Pan-arabismo e racismo árabe

Ter, 31/07/2007 - 09:00
Junto com a onda do fundamentalismo islâmico, surgiu uma onda de pan-arabismo racista e totalitário − e num caso até genocida. O sinal mais trágico neste sentido vem do Darfur, onde, como se sabe, bandos armados de etnia árabe estão perpetrando um verdadeiro genocídio das populações de origem africana. O Darfur é o caso mais terrível: mas denúncias graves de racismo e opressão das minorias não-árabes surgem em muitos outros Países, desde a Somália até a Argélia. As duas ondas, de fundamentalismo e de racismo pan-árabe, são ligadas, paralelas, sincrônicas, e muitas vezes elas se justificam uma à outra. A implementação forçosa e brutal do Corão e dos preceitos salafistas reforçam e muitas vezes justificam a aniquilação cultural, social e espiritual de outros povos e, nos casos mais graves, até a eliminação física. No caso do Darfur, a matriz racista é claríssima, embora seja misturada com a luta (econômica) para a posse do território. As tribos árabes nômades do deserto sudanês estão tentando (e conseguindo, graças à inércia e ao descaso internacional) massacrar e expulsar de suas terras as tribos negras de cultivadores, com o apoio − ou no mínimo a complacência − do governo central de Khartum, que barra as iniciativas internacionais de socorro. Há uma tentativa clara de fazer daquela região uma área só árabe. Nenhum governo árabe se manifestou a respeito. Na Somália, os senhores da guerra islamistas estão implementando o wahhabismo da forma mais brutal, deturpando a cultura somali e forçando sua transformação de um País africano numa ‘colônia’ arabizada sem nenhuma ligação com as raízes da população, onde os árabes são uma pequena minoria. Vejam o que escreve o jornalista somali Bashir Goth: “Os islamistas estão com um programa grandioso para o nosso País. Arabizar completamente a Somália e a transformar num emirado árabe e islâmico. [...] Os senhores da guerra empregam a força bruta para obrigar as pessoas a adotarem costumes e crenças que não são as suas e desumanizá-los. [...] Para ver a o que querem fazer com nosso povo, é só ver como os islamistas tratam as mulheres somalis, nossa música e nossas idéias. Estes três elementos constituem a beleza, o espírito e o futuro de qualquer nação. Pois então, as belas mulheres somalis, que sempre foram exaltadas por seus turbantes e trajes magníficos, agora estão escondidas debaixo de camadas e camadas de tecidos. Querem mumificá-las da mesma forma que mumificaram as mulheres árabes. Nossa música se tornou proibida, o cinema e o teatro também, e quem expressa idéias diferentes da interpretação satânica do Corão dos clérigos salafistas é morto ou deve expatriar. Os campos de refugiados do Quênia estão cheios de somalis que se recusam a serem transformados forçosamente em árabes”. Belkacem Lounes, presidente do Congresso mundial Amazigh , denuncia da mesma forma as tentativas de aniquilação do povo e da cultura berberes na Argélia, na Tunísia, no Marrocos e na Líbia, para que se tornem Países exclusivamente árabes. “Não há pior colonialismo que o colonialismo interno, como aquele do clã pan-arabista que tenta colonizar os 30 milhões de berberes em todo o Maghrib, e fazê-los esquecer de suas raízes e de sua identidade. Estamos enfrentando o Arabismo, isto é, uma ideologia imperialista que recusa qualquer diversidade na África do Norte e representa uma traição e uma ofensa à história, à verdade e à legalidade”, escreveu Lounes. “Até a religião islâmica foi colocada ao serviço desses projetos de arabização e dominação da maioria árabe sobre a minoria berbere. A rainha Amazigh Dihya, no século 14, foi a primeira a entender essa estratégia colonialista árabe. Quando os árabes atacaram seu reino, ela disse para os enviados árabes muçulmanos que pediam sua conversão e rendição: ‘Estão dizendo que são portadores de uma mensagem divina? Muito bem, a deixem conosco, e voltem de onde vieram’.” O movimento Amazigh (Tafsut n’Imazighen) de resistência surgiu em março de 1980, quando o governo da Argélia proibiu Mouloud Mammeri, escritor, lingüista e ícone cultural da Kabília berbere, de lecionar sobre a antiga poesia berbere na universidade de Tizi Ouzo, ‘capital’ da Kabília. A intervenção de Argel deflagrou uma série de protestos que durou meses, e culminou com a prisão dos principais líderes e ativistas berberes argelinos, e a proibição de qualquer atividade ligada à identidade Amazigh(1). Lounes lembra também que quando os berberes colocaram a questão da identidade argelina depois da independência do País da colonização francesa, dentro do movimento nacional argelino, os clãs nacionalistas árabes os acusaram imediatamente de querer dividir o movimento e de fazer o jogo dos colonizadores. “Mas eles se transformaram depois em colonizadores ainda piores, porque os franceses nunca negaram nosso direito à identidade e à cultura Amazigh”, diz Lounes. Segundo o Congresso Amazigh, no Marrocos também há uma forte repressão de tudo o que não é árabe, e uma mesma ingratidão em relação aos berberes que lutaram contra os espanhóis e os franceses nas lutas de liberação. Na Líbia, o coronel Kaddafi chegou a negar até a existência de berberes no território líbio, suscitando protestos e revolta dos Amazigh, apesar da repressão do exército líbio. Em outros Países fundamentalistas ou com forte presença fundamentalista, como o Afeganistão, o Paquistão e o Sudão, a arabização não passa pela eliminação das minorias, até porque não há maioria árabe, mas pela imposição da mentalidade, dos preceitos e da sub-cultura salafita saudita por meios dos clérigos e dos militantes wahhabitas que foram doutrinados na Arábia Saudita e que se tornaram mais árabes que os próprios árabes. Como disse Lounes, a negação das diversidades nos Países árabes e a arabização dos Países não-árabes são mais um aspecto do totalitarismo que predomina no mundo árabe e no qual se baseia o fundamentalismo islâmico. O salafismo e o taqfirismo, com seu desprezo absoluto pelos valores humanos, pela cultura (própria e dos outros) e pelo passado (verdadeiro, não aquela pureza primitiva que eles fantasiam) são, provavelmente, a razão principal pelo surgimento desse racismo árabe, que nunca existiu antes, como mostra claramente a história dos povos árabes. Tudo isso, aliás, não é muito distante nem muito diferente do anti-semitismo hiperbólico de extremistas como Sayyd Qutb, ou de populistas como o presidente Ahmadinejjad, e na verdade faz parte, de forma mais ampla, do fundamentalismo intolerante e violento que tomou conta do mundo nas últimas décadas, que seja o do Bush, o das seitas evangélicas ou o do Hamas. Minorias árabes e muçulmanas também já foram e ainda são vítimas de genocídio, massacres, deportações, aculturação forçada, etc? Sem dúvida, no mundo todo, no passado como no presente, na Bósnia, em Israel, em Gaza, no Líbano, no Paquistão, e assim por diante. Só espero que ninguém considere isso uma razão para não denunciar hoje o racismo árabe e o pan-arabismo totalitário. (1) Amazigh é o termo usado pelos próprios berberes para se referir a si mesmos. Na língua berbere, significa ‘aquele que é livre’. rcattani@uol.com.br