Novas batalhas de Argel

Sex, 25/11/2005 - 22:00
Nem tsunami nem Katrina: em novembro, a Europa – ou, mais particularmente, a França - foi sacudida por um vendaval bem mais previsível e pleno de conseqüências sociais e políticas, não originário das profundezas oceânicas, mas da miserável periferia parisiense. O estopim da revolta, protagonizada por adolescentes, foi aceso no dia 27 de outubro, quando dois garotos, de 15 e 17 anos, morreram eletrocutados dentro de um transformador de energia, quando fugiam da polícia, no subúrbio de Clichy-sous-Bois (nordeste de Paris). Ao menos 15 veículos foram incendiados nessa noite. Nas 48 horas seguintes, houve novos incêndios e atos de protesto contra a polícia. A brutal resposta do ministro do interior Nicolas Sarkozy, que se referiu aos revoltosos como 'escória' e ameaçou adotar a repressão policial com 'tolerância zero', colocou lenha na fogueira, que se alastrou para toda a França, ameaçando atingir também a Alemanha e a Bélgica. Quais as causas da revolta? Os jovens revoltosos não são imigrantes, mas franceses de pleno direito. São filhos e netos de árabes e africanos (principalmente, originários do Magreb), comunidades que, há décadas, sofrem o impacto do racismo e da segregação. Como observa o historiador Osvaldo Coggiola, da Universidade de São Paulo, com base em dados do Observatório Nacional de Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS) da França: 'O índice médio de desemprego em 2004 foi de 20,7% nos subúrbios, ou seja, o dobro do índice nacional. Entre os jovens de 15 a 25 anos, ele afeta 36% da população masculina e 40% da feminina. Esse índice é o dobro da média nacional nas banlieues das grandes cidades. E também dos estágios mal pagos, sem estabilidade nem perspectivas, do fracasso e da discriminação educacionais.' As 750 ZUS integram bairros deteriorados, edificados nos anos 60, nos quais 5 milhões de habitantes – dos 61 milhões da França – sobrevivem em edifícios de mais de nove andares, favelas verticais. Assim, se a crise social atinge a população francesa, em geral – e não foi outra a causa da rejeição nacional à aprovação da Constituição Européia, em julho -, para os jovens descendentes de árabes e africanos ela atinge contornos dramáticos. Mais ainda, por não se tratar de uma simples realidade econômica, mas sim de um fenômeno que tem dimensões psicológicas, culturais e políticas. Até hoje, os árabes e descendentes são vistos por uma boa parte dos franceses 'puros' através da lente do colonizador. As marcas deixadas pelas batalhas de Argel, que resultaram na expulsão dos pieds-noirs e na independência, em 1962, marcando o ocaso do antigo império, são ainda muito vivas na memória coletiva nacional. Apenas isso permite dimensionar o real impacto da recente ofensiva contra os jovens de origem árabe, impedidos de se vestirem de acordo com sua cultura ou religião na escola pública. Quando se considera que a França abriga 5 milhões de muçulmanos, e tem a maior população islâmica da Europa Ocidental, torna-se fácil imaginar que a medida foi como acender um fósforo num depósito de pólvora. Mas não se trata de um fenômeno unicamente francês. Nos últimos dias, vários intelectuais e líderes de todas as correntes ideológicas e políticas européias multiplicaram declarações temendo a multiplicação de revoltas semelhantes em outros países. Poucos idiotas cederam à tentação de atribuir a revolta a um suposto 'radicalismo islâmico', e mesmo estes foram obrigados a reconhecer que a extrema miséria estimula o extremismo. As receitas para 'curar o mal' também foram convergentes, exceto pelos xenófobos, como Le Pen, que gostariam de expulsar os estrangeiros e descendentes: é preciso integrar as comunidades segregadas. O problema é como conciliar tal proposta com o neoliberalismo e o mercado, que implicam a destruição dos mecanismos reguladores estatais, e a adoção de uma ideologia individualista e consumista. A França – e, por extensão, a Europa – enfrenta o dilema: ou opera uma tremenda reestruturação social e econômica, que lhe permita integrar os pobres e miseráveis, ou será obrigada a continuar tratando os subúrbios como território estrangeiro, habitados por alienígenas sem direito algum. Nesse caso, enfrentará novas batalhas de Argel.