Orientalismo ganha nova tradução para o português
Orientalismo, obra de Edward W. Said lançada nos EUA em 1978, é um clássico dos estudos culturais. É considerado por muitos o volume fundador dos estudos pós-coloniais. Inspirou correntes como os Estudos Subalternos. É também freqüentemente citado (mas muito pouco lido, é verdade) em cursos sérios de pós-graduação nas áreas de Letras, Antropologia, Ciência Política, Sociologia. Uma obra tão fundamental e influente ficou esgotada em língua portuguesa durante anos. Finalmente, em julho passado, a Companhia das Letras a relançou e com novidades. Depois de apelos de leitores inconformados, que podem ser vistos no site da própria editora, Orientalismo finalmente ressurgiu nas prateleiras das livrarias em novo formato, de bolso, o que lhe conferiu um preço mais módico e cabível para os tais alunos de pós. O livro ganhou uma nova tradução, feita por Rosaura Eichenberg, considerada menos “dura” que a anterior. A melhor novidade de todas, porém, foi a inclusão do prefácio escrito por Said para a edição comemorativa dos 25 anos da obra, publicado em 2003 pela Penguin, meses antes da morte do autor. O livro foi escrito entre 1976 e 1977 durante um ano sabático que o autor tirou do cargo de professor de Literatura Inglesa na Universidade de Colúmbia, em Nova York. Foi publicado sem grandes pretensões em 1978 pela Vintage. Provocou grandes discussões no meio acadêmico e até virou best-seller na Suécia. A obra foi traduzida para mais de 30 idiomas, do vietnamita ao hebraico. No Brasil, foi publicado somente em 1990, pela editora Companhia das Letras, sob o título Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. A obra original recebeu dois adendos posteriores do próprio autor. O primeiro deles foi escrito em 1994 e publicado como posfácio na edição de 1995 da Penguin Books. O segundo e último foi o prefácio de 2003. Na obra, Said se dedicou a um atento escrutínio de obras literárias inglesas e francesas dos séculos XVIII e XIX que retratavam o “oriental”. Mas, em sua análise, o autor de orientalismo foi além. Percebeu que os discursos elaboraram uma disciplina em que o Oriente não era um interlocutor do Ocidente, mas seu “Outro silencioso”. Said atacou a noção de Oriente (e também de Ocidente) propalada por intelectuais que descreveram árabes e muçulmanos, principalmente a partir do final do século XVIII. Orientalismo é definido pelo autor como sendo “um estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre ‘o Oriente’ e (a maior parte do tempo) ‘o Ocidente’”. Essa distinção foi feita através do uso de instituições, vocabulários e imagísticas através de elaboradas figuras retóricas em forma de discurso que deformaram os povos orientais. Said aponta que houve, principalmente em meios acadêmicos, a construção de uma fronteira fixa, que separa o “nós”, ocidentais, dos “outros”, orientais. Essa fronteira foi construída em cima da desqualificação do “outro”, criando-se estereótipos e preconceitos. A noção de Orientalismo é, ainda segundo o autor, uma “crítica multicultural do poder usando conhecimento para se favorecer”. Ele destaca a problemática da produção do conhecimento/saber, influenciado por Michel Foucault, como um dos pontos centrais de sua teoria. O argumento é que o conhecimento construído pelos orientalistas serviu como justificativa da dominação européia principalmente durante o período em que franceses e ingleses empreenderam seus projetos coloniais tanto na Ásia quanto na África. O autor assinala que tanto o colonialismo como o imperialismo não são simples atos de acumulação e aquisição. São também sustentados e provavelmente impelidos “por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios precisam e imploram pela dominação, bem como formas de conhecimento filiadas à dominação [...].” Ele cita como exemplo o pensamento oitocentista clássico, que cultivava conceitos como “raças servis” ou “inferiores”, “povos subordinados”, “dependência”, “expansão”, “autoridade”. Há três sentidos para o Orientalismo apresentado por Said. O primeiro é o acadêmico, em que a pesquisa do Oriente é apoiada por instituições com a alcunha de estudos orientais. E, como esse discurso é elaborado por orientalistas, pessoas que detinham o “conhecimento científico”, ganhou legitimidade. O segundo sentido é o imaginativo, em que se encaixa a produção de poetas, romancistas, filósofos, teóricos políticos e administradores imperiais como Ernst Renan, Chateaubriand e lorde Balfour. Os seguidores dessas duas linhas aceitaram a existência da oposição de um Oriente a ser conhecido e de um Ocidente do qual eles fizeram ou fazem parte. A partir desse pressuposto, esses intelectuais elaboraram teorias das mais diversas para “explicar” o oriental, sua mente, seus costumes, sua cultura. O terceiro sentido listado é o do discurso, na acepção foucaultiana, como prática social, que se produz em razão das relações de poder. A alegação é que a cultura européia administrou e até produziu um discurso político, sociológico, ideológico, científico e imaginário em relação ao Oriente durante o período pós-Iluminismo. Entre suas formulações, está um complexo aparato de idéias “orientais”, exemplificados por sintagmas nominais como “despotismo oriental” ou “esplendor oriental”. A tese questiona o discurso em que o oriental é posicionado em um nível de inferioridade. E, nesse caso, a inferioridade dos orientais (“eles” ou “o outro”), significou a superioridade dos ocidentais (“nós”). “A construção da identidade [...] inclui estabelecer opositores e ‘outros’, cuja atualidade é sempre sujeita a contínuas interpretações e re-interpretações das diferenças entre eles e ‘nós’. Cada época e sociedade re-cria seus ‘Outros’”, escreveu ele no posfácio de 95. O Oriente tem sido, portanto, uma das mais profundas e recorrentes imagens do Outro para o Ocidente. Em sua vertente moderna, o Orientalismo teve início no final do século XVIII, mais precisamente em 1798, com a invasão napoleônica do Egito. Juntamente com suas tropas, Napoleão levou estudiosos franceses para conhecer esse mundo no qual ele estava penetrando. Seguiu-se à disseminação destes estudos realizados pelos acadêmicos franceses no Egito uma espécie de “epidemia” de assuntos relativos ao oriente que pode ser encontrada na produção de grandes poetas, ensaístas e filósofos do século XIX. Said lembra que entusiasmo semelhante ocorreu durante a Alta Renascença na Europa em relação às Antiguidades Grega e Latina. Mas, ao contrário delas, o orientalismo tinha a finalidade de ultrapassar a fronteira do conhecimento, justificando ideologicamente a conquista de territórios. O papel foi brilhantemente desempenhado pelos orientalistas, difundindo concepções como as supostas “indolência” e “selvageria” dos dominados. Tal discurso ganhou a colaboração de políticos que inseriram a idéia de uma necessidade de intervenção a fim de salvar (tanto no sentido material como espiritual) as vidas dos dominados. “Há ocidentais e há orientais. Os primeiros dominam; os segundos devem ser dominados, o que costuma querer dizer que suas terras devem ser ocupadas, seus assuntos internos rigidamente controlados, seu sangue e seu tesouro postos à disposição de uma ou outra potência ocidental”, afirma o autor . Não é preciso dizer que depois das últimas aventuras ocidentais no Oriente Médio, o livro nem parece que vai completar 30 anos em 2008. A atualidade de Orientalismo é assustadora.