Uma viagem pelo cinema egípcio com Essam Zakarea
Assim como outros países do “Terceiro Mundo”, incluindo Brasil e Índia, o cinema do Egito tem longa tradição e é bastante reconhecido tanto no mundo árabe quanto fora. A história do país está profundamente ligada com a do cinema e é impossível estudar uma sem passar pela outra.
A conclusão pertence ao crítico egípcio de cinema Essam Zakarea, que no dia 25 de junho, como parte da programação da mostra Imagens do Oriente 2010, proferiu uma palestra no CineSesc na qual fez um resumo detalhado da história da sétima arte em seu país.
“O cinema egípcio alcançou uma posição dominante no mundo árabe, conseguindo quebrar barreiras de idioma e se inserindo em outros países com dialetos próprios”, explica Essam. Além disso, o crítico defende que o cinema egípcio teve um papel crucial no orgulho e no senso de identidade árabe, principalmente os filmes mais comerciais.
De acordo com o relato do crítico, a indústria cinematográfica egípcia começou a se desenvolver já no fim do século XIX. Mesmo estando sob a ocupação britânica, o Egito se encontrava em boa situação econômica e política e em função desse e outros fatores, havia diversas comunidades estrangeiras vivendo no país, especialmente em Alexandria e no Cairo. “O Egito era um caldeirão cultural”, contou ele. No mesmo período se estabeleceram no país empresas jornalísticas, editoriais e trupes teatrais. “O resultado disto tudo junto foi uma sociedade cosmopolita e um renascimento cultural”, disse ele.
A primeira exibição de um filme no Egito ocorreu em 5 de novembro de 1896, no Tusun Pasha, em Alexandria. Alguns meses depois houve uma exibição no Cairo, no hall do Hamam Schindler. Durante os primeiros anos do século XX, um pequeno número de filmes foi produzido no Egito. “Apenas curtas-metragens em eventos oficiais, como no lançamento da mesquita ALMURSI Abu-l-Abbas, em Alexandria, em 1907; no funeral do líder patriótico Mustafa Kamel, em 1909, ou na partida oficial da caravana de Hajj para o Hijaz, em 1912”, contou Essam.
Também como em outros países do Terceiro Mundo, a industria cinematográfica egípcia foi inicialmente controlada por estrangeiros. “Primeiro vieram os italianos, que dirigiram filmes com vistas ao lucro e ao entretenimento, baseados no modelo hollywoodiano, chamdo, inclusive, de ‘Hollywood do Oriente’”, relata o crítico. Apesar disso, a atuação continuou sendo feita por atores egípcios como Maomé Karim, que apareceu em “Sharaf al-Badawi” (Honra do beduíno - 1918) e em “Al-Azhar al-Moumita” (Flores Mortais - 1918), ambos feitos por uma companhia de produção italiana. “Um italiano que se tornou um produtor de cinema muito famoso foi Alfizi Orfanelli. Ele lançou ‘Senhora Loetta’ (1919), dirigido por outro italiano, Leonardo Larizzi”, disse Essam.
A constituição de 19 de abril de 1923 declarou o Egito soberano, livre e independente. Um estado cuja religião oficial era a muçulmana e a língua, o árabe. No mesmo ano, um homem muito ambicioso, chamado Mohammed Bayumi, retornou da Alemanha, onde estudou cinema. “Ele se tornou o primeiro produtor egípcio e lançou o cinejornal Amun, que é o único registro cinemático do retorno do líder Saad Zaghlul de exílio, em 1923”, ressaltou Essam. Bayumi também foi o primeiro egípcio a fazer filmes de ficção, como “Barsoum em busca de trabalho” (1923) e “Al-Bashkateb” (The Head Clerk, 1924).
Gradualmente, os egípcios foram ganhando posição na indústria cinematográfica como investidores e técnicos. Em 1927, Aziza Amir produziu a atuou no primeiro longa-metragem do país, “Layla”. Com a vinda do som, a indústria de filmes do Egito se tornou uma força regional e, entre 1930 e 1936, vários estúdios pequenos produziram um total de 44 filmes falados.
“Talat Harb, foi um industrial pioneiro egípcio e o fundador do primeiro banco do país (Misr). Ele entrou no negócio do cinema com o filme “Widad”, em 1936. De grande porte, o Estúdio de Talat Harb Misr era equivalente aos estúdios principais de Hollywood”, disse Essam. Depois dele, vieram o Estúdio de Wahbi em 1939 e assim sucessivamente. Porém, estas companhias mantiveram a tradição colonial europeia, com filmes de gênero familiares, seguro em termos de censura e fins comerciais, dando espaço especialmente aos melodramas sentimentais.
