Um “diálogo” ilustrativo com a Rede Globo

Sex, 26/02/2010 - 14:51
Publicado em:
“Novela das oito” da Rede Globo (“Viver a vida”): a cena se passa na Jordânia. É uma conversa entre duas moças que, no enredo, são modelos profissionais. Uma das personagens diz que vai sair para passear. A outra alerta, com evidente preocupação, sobre os perigos de uma caminhada solitária no local em que se encontram. Mas é imediatamente tranquilizada pela primeira personagem, que pondera: a Jordânia "é o país mais ocidentalizado da região." Logo, sair por aí, à noite, não oferece tanto risco assim. Provavelmente a coisa seria bem diferente se a Jordânia fosse, digamos, um pouco menos “ocidental”, ou, o que dá no mesmo, um pouco mais “árabe”. Já imaginaram o perigo?

O diálogo provocou uma troca de e-mails entre a diretoria do Instituto de Cultura Árabe (ICArabe) e os responsáveis pelo setor de teledramaturgia da Rede Globo. Reproduzimos, abaixo, alguns trechos dessa troca, por ilustrar, de modo bastante didático e autoexplicativo, a maneira pela qual os “donos da mídia” encaram o exercício da liberdade de expressão e sua responsabilidade específica como divulgadores de informação, arte e cultura.

A primeira mensagem foi enviada pela diretoria do ICArabe em 13 de novembro de 2009:

“(...) Estranhamos muito o fato de que num dos capítulos recentes da "novela das oito", um diálogo entre duas personagens que estão na Jordânia tenha dado vazão a um comentário extremamente preconceituoso, injusto e até mesmo racista sobre as sociedades "não ocidentais" em geral e sobre as sociedades árabes em particular. No referido diálogo, uma das personagens diz que vai sair para passear. A outra alerta, com evidente preocupação, sobre os perigos de uma caminhada solitária no local em que se encontram, para ser imediatamente tranquilizada pela primeira personagem, já que, segundo ela, a Jordânia "é o país mais ocidentalizado da região."

O que, exatamente, querem os autores do roteiro dizer com uma afirmação tão estúpida, estapafúrdia e carente de qualquer sentido? Será necessário lembrar que em nosso país – até onde sabe, situado no "ocidente" – o índice anual de mortes violentas atinge, em média, a cifra de 40 mil ao ano, considerada pela ONU uma das mais elevadas do planeta?

Será necessário recordar que as maiores atrocidades já cometidas na história da humanidade – incluindo, entre muitos outros, o holocausto nazista e a bomba de Hiroshima – foram perpetrados por países "ocidentais", e que nenhuma nação árabe ou "oriental" cometeu crime algum sequer comparável a tamanhas façanhas?

Aliás, como, exatamente, os senhores roteiristas definiriam o que é ser "ocidental" e o que é ser "oriental"? Lamento informar aos senhores roteiristas que o Deus "ocidental" nasceu no "oriente" (chame-se ele Jeová, Deus ou Alá), assim como o alfabeto, os algarismos e até mesmo o álcool com que, eventualmente, os senhores roteiristas abastecem os respectivos automóveis (ou encharcam o cérebro, antes de escrever tamanhas idiotices).

Será necessário informar aos senhores roteiristas que se existe alguma tradição permanente, duradoura e respeitada entre os povos árabes é a da hospitalidade, e que uma das faltas punidas com maior rigor é a agressão por motivos fúteis ou mundanos contra qualquer pessoa?”

No dia 30 de novembro, o Icarabe recebeu a seguinte resposta da Rede Globo:

“Nossas novelas pertencem ao gênero ficção, sem terem necessariamente nenhum vínculo com a realidade. São fundamentadas na liberdade de expressão e criação artística, amplamente amparada na nossa Constituição.

Dos personagem que lá – somente no universo fantasioso – "vivem" não se pode exigir padrão de comportamento algum, retidão de caráter, equilíbrio, fraternidade, respeito à diversidade – valores tão em falta no cotidiano real, aí sim razão de lamento.

Assim como de Shakespeare a Carlitos, uma novela não tem compromisso com o chamado “politicamente correto”. Embora, naturalmente, a maioria absoluta delas tenha um final considerado moralista.

Preocupa-nos muito uma tendência de querer-se resolver os problemas da realidade usando como plataforma o mundo do irreal.

A teledramaturgia está na categoria entretenimento. Mais do que, no campo do imaginário, como no caso, reproduzam preconceitos e clichês – inevitavelmente levando a uma positiva discussão pública –, indesejável é tentar transformar uma obra cultural em defesa de teses.

(...) Dentro dessa lógica, é importante ainda ressaltar que nossos folhetins apenas lançam temas para a reflexão das pessoas e não se propõem a influenciar comportamentos.

