Confira mais um verbete da série especial do ICArabe, dedicada a ampliar o conhecimento sobre o mundo árabe com profundidade e responsabilidade. A iniciativa reforça o compromisso da instituição com a promoção de informação qualificada e o combate a estereótipos, contribuindo para uma sociedade mais consciente e bem informada.
Acesse este link para conhecer todos os verbetes já publicados
Edward Saïd
Edward Saïd (1935-2003) é um pensador do exílio. “Metafísica da saudade”, ele é o dépaysement – sentimento do deslocado fora de lugar – comum àqueles na condição de desenraizamento forçado. Nascido em Jerusalém sob mandato britânico, lá viveu até os seus doze anos, em trânsitos familiares entre Jerusalém e o Cairo, no Egito. Em 1947, encontra-se na parte da Palestina que logo seria anexada por Israel na guerra de 1948, a partir da qual todos são forçados ao exílio. Quando, em 1951, seus pais retornam ao Oriente Médio, ele é levado aos Estados Unidos, onde, a partir de 1963, viria a ser professor de Literatura Inglesa e Comparada, na Universidade de Columbia. Lá desenvolveu sua obra literária, política e musical. Edward Saïd é, ainda, o intelectual engajado na questão palestina e também nos sofrimentos do exílio, o que realiza em total independência com respeito a organizações partidárias. Denunciou os acordos de Oslo de 1993 como o “Versailles palestino”, pois este tratado foi a capitulação que manteve a ocupação israelense em seu expansionismo territorial, ampliando a colonização e presença do exército.
Como acadêmico, compreendeu, no registro do Imperialismo e do “orientalismo”, as construções ficcionais de um Joseph Conrad (1857-1924). Autor polonês no “coração das trevas” do colonialismo extrativista e da violência do ocupante belga no Congo, o olhar do romancista é de estupor, em que se manifestam as representações de um mundo europeu que designa seus Outros segundo a lei do mais forte, em que a superioridade bélica e técnica considera culturas não europeias como inferiores e sem “civilização”.
Em livros como Orientalismo, Cultura e Imperialismo, a Questão Palestina e as Mídias, Os Intelectuais e o Poder, Paralelos e Paradoxos, Fora de Lugar e Reflexões sobre o exílio, Estilo Tardio entre outros, há a herança da cultura européia e do exílio. Cultura que se associa um duplo trauma, o do extermínio dos judeus da Europa sob o Nazismo na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o dos massacres e da expulsão dos palestinos de seu território e de suas casas antes e, ainda mais exacerbadamente, depois da criação do Estado de Israel em 1948.
Para Edward Saïd, que completaria 90 anos no dia 1º de novembro, o exílio, com o deslocamento compulsório de populações inteiras, é, simultaneamente, desenraizamento face a um mundo estranho, no qual se é acolhido ou hostilizado. Como viajante radical, o exilado não poderia viver uma epopéia, como Ulisses que retorna a Ítaca; por isso, deverá renomear o real, criando um novo pertencimento, ampliando seu próprio Eu, em um co-padecimento com os outros. E Saïd anota: “o que sinto agora, é o dilaceramento que afetou minha família e meus amigos, e que eu não sofri pessoalmente. Fui testemunha do ano de 1948 sem tê-lo conhecido[…]; eu via a dor e a perda nos rostos e nas vidas das pessoas que conheci. Mas eu não compreendia ainda a tragédia que as havia atingido.”(Out of Place, 1999).
Em meio ao colapso jurídico e político dos Direitos Humanos e do Direito Internacional no presente, Edward Saïd é a quintessência do humanismo, com o qual reabre o futuro. Com o pianista e maestro Daniel Baremboim, ele criou a orquestra de concerto Divã Oriental-Ocidental, aproximando músicos israelenses e árabes, pois encontra na música a possibilidade da paz que conjura a violência, o luto e as perdas, para a vida em comum em um espaço compartilhado.

Olgária Matos
Professora titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), onde realizou todos os seus estudos e carreira acadêmica. É também professora titular da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-Unifesp), em que criou o Departamento de Filosofia. É membro da Cátedra Edward de Estudos da Contemporaneidade da Unifesp. Autora de Benjaminianas: reflexões sobre o fetichismo moderno, Palíndromos Filosóficos: entre mito e história, entre outros.