A Era de Ouro, a censura e o realismo
Os anos 40 e 50 são considerados a Era de Ouro do cinema egípcio. O cinema se tornou parte das vidas das classes alta e média. “Mas, com a Segunda Guerra Mundial e a ocorrência de batalhas no país, muitas coisas mudaram, sugiram novas classes sociais e uma consciência nova”, explicou o crítico. Assim, o período entre a independência oficial e a revolução de 1952 foi marcado por muitas lutas sociais e políticas.
A censura, oficialmente instituída pelo Palácio e pela Embaixada inglesa, em 1914, e administrada pelo Ministério do Interior, forçou diretores a privarem os estrangeiros de críticas, bem como funcionários do governo e instituições religiosas. Também foram proibidas quaisquer apresentações de conflitos entre os camponeses e donos de terra ou com referências a ideias socialistas. No entanto, alguns filmes desafiaram a regra e foi em 1939, com o filme “A determinação” (El Azima 1939), que Kamal Selim anunciou o nascimento do Realismo no cinema egípcio.
“Mustafa Kamel”, um filme sobre o líder patriótico com o mesmo nome, foi a primeira produção a descrever a ocupação britânica, em 1951. Proibido, teve que esperar até a revolução para ser exibido. “Esses casos causaram um impacto inesquecível nos diretores que tiveram seus filmes proibidos e até hoje sofrem com uma espécie de fobia em relação à censura!”, afirma Essam.
Com a revolução de 1952, uma nova era começou. Pela primeira vez, desde o império faraônico, os egípcios se sentiram independentes, com uma identidade própria. Depois disso, mais românces egípcios foram adaptados para as telas e mais escritores trabalharam como roteiristas. O Egito pós-revolucionário foi parcialmente influenciado pelo neo-realismo italiano. O gênero tradicional do melodrama foi minimizado e depreciado pela nova geração de críticos. “A nova tendência é identificada principalmente nos filmes de Abu-Seif, que tinha ajudado Kamal Selim em ‘A Determinação’, mas também nos trabalhos de Yousef Shahine, Hassan El-emam e Hussein Kamal”, apontou Essam.
O regime de Nasser também buscou controlar a produção cinematográfica, a partir de 1961, e antes de 1966, a indústria de filme egípcia já havia sido toda nacionalizada. “A derrota militar para Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967, foi um tremendo choque psicológico para os egípcios, especialmente para a geração jovem que acreditava no todo-poderoso regime e seus sonhos socialistas e nacionalistas”, explica o crítico. Segundo ele, vários filmes no fim dos anos 60 expressaram esse sentimento e a vontade de um novo renascimento. “ ‘A Múmia’, que está sendo exibido pela Imagens do Oriente 2010 (IMO), é um claro exemplo disso”, complementou Essam.
O fim dos anos 1970 e os anos 80 viram a indústria egípcia de cinema entrar em declínio com o crescimento dos chamados “filmes de contrato”, produções curtas, encomendadas em vídeo com interesses específicos. O número de filmes produzidos caiu de cerca de 100 por ano para doze, em 1995. A partir de 1997, houve um novo “boom” da indústria cinematográfica e do cinema comercial, com alguns poucos filmes de arte e de consciência política sendo produzidos todos os anos. “Desses, uns dois ou três têm qualidade para ir aos principais festivais de cinema europeus”, contou Essam. Segundo ele, assim como o Brasil, o Egito tem atualmente diversos multiplex novos e modernos.
Atualidade
O crítico explicou que o cinema egípcio vive hoje uma situação paradoxal. “Temos uma indústria cinematográfica boa, mas não produzimos filmes de qualidade. Mas, em outros países como Tunísia, Síria e até mesmo Palestina, onde não há uma indústria como a nossa, você encontra grandes filmes de arte”, disse. De acordo com Essam, muitas vezes, nesses países, não existem nem mesmo salas de cinema e os próprios habitantes não conseguem ver os seus filmes. “ Boa parte dessas produções também ocorrem em cooperação com países europeus ou com os Estados Unidos, então não existe a preocupação de que sejam rentáveis localmente, não são nem feitos para o Mercado local. Mas no Egito é diferente, pois existe uma indústria local e salas. Se se seu filme não vender, você não consegue fazer o próximo”, concluiu.
Essam Zakarea
Jornalista e crítico de cinema, autor de dez livros sobre filmografia egípcia e mundial, é também colaborador de várias publicações árabes. Traduziu três livros sobre o tema do inglês e do alemão para seu idioma. Membro do júri em diversos festivais, é palestrante convidado de seminários culturais, círculos de pesquisa e programas de cinema. Editor chefe da revista Nazra, dedicada ao cinema independente, atua como pesquisador do Departamento de Cinema da Universidade Americana do Cairo (AUC), sendo ainda supervisor da Escola jesuíta de Cinema de Alexandria e professor na Escola de Cinema SEMAT, Estúdio de Cinema Emaddin.