Aliás, felizmente, essa influência não existe. As pesquisas indicam que, assim como têm capacidade de discernimento a cada dois anos na urna eleitoral eletrônica, o telespectador-cidadão sabe distinguir claramente entre o que é novela ou realidade e se comporta de acordo com seus valores.

É a capacidade de livre-arbítrio que, se for desqualificada, atinge, mais do que um veículo de comunicação de massa, a democracia – que se baseia na capacidade de escolha das pessoas.”

Imediatamente, o ICArabe ofereceu a seguinte tréplica:

1.Fosse assim tão evidente a separação entre os vários gêneros apresentados pelos veículos de comunicação (isto é: telejornalismo, telenovela, programas de auditório, publicidade e propaganda etc.), jamais aconteceria um fenômeno como a propaganda nazista chefiada por Joseph Goebbels. (...)

2.Os senhores aceitariam um enredo que mostrasse, por exemplo, o papa católico mantendo relações homossexuais? Já que aquilo que pertence ao reino da ficção, segundo os senhores, não pode ser criticado, supomos que tal enredo passaria sem problema, certo? Ou, que tal, um enredo em que Adolf Hitler fosse mostrado como um sujeito equilibrado, sensato e razoável? Passaria pelo vosso crivo? Os senhores estão conscientes de que durante a transmissão da telenovela O Rei do Gado havia uma orientação expressa, por parte da direção da Rede Globo, no sentido de que jamais fosse mostrada uma bandeira do MST? Qual a razão? Segundo a lógica dos senhores, nenhuma!

3.Os senhores, certamente, sabem mais do que aquilo que pretendem mostrar em vossa resposta. Os senhores jogam com uma oposição absolutamente idiota, superada e maniqueísta entre “realidade” e “ficção”. Se os senhores realmente acreditam naquilo que escreveram, não podem ocupar cargos de responsabilidade em uma emissora do porte da Rede Globo. Vosso raciocínio primário, sofístico e elementar jamais conseguiria explicar como um show radiofônico de ficção – que, aliás, advertiu os seus ouvintes de que tudo o que seria narrado em seguida seria pura ficção, baseada em livro de H. G. Wells – conseguiu produzir pânico em 15 milhões de cidadãos estadunidenses, em 1938. Caso os senhores não saibam, estamos nos referindo, aqui, à célebre transmissão de Orson Welles pela rede CBS.

4.Tampouco os senhores podem explicar que, no caso de disputas eleitorais, cada vez mais vale a imagem projetada do candidato (isto é: pura ficção), muito mais do que seu programa político. Se os senhores não sabem que a performance, em nosso mundo, é tudo, e que a forma exerce predomínio absoluto sobre o conteúdo, então, mais uma vez, os senhores estão desqualificados para a função que exercem.

5.Finalmente: não há justificativa palatável, possível ou aceitável para atos de preconceito, segregação, racismo, discriminação cultural. Os senhores promoveram tudo isso com aquele simples e estúpido diálogo. Reiteramos o pedido de retratação, para evitar a adoção de medidas normativas junto à Justiça brasileira. ”


E a resposta final da Rede Globo, datada de 4 de dezembro:

“A escolha diária, a cada momento, do telespectador é um exercício de democracia, baseado na crença na capacidade de discernimento e no livre-arbítrio do cidadão.

Ameaçar a liberdade de expressão em nome de um comportamento que alguém considera politicamente correto na ficção é uma ameaça à democracia.

É ainda estranho verificar que segmentos que são vítimas de preconceito de certa forma realimentam esse sentimento ao fazerem o mesmo juízo de valor de quem descrimina.

É exatamente essa leitura que fazemos sobre a expressão “ocidentalização”, reconhecendo nela ela um caráter positivo que não é inerente a ela.

Neste aspecto, gostaríamos de nos despedir com a Constituição brasileira, nossa lei maior, que deve ser seguida por todos que moram no Brasil, independente de origem, credo, etnia ou gênero: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Nota-se, facilmente, que a Rede Globo não respondeu a qualquer dos argumentos esgrimidos pelo Icarabe. E mais: de forma cínica, inicia sua última resposta atribuindo ao telespectador uma suposta capacidade absoluta que escolher aquilo que quer ver, como se não houvesse monopólio dos meios de comunicação, e como se não existisse – pelo menos, desde Goebbels – uma “engenheira psicossocial” capaz de condicionar escolhas e estabelecer parâmetros de comportamento.

Em outros termos, para explicar o inexplicável e justificar o injustificável, os porta-vozes da Rede Globo são obrigado a assumir um discurso idiota e imaginar que os seus interlocutores sejam igualmente incapacitados do ponto de vista intelectual.