todo o estado e diversas partes do Brasil (e fora também), inseriu Santa Catarina no mundo contemporâneo. Na época, aqueles jovens intelectuais já atuavam como um coletivo e em rede. Agora, com o mundo totalmente conectado (e controlado pelas big techs), a direita parece ser quem mais surfa na (des)informação. Como reagir?
RM: Quem tiver essa resposta encontrou um pote de ouro. É um tema complexo e que nos atravessa diariamente, sobretudo para quem, como eu, que decidi continuar vivendo em Santa Catarina. Mas, no meu entender, a trajetória de Salim e Eglê pode nos ajudar a iluminar parte dessa questão. Vejamos. De um lado, é possível traçar uma espécie de genealogia do pensamento reacionário na região, marcada por manifestações culturais que afirmam a branquitude como valor, associada a uma ideia de trabalho e progresso, e por expressões políticas vinculadas ao integralismo e ao nazismo. De outro, como demonstro no “Arquivos de prisão”, a articulação política do PCB no estado foi muito mais robusta do que se costuma imaginar. Em 1964, o partido mantinha o jornal “Folha Catarinense”, distribuído simultaneamente em várias regiões, além de contar com a gráfica Maria Quitéria e exercer forte influência na Livraria Anita Garibaldi — todos localizados nas imediações da Praça XV de Novembro, no coração da capital. Hoje, parece mais evidente que a própria ação modernizadora do grupo Sul, nos anos 1950, só foi possível graças à estreita ligação de muitos de seus integrantes com os comunistas, não apenas locais, mas também inseridos em redes internacionais de lutas anticoloniais, especialmente na América e na África. Isso nos ajuda a perceber que, para além de sua dimensão cultural, essa geração projetava visões de mundo que estavam em disputa. Era justamente contra isso que a ditadura reagia. Nessa forma de ver, a prisão de Salim e Eglê e a destruição da Livraria Anita Garibaldi foram parte essencial do plano de instaurar e consolidar o estado de exceção na região.
No meu entender, há hoje uma tendência de simplificar a história da região, associando-a quase automaticamente ao pensamento conservador, reforçado pelo fato de que, em algumas cidades, a adesão ao bolsonarismo foi majoritária. Parte do meu objetivo com este livro — e com outras pesquisas que venho desenvolvendo — é justamente questionar essa narrativa. Gostaria de mostrar que o passado se apresenta sempre de maneira mais complexa e que, talvez por isso, seja nossa tarefa trazer ao presente diferentes sonhos e projetos que foram soterrados, muitas vezes pela própria memória oficial.
Sobre Ricardo Machado: Nascido em 1982, em Ilhota (SC), passou a infância e juventude nas cidades de Blumenau e Jaraguá do Sul. Em 2004 licenciou-se em História pela Universidade Regional de Blumenau – FURB. No mesmo ano, iniciou o Mestrado no Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, concluindo sua dissertação em 2006 sob orientação da prof. Maria Bernardete Ramos Flores. Em diferentes escolas do Vale do Itajaí, atuou como professor de História pela rede municipal, estadual e privada. Entre 2006 e 2010 foi docente da FURB, atuando em diversas disciplinas. Desde 2012 é professor da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS, no curso de Licenciatura em História e no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas – PPGICH, desenvolvendo pesquisas e orientando trabalhos relacionados à História intelectual, arquivos, biografias e Teoria da História. Em 2016, na UFSC, defendeu sua tese de Doutorado O nomadismo de Félix Peyrallo Carbajal, publicada como Félix (2021) pela Editora Humana. Autor de artigos em revistas acadêmicas nacionais e internacionais, também publicou o livro Entre o público e o privado (Edifurb, 2008) e foi organizador dos livros Desterritorializações no vale, com André Voigt (Liquidificador, 2012) e Cultura escrita no Sul do Brasil: estudos de história intelectual e das correspondências, com Fernando Vojniak (Argos, 2021). Pela Editora Humana, coordena a coleção Biografemas, pela qual publicou Félix Peyrallo Carbajal: atlas poético (2023).
Links para o livro “Arquivos de prisão” e a Editora Humana: clique aqui e aqui.
Link para o livro “Primeiro de Abril: Narrativas da cadeia”, de Salim Miguel (acesse aqui).