Retrocesso no Iraque
O presidente dos EUA Barack Obama reservou algumas horas depois de sua recente visita à Turquia para ir a Bagdá com uma mensagem para o governo iraquiano do primeiro-ministro Nuri Al-Maliki: você agora é responsável por seu próprio país. A mensagem chega dois meses antes do prazo para a retirada das tropas de combate dos EUA das maiores cidades iraquianas, incluindo Bagdá, Mosul e Baquba, e quase um antes do fim das operações militares em agosto de 2010. No entanto, para alguns analistas iraquianos o recente aumento da violência em algumas cidades, incluindo Mosul, Bagdá e Kirkuk, levanta a questão de se o prazo de junho seria definitivo ou deveria ser mais flexível, dependendo da situação local. Para eles, a ressurgência da violência é uma síndrome da luta política interna entre o primeiro-ministro, e se credita a suas políticas desde 2008 se credita a diminuição do banho de sangue, e seus parceiros políticos.
Mosul ainda é uma incubadora de conflito. Mais de 25 mil militares iraquianos, apoiados pelas tropas de combate dos EUA, têm lutado contra lutadores da resistência xiita e sunita desde 2008. Pela primeira vez em 12 meses, cinco soldados dos EUA e dois policiais iraquianos foram mortos em uma explosão de bomba vinda de um caminhão, com outros 12 feridos. Em Kirkuk, 13 pessoas foram mortas e 22 feridas em explosão em uma instalação de petróleo que estavam guardando. Em Bagdá, 60 pessoas foram mortas em várias explosões em apenas duas semanas. A ressurgência da violência em tal escala é uma indicação de que Al-Maliki ainda está em desacordo com os curdos ao norte - que têm suas diferenças com seus co-habitantes árabes e turcomanos em Kirkuk -, os sunitas baathistas ao redor de Bagdá e alguns radicais xiitas em Mosul. Elementos desencantados dos 94 mil lutadores dos Conselhos do Despertar Sunita, que foram chaves na contenção dos ataques dos membros da Al-Qaeda e no asseguramento do sucesso das políticas de Al-Maliki para estabilizar a segurança, estão tornando-se uma crescente parte dos problemas para o primeiro-ministro. Eles estão furiosos com a detenção de alguns de seus mais proeminentes líderes, pois temem uma quebra do movimento que foi originalmente iniciado pelo comando dos Estados Unidos para lutar contra as forças da Al-Qaeda e, posteriormente, ficou sob responsabilidade do governo iraquiano. Os membros da Al-Sahwa (Despertar) e seus comandantes estão descontentes em relação ao atraso de pagamento e ao fracasso do governo em fazer bem cumprir a promessa de colocá-los em empregos da administração de altos salários.
O Governo Regional do Curdistão, liderado por Massoud Barzani, está também furioso pela falha de Al-Maliki fazer crescer as receitas da região, para permitir o retorno do que considera curdos deslocados a Kirkuk, e por bloquear as tentativas do governo do Curdistão de negociar contratos de petróleo de forma independente com companhias estrangeiras. Os curdos estão forçando um status semi-independente e Al-Maliki não parece querer cooperar. Acima de tudo, o primeiro-ministro resiste à pressão do Governo Iraquiano do Curdistão em tentar anexar ricas fontes de petróleo de Kirkuk à província, movimento que tem a oposição tanto de árabes quanto de turcomanos da região, o que pode prenunciar uma nova onda de violência. A tensão aumentou entre Al-Maliki e os líderes sunitas, particularmente o vice-presidente Tarek Al-Hashimi, por causa da detenção contínua de militantes sunitas, incluindo aqueles que foram libertados pelas forças dos EUA. A prisão de 15 líderes da brigada Al-Sahwa está provando ser um incômodo para o comando dos EUA, que observa a situação de perto. É preocupante que o acordo que deu base à criação dos Conselhos para destruir os combatentes da Al-Qaeda tenha sido desmanchado, com os militantes de ambos os partidos dando as mãos contra o governo e as tropas dos EUA. Estes estão ambos preocupados com a luta entre sunitas e xiitas pelo seu lugar no poder, a dança luxuriosa entre o Curdistão e o governo pelo petróleo, as implicações da ressurgência das milícias e a preocupação de que uma violência renovada possa perturbar o cronograma de retirada dos Estados Unidos.
