A Imagem do Eu de Ouro*

Seg, 05/06/2006 - 00:00

Havia certa vez um mercador chamado Abdul Malik...por Idries Shah * Havia certa vez um mercador chamado Abdul Malik. Era conhecido como o Homem Bom de Khorasan, por empregar parte de sua imensa fortuna em obras de caridade e festas para os pobres. Mas um dia ocorreu a Malik que todos os presentes até então dados por ele representavam apenas um mínimo do que possuía. Por outro lado, o prazer obtido em razão de sua generosidade significava muito mais do que o ato de desfazer-se dessa pequena parcela de sua riqueza. Mal esse pensamento cruzou-lhe a mente, decidiu doar até a última moeda para o bem da humanidade. E assim fez. Tão logo se desfez de todas as suas posses, disposto a enfrentar quaisquer tropeços que a vida pudesse ter reservado para ele, Abdul Malik viu, durante sua hora consagrada à meditação, uma estranha figura que dava a impressão de erguer-se do piso de seu quarto. Um homem foi tomando vulto diante de seus olhos, vestido com o manto de retalhos dos misteriosos dervixes. — 0h! Abdul Malik, homem generoso de Khorasan! — entoou a aparição — Eu sou o seu verdadeiro ser, o qual se tornou agora quase real a seus olhos porque você vem fazendo algo realmente caritativo, que num confronto com suas anteriores manifestações de bondade as transformam em quase nada. Por causa de sua atitude, e por ter podido desfazer-se de sua fortuna sem sentir qualquer vaidade pessoal, eu lhe oferto aquilo que é a verdadeira fonte da recompensa. Daqui em diante, eu aparecerei diante de você desta maneira, diariamente. Você me golpeará, e eu me converterei em ouro. Poderá dispor dessa imagem de ouro tanto quanto você venha a desejar. Não receie por mim, porque tudo que vier a tomar da minha imagem dourada será reposto a partir da fonte de todas as graças. E dizendo tais palavras, o estranho homem desapareceu. No dia seguinte, Abdul Malik estava sentado em companhia de um amigo, Bay-Akil, quando o espectro do dervixe começou a delinear-se. Abdul Malik o golpeou com uma vara, e a figura caiu ao chão, transformada em ouro. Abdul recolheu para si uma parte e deu um pouco do ouro ao seu convidado. Então Bay-Akil, que ignorava o ocorrido antes, ficou imaginando como tal maravilha poderia ser possível. Mas sabia que os dervixes eram dotados de estranhos poderes e concluiu que bastaria somente tocá-los para obter o ouro. Assim pensando, promoveu uma festa, à qual todo dervixe que dela ouvisse falar poderia comparecer e comer com abundância. Quando todos os presentes já haviam comido e bebido muito bem, Bay-Akil pegou uma barra de ferro, golpeando com ela todos os dervixes que se achavam ao seu alcance até vê-los cair prostrados no chão. Os dervixes que estavam ilesos prenderam então Bay-Akil e o levaram à presença do juiz. Relataram o ocorrido e mostraram ao magistrado os dervixes maltratados, como prova evidente. Aí, Bay-Akil contou o que se passara na casa de Abdul Malik, explicando as razões do estratagema de que se utilizara. Abdul Malik foi chamado a depor, mas no caminho para o Tribunal, seu eu áureo lhe sussurrou o que deveria dizer. — Com a permissão deste tribunal — começou Abdul Malik—, este homem parece ser um demente, ou então procura disfarçar alguma propensão a agredir pessoas sem motivo algum. Eu o conheço, mas sua história não está de acordo com a experiência pessoal que tive em minha casa. Bay-Akil foi então colocado num manicômio até que curasse sua anormalidade. Os dervixes feridos logo se recuperaram graças a um tratamento conhecido apenas por eles mesmos. E ninguém acreditou que algo tão espantoso como a transformação, diária ainda por cima, de um homem em estátua de ouro pudesse ocorrer. Por muitos anos, até que fosse levado para a companhia de seus antepassados, Abdul Malik continuou a romper a imagem que era ele mesmo, e a distribuir seus tesouros, que também eram ele mesmo, entre os que não podia ajudar senão materialmente. *"Histórias dos Dervixes", Ed.Nova Fronteira 1976