Vivendo a Palestina
Porto Alegre, Hotel Continental, sexta-feira, salão de eventos, por volta das 22 horas. Começava ali uma das mais eloqüentes descrições da Palestina. Ali ela estava livre da ocupação, livre das amarras que a impedem de existir. Ela se fez diante dos olhos de quem tivesse olhos para vê-la, ali mesmo, em um pedaço do solo do país que aceita todos para seu carnaval de desigualdades.
A dabka árabe, feita por pés palestinos nascidos no Brasil, inundou a sala. E ali, sem palavras, através do ritmo que fazia tudo mais ficar mudo e dos movimentos que faziam todo o resto desaparecer, a Palestina se fez. Ali estava também a dualidade que fragmenta sua identidade. A ocupação e a resistência, o não deixar viver e o viver, colidem a todo o momento, alimentam aquilo que faz com que a Palestina jamais desapareça.
A quilômetros daquele lugar, às margens do Rio Guaiba, em Porto Alegre, a Palestina ainda era impedida de existir e, no entanto, existia. A vibrante demonstração de uma cultura que não foi exterminada alimenta a esperança de que ela possa ter novamente seu lugar, pois ela tem origem, solo, terra, espaço definido e irrevogável.
O Brasil ofereceu uma pequeníssima parte de seu espaço para que, por momentos, não fosse mais brasileiro. A Palestina que se mostrou naquela dança foi caótica, harmônica, vibrante, coletiva, individual, idosa, nova, vibrante, séria, irônica, masculina, feminina, infantil. Os rostos tinham raiva, alegria, êxtase.
O Congresso Palestino, para além de suas resoluções de ação política, foi um encontro de histórias que não permitem a esses palestinos esquecer quem são. O cotidiano é doloroso e sua realidade está recheada: famílias, primos, irmãs, ocupação, checkpoints, lágrimas, fronteiras, passe, passaporte, morte, exílio, 48, 67, Oslo, Muro, líderes, grupos, milícias, depressão, Jordânia, Aman, volta, Haifa, Gaza, política, Estado, humilhação, Intifada, israelenses, judeus, árabes, Líbano, ativismo, Jerusalém, Jenin, esperança, desistência, resistência, terra, água, oliveiras, abraços, braços, danças, dentes, ossos, força, prisões, mulheres, filhos, armas, paz, socorro, ajuda, cooperação, boicote, ausência, diáspora. Transferência.
Silêncio. Alguns recusam-se a falar, dar entrevistas. Viver em uma Israel judaica que olha com incômodo para os árabes exige silêncio. Senhores de 48 têm suas vidas controladas e, por qualquer depoimento contra o Estado, não voltam para suas casas. Não voltam para suas vidas. A entrada na Palestina ou em Israel está associada ao silêncio. Prova de que ainda existe uma Palestina dentro de Israel.
Barulho. Final de noite, domingo, por volta das 21h. O desconforto de saber que se faz parte de uma região ocupada exige barulho. Uma jovem não se contentou com um adeus. Seu sotaque é gaúcho, mas o rosto é árabe. O folclore que mostrou a Palestina tinha consciência. “Nós fazemos porque acreditamos, não queremos deixar a causa morrer. Isso não vai acontecer conosco”. Ela não tinha mais do que 16 anos.
Um dia, eles voltarão.
* “Vivendo a palestina” foi um dos projetos apresentados durante o Congresso. Seu objetivo é estreitar e fortalecer os elos do povo palestino na diáspora com o povo na Palestina. Uma tentativa para que se mantenham vivas cultura, história e identidade nacional do povo palestino.