Acima de tudo, a preocupação sobre o sectarismo e a polarização étnica, disparadas por seis anos de ocupação dos Estados Unidos e da resistência iraquiana, é o maior pesadelo para o futuro do Iraque. “O gênio está fora da garrafa”, diz o analista político iraquiano Ghassan Al-Atiya. Os iraquianos não estão apenas divididos por suas afiliações tribais e sectárias, mas também suas atitudes políticas são moldadas por tais lealdades. Quando o Iraque era secular, um Estado não-sectário, a imposta ideologia baathista manteve ideologias externas, fossem políticas ou sectárias, domadas. A nova cultura política introduzida pela invasão dos EUA irá residir entre os iraquianos nos próximos anos vindouros. É mais do que lealdade política; é proteção, sobrevivência e afinidade cultural. Quando a identidade sectária torna-se o meio de luta política e de autodefesa, geralmente há uma explosão de violência. Nenhuma quantidade de força vinda do governo central será capaz de contê-la, muito menos domesticá-la. A invasão dos EUA e os seis anos de ocupação, e as indescritíveis atrocidades que ambas dispararam,destroçou qualquer sendo de identidade de interesse entre os iraquianos. O problema é ainda pior com a militarização das facções do país; cada um possui um arsenal letal de armas e estão prontos e desejam usá-las contra outras facções, ou contra o governo, dado o sinal.
O legado de George W. Bush e de L. Paul Bremer III foi a substituição de um regime totalitário encabeçado por um ditador sem qualquer compaixão por um arremedo de democracia baseada em uma maioria sectária, que calhou de ser xiita. O Irã assistiu em silêncio na certeza de que a fruta madura cairia eventualmente em seu colo. E o Irã teocrático é pouco inclinado a usar sua influência para transformar o Iraque em uma democracia secular. Os vizinhos árabes estão até o pescoço em um estado de desordem sem qualquer esperança para organizar um esforço conjunto que poderia ajudar a reconstruir o Iraque em uma democracia consensual, especialmente quando neles mesmo ela falta.
Caso o Iraque seja engolfado pela violência depois que a retirada militar dos EUA esteja completa, em 2011, deve ser copiado o modelo libanês – um governo baseado em cotas sectárias e um equilíbrio consagrado em uma constituição. É um sistema instável, mas funciona sempre que um consenso é mantido e respeitado. O maior problema do Iraque será então bloquear interferências regionais e internacionais que podem ser convidadas por interesses conflitantes das partes locais, como é o caso no Líbano. O Iraque está provido de uma riqueza de recursos naturais necessária ao desenvolvimento organizado para reconstruir tudo que a invasão dos EUA destruiu. A chamada comunidade internacional, liderada pelos Estados Unidos e outros parceiros que são responsáveis pela invasão e destruição do país, deveriam cumprir sua obrigação nesse sentido. Para que isso aconteça, um ambiente de segurança e estabilidade terá que prevalecer, o que traz tudo de volta ao início.
Poderia parecer que os EUA estão primeiramente interessados em uma saída segura e ordenada do Iraque e, em segundo lugar, que nenhum ditador irromperá em cena para seguir os passos de Saddam Hussein. Por essas e outras razões os EUA deixarão para trás por volta de 50 mil tropas para ajudar a treinar as forças do Iraque e estabilizar a situação. No entanto, esta presença militar estrangeira pode provar ser a antítese de estabilidade. Será um casus belli para a Al-Qaeda e outras organizações com sentimentos anti-americanos; a reencarnação da agitação nacionalista do anos 1950 e 1960, da luta anticolonial, antipresença militar estrangeira. Dessa forma, tudo que a custosa invasão anglo-americana, oito anos de ocupação militar e dezenas de milhares de mortos e feridos teriam conquistado seria rebobinar o filme de volta ao golpe baathista de 1969.