Órfãos de boa cepa

Qui, 08/10/2009 - 14:50
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Órfãos do Eldorado é uma prova de que fábula, realidade, gênero literário, lenda e originalidade de autor são, em mãos hábeis e gênio criativo, uma coisa só. Seria redutor, porém, atribuir a bem sucedida recepção da obra de Milton Hatoum pelo leitor em geral a uma ou duas dessas componentes. Desde Relato de um Certo Oriente, passando por Dois Irmãos, Cinzas do Norte e agora este Órfãos, todos obras premiadas, o que temos são escrituras decantadas, inter-referidas, que revelam sondagem de vários focos do humano, além de pesquisa e conhecimento buscado que confluem na concepção e na escritura do romance. Mas também na sua reescritura, na remodelagem de suas partes, afinal, um livro é apenas a parte visível de um longo processo, um processo poroso, que se deixa revelar pela leitura, como o rosto que na sua elocução deixa ver o interno do corpo e o invisível, ao olho, da alma que o move. É como um organismo o romance: vibra, expande-se, retrai-se, a toda vez que a leitura move as “artérias do lido”, estando o hálito leitor a animar as páginas antes fechadas na estante, na mesa, no móvel ao lado da cama. Hoje morando em São Paulo, com passagem por Paris, Madri e Nova York, o romancista de Manaus tem relatado mesmo é a saga do Norte brasileiro. Seus primeiros dois romances focaram o âmbito da família nortista de origem libanesa. Tal família pôde bem ser um retrato do Brasil miscigenado através de algumas de suas facetas; no entanto, desfocando na medida do possível o étnico, o autor tratou de temas atávicos que tocam a organização desse núcleo social como um todo: as relações de amor (mais ódio que amor) e ódio (mais amor que ódio). Temas caros como a disputa entre irmãos, ou a ruptura com os pais e irmãos em favor de novos enlaces do ser desta vez com o mundo, estão na base dessas narrativas, sublinhadas por um viés delimitador entre o masculino e o feminino, expostos na diversificada galeria das personagens. Tal delimitação, ao que parece, reforça os papéis dos sexos, concebidos no âmbito familiar e que lhe são a base de sustentação, enquanto organismo guardião das convenções sociais e ao mesmo tempo das espécies. Isso tudo, porém, não está no Relato ou no Dois Irmãos senão tomado no momento da crise: homens e mulheres fractos, feridos no estatuto da tradição que os dispõe, no estado como se encontram, na cena de conflito em meio às peripécias da narrativa. No terceiro romance, a intimidade dos pares da cena familiar é protagonizada no cenário mais amplo das ruas – da cidade, do estado, do país, do mundo. O exterior à casa é o tema propriamente de Cinzas do Norte, romance que se pode qualificar de histórico na melhor tradição de um gênero agora já híbrido, que amarra desde Balzac, Flaubert e Faulkner até Graciliano Ramos e Érico Veríssimo e os solta em nova malha, num romance cujo conflito mais sensível ainda é a relação pai e filho, mas a partir das posições que assumem diante um mundo que se confronta com o encolhimento das liberdades coletivas: a ditadura é também a do pai e das imposições feitas ao artista, mas também há a ditadura das economias autofágicas. Órfãos do Eldorado é um minuto posterior às narrativas citadas de Hatoum, mas as surpreende no tempo histórico da narrativa, indo a memória do narrador colher os fatos no tempo da primeira e da segunda guerras. O Eldorado, nesse ínterim, nos termos do mito manauara, reside na realidade subaquática de um mundo que apenas flutua na bacia sem fim das águas amazônicas. É para esse fundo que o imaginário das personagens conflui, com exceção do imaginário do protagonista e narrador do romance, que, ao contrário, olha o rio para ver o que está além dele e na sua superfície. É por isso incompreendido pelos demais habitantes do local: por não ter aceitado a versão do mito, por resistir a ele e buscar de forma tenaz uma explicação ao fenômeno que fosse menos lendária, da primeira até a última linha do livro. Nessa perspectiva, o dinheiro, que para o pai era um norte a ser conquistado, para o filho é a capacidade de ser trocado por espécies consumíveis. Filho único a decretar a morte de uma dinastia de empreendedores, o decaído Cordovil solapa o império aparentemente sólido do pai e do avô talvez por ter descoberto nele fragilidade tão semelhante quanto o é a fragilidade das explicações míticas em torno da cidade submersa de sonhada opulência. O romance também se coloca como um epílogo às narrativas do Norte empreendidas pelo autor desde a publicação do Relato em 1989. Vinte anos depois, Órfãos é o testemunho do que parece ter sobrado do Amazonas sonhado pelos aventureiros, metáfora de um “resto” que o autor formula, em sua fábula, na base concreta da casa de órfãs de Vila Bela, onde surgiu e sumiu a amada Dinaura – indo ao encontro do rio, como disseram as gentes, ou indo para além dele, como prefere pensar o narrador. O cenário, o tempo, as personagens, a locução do narrador neste romance de Milton Hatoum não devem ser entendidos, quero pensar, no âmbito único dessa forte narrativa, mas no de todas as anteriores, pois parecem tais órfãos rebentos de pais mais distantes. Livro mais breve, de fato narrativa de feição mais simples que as anteriores, embora talvez mais contundente, Órfãos do Eldorado é um livro que se lê de uma tirada. Terminado o livro, a sensação é a de ter-se cruzado uma eternidade: referenciais cruzados, texto alimentado por outros, passagens que aparentam fontes de outras literaturas, uma força que se amarra sobretudo pelo poético. Esta obra alça o reconhecido contador de estórias ao ranking de poeta maduro, que tem na palavra o poder de dispor os fatos, de levá-los até uma próxima estação.