“A tradução é uma arte, a tradução de uma obra literária é uma tarefa angustiante”
Leia a entrevista com a professora de Língua e Literatura Árabes da USP, na qual fala das relações da língua árabe com a portuguesa e como foi o processo de adaptação da “Gramática do Árabe Moderno”. Também conta a experiência de verter para o árabe a obra “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum. Icarabe: Uma vez, no debate do filme “Beirute Ocidental”, disse que se reconhecia muito como aqueles personagens. Que lembranças tem da vida no Líbano? Safa Jubran: Tenho dois conjuntos de lembranças da minha vida no Líbano: um coberto pela infância que foi relativamente feliz, outro coberto pela adolescência que foi complicada e conturbada, marcada pelo início da Guerra Civil. Icarabe: Qual a imagem do Brasil no Líbano? Essa migração é representada e vista de alguma forma especial ou é algo pouco considerado? Safa Jubran: Se me pergunta sobre a imagem do Brasil no Líbano atualmente, não saberia responder, mas, quando estava lá, sempre ouvia histórias e comentários sobre o Brasil de parentes e conhecidos, em que era sempre mencionado com carinho, sentimento que creio continua sendo verdadeiro e até mais intensificado. Basta dizer que nos jogos da Copa de Mundo, o Líbano se cobre de verde e amarelo. Quanto à imigração libanesa para Brasil, posso dizer que só pode ser vista como algo especial, afinal esta imigração já é antiga e desde a primeira leva de imigrantes o Brasil recebe os libaneses de braços abertos. Icarabe: Agora entrando nas questões específicas da língua e do idioma: que diferenças existem entre a fonologia do árabe e do português? Como leigo, não percebo qualquer semelhança. Existe alguma ligação que podemos fazer? Safa Jubran: As línguas se distinguem e se parecem em determinados aspectos, por isso acredito que a comparação e o contraste continua sendo um procedimento eficaz no ensino das línguas estrangeiras. Como o árabe e o português pertencem a famílias lingüísticas distintas, não seria errado dizer que as diferenças são muitas, mas é equivocado dizer que ambas as línguas não se parecem em nada. De qualquer forma, respondendo a sua pergunta sobre as diferenças entre o sistema fonológico do árabe e o do português, posso dizer, por exemplo, que o árabe tem mais consoantes do que o português, porém menos vogais. Em árabe não há sílabas que começam com vogais, em português há; em árabe não temos os fonemas "p" e "v", como em português, mas há no árabe uma série de fonemas que não existem em português e que neste último há nasalização de vogais, em árabe, não -lembrando que estou falando do árabe padrão, não dos dialetos que são múltiplos e se distinguem entre os paises de fala árabe. Icarabe: Como foi a adaptação do livro “A Gramática do Árabe Moderno”, de David Cowan? Que tipo de processos você levou adiante para transformá-lo em uma obra introdutória para os falantes do português? Qual a maior dificuldade? Safa Jubran: Antes de tudo devo dizer que a opção pela tradução desta gramática em particular foi pelo fato de não se ter até então nenhuma gramática do árabe em português e por esta ser completa, embora introdutória; abrange todos os níveis da língua desde o alfabeto até estruturas sintáticas mais complexas, porém numa forma clara. A tradução foi feita a partir do inglês em que algumas adaptações foram feitas durante o processo da tradução, relacionadas com a terminologia, atualização das informações, troca de alguns exemplos, porém nada muito drástico. Quanto à adaptação do conteúdo não houve dificuldade que mereça ser mencionada; as dificuldades foram mais no nível técnico, quanto ao uso de três fontes diferentes: uma para a escrita árabe, uma para conteúdo em português e outra para conseguir certos símbolos usados na transliteração dos vocábulos e frases árabes. Icarabe: Que critério você usou para diagramar o livro? Baseou-se no original de Cowan ou usou algum critério próprio que facilitasse a leitura de sua adaptação? Safa Jubran: Não, não houve nenhuma mudança neste sentido, na diagramação respeitei o original, porém usando os recursos que os editores de texto oferecem hoje em dia. Tentei preservar, praticamente, a mesma aparência da página, acrescentando, porém, algumas notas de roda-pé que trazem algumas informações adicionais que julguei serem importantes. Icarabe: Quais os principais pontos que se devem levar em consideração quando se faz uma tradução de um texto em português para o árabe? Safa Jubran: Há muitos aspectos que tem de ser considerados quando se faz uma tradução, independente da língua de origem e da língua alvo. O mais importante tem a ver com o tradutor que tem de dominar bem ambas as línguas e as duas culturas respectivas, mas acima de tudo ter bom senso. Icarabe: Você fez a tradução do livro “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum, para o árabe. Quais foram a maior dificuldade e o maior prazer que teve nessa tradução? Safa Jubran: A tradução é uma arte e a tradução de uma obra literária é uma tarefa angustiante - como é todo processo criativo-, porque é preciso entender que traduzir não é simplesmente um jogo de troca lexical. Traduzir uma obra literária é recriá-la num outro idioma, porém sem destituí-la de suas características originais, e isso não é uma tarefa fácil, requer muita habilidade e uma boa dose de bom senso também. É preciso acertar o tom, adaptar certas expressões, às vezes inverter certos períodos sem ferir o texto original. Traduzir “Dois irmãos” foi um desafio muito grande, eu passava horas pensando na escolha de um termo, no entanto a dificuldade maior foi em tentar preservar a riqueza dos aspectos regionais existentes no livro e em apresentar ao leitor de língua árabe elementos que desconhece totalmente. Queria que esse leitor pudesse sentir o aroma das comidas que Hatoum descrevia, queria que o leitor conhecesse os peixes de que nunca ouviu falar, sentir o cheiro do Rio Amazonas, enfim elementos de uma flora e fauna típicas da região amazônica. Por isso, senti necessidade de elaborar um glossário no final da edição árabe em que tentei trazer informações explicativas. Tudo isso, no entanto, seria muito mais difícil se não tivesse a ajuda do Milton que sempre estava à disposição para esclarecer minhas dúvidas. Em suma, acho que verter “Dois irmãos” foi uma experiência única, que me deu muito prazer, e como disse antes foi um desafio que aceitei, mas não sei se no resultado final posso dizer que acertei. Icarabe: Que conselho você dá para quem quer aprender o árabe? Qual é um bom começo? Safa Jubran:Gostar muito de árabe e também de estudar.