Bosque de Palmeiras

Qui, 13/04/2006 - 00:00
Aos 16 anos fui visitar a terra dos avós e sem nada saber sobre islamismo ou califado, conhecer a Grande Mesquita me deixou muda pelo resto dia. Certo é que o calor de Córdoba em julho não dá mesmo vontade de falar mas a mudez subseqüente à visita não estava na temperatura. O verão andaluz é acentuado em calor por receber os ventos quentes do Magreb, terra dos bérberes que destruíram "Madinat-al-Zahra'" . Averrois recomendaria água de cevada no calor mas nada me agradaria mais que um copo de "horchata de chufa". A Porta do Perdão, portal em estilo "mudéjar", dá acesso ao "Pátio de los Naranjos". O cheiro das árvores no pátio e o frescor dos desenhos de arcos sem fim me levaram pra longe. Os arcos e colunas pareciam se multiplicar e revelavam um labirinto no qual sabemos onde estamos. Perder é encontrar. E no meio do bosque de colunas, estancados, meus passos avistam uma sombra inacreditável: uma igreja católica erguida dentro da mesquita; a visão dos arcos em movimento desdobrado em harmonias foi bloqueada por um vulto escuro e dissonante. Em 1523, durante o reinado de Carlos V, levantou-se dentro da mesquita uma catedral. O susto é obvio para o visitante porque depois do mar de arcos, a visão da igreja é aberrante. O peso da catedral intrusa me emudeceu. O labirinto ficou sem norte. Encontrar é perder. Obreiros da arte cristã foram chamados para a construção e decoração do novo templo, que se prolongou por mais de 250 anos com o ouro e prata dos subterrâneos americanos. Trabalho artístico a considerar: a pintura de Palomino e o entalhe em madeira no coro, do sevilhano Pedro Duque Cornejo (século XVIII). Porém, o primor e a riqueza da igreja pesam menos que o interesse intrínseco de sua posição deslocada. Lembra-nos T.Burckhardt que "sem esse corpo estranho, a sala de pilares pareceria a um amplo bosque sagrado de palmeiras". Um oásis para abrigar o recolhimento. Seria a idéia original na concepção do magnífico edifício? Sendo ou não, a Grande Mesquita nos remete a um símbolo importante das culturas árabes: a tamareira, palmeira cujo fruto alimenta a gente do deserto, alusão à terra distante. Contam que a mesquita mais antiga de Medina tinha por pilares os troncos de palmeira. Ao visitar a Grande Mesquita, o Vaticano ou o "zócolo" na cidade do México, nos tornamos testemunhas das artes e deformações humanas. O governo da reconquista ainda construiu o palácio de Carlos V em Alhambra, queimou bibliotecas, expulsou árabes e judeus, perseguiu ciganos, índios e artistas, instalou a Inquisição para matar oficialmente. A união de forças dos novos estados lançou os ibéricos a conquistas de além-oceano: no século XVI foi fundada em Lima a primeira universidade latino-americana. E cá estamos nós, herdeiros de Montesuma e Peri, descendentes dos desbravadores do novo mundo, jesuítas, desterrados, aventureiros e cristãos novos da América Latina, contando histórias e quebrando a mudez para encontrar as perdas. O al Andaluz cruzou o Gibraltar e o Atlântico, e de alguma forma sobreviveu como Ab al Rahman I, que cultivou palmeiras para se sentir mais perto de Damasco. Contam que o árabe não vive sem uma palmeira. Trazendo o germe da mistura nos navios que acreditaram tê-la destruído, a cultura al andaluza portuguesa e espanhola aportou ao sul do Equador e se juntou às palmeiras brasileiras. Por isso os imigrantes sírios e libaneses se sentem em casa, poucos voltaram à terra de origem porque aqui plantaram um lar: "minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá" (Gonçalves Dias).