O Poeta Rei na Mostra Mundo Árabe de Cinema, por Carlos Gomes

Qua, 04/09/2024 - 13:48
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Leia o depoimento do diretor Carlos Gomes, do filme "O Poeta Rei", que esteve no Brasil para o lançamento mundial da obra, em 1º de setembro de 2024, durante a 19ª Mostra Mundo Árabe de Cinema:

 

"No dia 12 de agosto de 2017, o espectáculo Al-Mu'tamid o Poeta Rei do Al-Andalus  viajou até ao Brasil, para uma apresentação única numa Sala São Paulo totalmente esgotada. Um concerto que creio ter ficado na memória de todos os que a ele assistiram, assim como na minha. Inesquecível!

É uma história particularmente bonita, que gostava de partilhar convosco.

Quando iniciei o projeto em 2014, pensei que seria incrível levar o espetáculo ao Brasil, porque intuía que seria especial dar a conhecer aos brasileiros esta outra história, em parte passada em território português, anterior às fronteiras de Portugal. Sonhei com a possibilidade de isso poder acontecer na Sala São Paulo, pela sua beleza e pela sua acústica.

Mas não tinha qualquer contacto em São Paulo e éramos 10 pessoas na comitiva, entre músicos, técnicos e eu. Então perguntei a uma amiga Brasileira, que vive em Brasília, de seu nome Patricia El-Moor, sobre quem ou que instituição poderia acolher o concerto no Brasil.

Foi ela que me falou pela primeira vez do ICARABE. Então eu escrevi um email para o ICArabe, assim, do nada, explicando o projeto e manifestando o desejo de levar o espetáculo ao outro lado do Atlântico. Os sonhos aparecem, não se sabe de onde surgem e qual a sua relação com a realidade...

Para minha surpresa, recebi rapidamente uma resposta entusiasmante por parte de uma pessoa, de seu nome Geraldo Campos, nesse momento, creio, diretor cultural do ICArabe, propondo uma vídeo-call para falarmos. Eu imaginava o Geraldo uma pessoa maior de idade, pelo menos mais velho do que eu (hoje é ele que me chama de “Meu Velho”) e estava preparado para explicar tudo direitinho outra vez. Quando estabelecemos a ligação e a câmara me deu a conhecer o Geraldo, qual não foi a minha surpresa ao perceber que era mais novo que eu, entusiasmadíssimo e com uma abertura total para a ideia de levarmos o projeto ao Brasil.

Em Portugal (não sei se aqui também), temos uma expressão que diz: “Nasceste com o rabo virado para a Lua”, exprimindo a sorte de uma pessoa ao longo da sua vida. Foi assim que me senti nesse dia. Era realmente difícil acreditar que tão rapidamente tivesse entrado em contacto com a pessoa e com a instituição certas, do outro lado do Atlântico, e logo com toda aquela boa energia. Parecia possível!  

O concerto reunia um conjunto de músicos de Portugal, Espanha e Marrocos, alguns deles presentes no filme que teve estreia mundial na Mostra, no sábado passado, e que fizeram belos arranjos para as poesias de Al Mutamid, cantadas em português, espanhol e árabe, num trânsito entre a música árabe e ibérica. Enquanto o concerto acontecia, eram exibidas imagens montadas a partir das recolhas para a “repérage” do filme (realizada em 2014) nos territórios onde a vida do poeta-rei teve lugar.

Depois de dois anos de trabalho, finalmente foi possível a apresentação do espetáculo como parte integrante da programação da 12ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, que nesse ano teve como tema: “Territórios que nos atravessam”. Deixo aqui as palavras do próprio Geraldo, nesse momento:

A sensação de conseguir trazer ao Brasil esse concerto, depois de tudo, foi a de um sonho partilhado e realizado, especialmente porque estou convencido de que se trata de parte das matrizes que formaram a música brasileira.

O espetáculo Al Mu’Tamid é um elo perfeito entre o tema de curadoria da Mostra Mundo Árabe de Cinema (“Territórios que nos atravessam”) e o tema da temporada 2017 da Osesp (“Mundo Maior”). Em um momento do mundo em que se começam a erguer de novo muros e barreiras, o espetáculo propõe a arte da afinação entre as culturas, com a disposição de construir pontes e ramificações. Sua característica mais potente reside justamente na capacidade de nos confundir. As imagens que eram projetadas, enquanto ouvíamos o repertório musical construído ao redor dos versos do rei-poeta do século XI, percorriam Portugal, Espanha e Marrocos. Ficamos completamente desorientados. A formação cultural prepara-nos para distinguirmos com clareza as fronteiras e limites. No espetáculo Al Mu’tamid, não havia raízes nem limites; havia uma estrada e havia vários caminhos. A continuidade sobrepunha-se às identidades. Não havia Oriente e Ocidente. Havia rotas. Éramos capturados, portanto, por traços quase imperceptíveis, mas que faziam ressoar em nós uma estranha familiaridade: linhas melódicas, uma forma de canto, um ritmo, uma paisagem visual e sonora. Subitamente, a sensação de desorientação dava lugar a um acolhedor sentido de encontro, éramos tragados por este “Mundo Maior”, que nos oferece não somente uma proposta estética, mas uma esperança política”.

Sei também pelo Geraldo que Silvia Antibas, da Câmara de Comércio Árabe Brasileira, foi determinante para a viabilização do concerto na Sala São Paulo. Quero pois agradecer-lhe, do fundo do meu coração árabe, esse abrir de portas, a partir do qual tantas outras possibilidades se concretizaram, até hoje, até à concretização do filme “O Poeta Rei”. 

O Poeta Rei é, dez anos depois de ter sido pensado, o fechar de um ciclo do projeto, que sempre foi pensado como um concerto e um filme. Um filme que nasce de um coração árabe, da formulação da possibilidade de uma determinada sensibilidade se identificar com um lugar/legado cultural, mais com um território do que com um país específico, mediando a relação com o outro através das paisagens-cenários comuns da nossa existência e da nossa cultura, com tempo, com calma, com tranquilidade, com amor.

Como puderam ver sábado no filme, no início das filmagens aconteceu uma coisa da ordem do premonitório e diria mesmo extra-sensorial, que foi aparecer-nos à frente, na estrada, integrado na paisagem de um dos lugares possíveis da vida de Al-Mutamid, um tractor, usado para trabalhar a terra, com a matrícula AL-18 -MU. Aconteceu mesmo, não foi encenado. Não há coincidências, há concordâncias do Universo que nos compete a nós interpretar e integrar. Como diz Ailton Krenak, “A vida é um entrelaçamento”. É o nosso trabalho, entrelaçar caminhos.

Passados agora 10 anos, na sociedade conflituosa e bipolar em que vivemos, espero que este filme possa ser premonitório de uma outra era do mundo. Um mundo onde a paz seja notícia, e a aventura do amor se sobreponha à desventura da guerra, cumprindo dez séculos depois os íntimos desejos do Poeta Rei.

Obrigado pois ao ICArabe, nas pessoas da sua direção atual, e em particular a Soraya Smaili e Natalia Calfat, por de novo acolher este projeto e apoiar a minha presença na Mostra Mundo Árabe de Cinema, à qual, na pessoa do seu diretor e curador, Arthur Jafet, agradeço imenso a programação do filme, entre tantos filmes maravilhosos vindos desse mundo onde eu me sinto em casa.

Foi um enorme prazer e uma honra ter estreado O Peta Rei na 19ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, em São Paulo."

 

Carlos Gomes

29 de agosto de 2024

Crédito da foto: Divulgação/Sesc