"As perdas foram e continuam sendo enormes"
Icarabe: Para dimensionar o que foi perdido no Iraque, qual a importância dos estudos arqueológicos que ali são feitos? Que tipo de riquezas arqueológicas existem no solo do país? Marcelo Rede: A antiga Mesopotâmia, que corresponde, grosso modo, ao atual território do Iraque, foi palco de algumas das primeiras manifestações do que podemos chamar de processo civilizatório. Assim, desde a pré-história, assistiu às primeiras experiências de agricultura irrigada e de domesticação dos animais, ao surgimento das primeiras cidades e ao aparecimento do primeiro sistema de escrita que conhecemos, o cuneiforme. Portanto, o subsolo iraquiano guarda os registros arqueológicos de fenômenos originais, até então inéditos, cuja compreensão é fundamental para entendermos a própria trajetória da humanidade. É neste sentido que falamos do Oriente-Próximo como o ‘berço da civilização’. Do mesmo modo, como estamos diante da primeira experiência da escrita, entendida como o registro gráfico de uma língua, os tabletes de argila, com escrita cuneiforme, guardam a memória dos primeiros textos, das primeiras narrativas mitológicas, dos primeiros discursos de poder, das primeiras notações comerciais e contábeis, dos primeiros escritos religiosos. Enfim, trata-se de um patrimônio cultural inestimável e que só é parcialmente conhecido; ainda há muito o que descobrir e pesquisar. Há mais de dez mil sítios arqueológicos repertoriados no Iraque, mas apenas alguns foram devidamente escavados. Uma quantidade imensa de textos já descobertos aguarda publicação. Icarabe: E o que foi perdido disso? Rede: Elas foram e continuam sendo enormes. Assim como acontece com a população, os patrimônios histórico e arqueológico iraquiano têm sofrido horrivelmente nestes últimos anos de guerra e ocupação. Num primeiro momento, quando o governo de Bagdá foi derrubado e a capital invadida, as atenções foram capitalizadas por aquilo que era mais extraordinário do ponto de vista da mídia: os bombardeios, que afetaram vários monumentos, e, sobretudo, o saque do Museu Nacional de Bagdá ou o incêndio que destruiu a Biblioteca Nacional, com perda de manuscritos inestimáveis. As cenas de saqueadores saindo do Museu carregando algumas das peças mais preciosas e conhecidas da arqueologia mesopotâmica, como o vaso de Uruk, chocaram o público e os estudiosos. Entretanto, passado este primeiro impacto, duas observações devem ser feitas: em primeiro lugar, no caso do Museu, as perdas acabaram sendo bem menores do que se temia de início: muitas peças foram recuperadas ou devolvidas posteriormente e um inventário mostra que houve perdas sérias, mas limitadas. Em segundo lugar, o que é mais preocupante é o processo menos visível e midiatizado de destruição contínua de escavações clandestinas que alimentam o mercado negro de antiguidades. Falando cruamente, não são os bombardeios e os saques espetaculares em museus de renome que mais contribuem para o problema, mas a própria situação que se seguiu à queda do regime de Saddam Hussein, a desorganização geral do país, a situação de penúria extrema, que faz com que os parcos recursos disponíveis sejam canalizados, evidentemente, para necessidades mais prementes, o esfacelamento da máquina administrativa do Estado, que impede qualquer ação concreta de reorganização dos museus, de proteção aos sítios arqueológicos, etc. Hoje, as perdas mais agudas concentram-se, sem dúvida, nos sítios arqueológicos, sobretudo os que estão situados fora da zona de controle mais direto do governo central, no sul xiita ou no norte curdo. No primeiro caso, nós temos notícias de vários tabletes do sítio de Umma que chegaram recentemente ao mercado de antiguidades. No segundo, os palácios Assírios, como o de Sennaqueribe, que era um Museu aberto, encontra-se completamente destruído. Icarabe: Por que essa região, e Bagdá especificamente, é chamada de berço da civilização? Rede: A região mesopotâmica é várias vezes chamada assim, e com razão, como vimos. Mas não propriamente Bagdá, que é bem mais tardia. Nos primeiros milênios da chamada civilização, foram outras cidades que se destacaram: Uruk, Shuruppak, Eridu, Lagash, Nippur, Ur, todas situadas no sul do território que hoje é o Iraque. Já Bagdá é bem posterior: não se sabe exatamente desde quando é ocupada, mas em 762, o califa Al-Mansur a elegeu para ser a sede do califado Abássida. A escolha foi bem pensada: Bagdá encontra-se no centro da bacia mesopotâmica, às margens do rio Tigre, mas no ponto em que o Eufrates está próximo, a não mais de 40 km. A cidade domina igualmente o entroncamento com o rio Diyala e não está muito longe do sopé dos montes Zagros. Os acessos ao Irã, à leste, às zonas pantanosas e ao golfo Pérsico, ao sul, à Anatólia, ao norte, e ao deserto e ao Mediterrâneo, à oeste, é privilegiado. Os dois séculos que se seguiram à fundação foram uma época de ouro. A cidade transformou-se em um dos mais poderosos centros políticos do mundo islâmico e era chamada de Madînat al-Salam, a "vila da salvação". Sua importância comercial a colocou entre os principais pólos econômicos da Terra e a cidade ganhou fama como centro de saber, estudo religioso e ciência. O mundo muçulmano encontrava-se em plena expansão, ocupando o norte da África e chegando até a península Ibérica. Bagdá firmou-se nessa constelação de cidades que desempenharam um papel fundamental na cultura islâmica de então, ao lado de Córdoba, Sevilha e Granada (na Espanha), Damasco e Alepo (na Síria), Jerusalém (no território palestino) e Fustat, depois Cairo (no Egito). Foi durante esse período que uma parte dos contos das "Mil e Uma Noites" foi compilada. Os ulamas, sábios islâmicos, confluíam para o califado de Bagdá. Além da religião, da literatura e do saber muçulmanos, boa parte da herança ocidental, em particular a grega, foi preservada e transmitida pelos sábios da cidade. Enquanto a Europa ocidental se enclausurava em uma vida rural, a evolução urbana nas cidades islâmicas foi acelerada: no fim do século VIII, Bagdá já alcançava 6.000 hectares e contava talvez com mais de 1 milhão de habitantes. O tecido urbano se enriquecia com palácios, mesquitas, escolas (madrasas), mercados (suqs), casas de banhos e jardins. As relações mercantis com a Índia e a China se consolidavam e Bagdá passou a ser um elo fundamental da chamada "rota da seda". Icarabe: O Iraque é hoje conhecido por sua identidade árabe, que é predominante, mas há diversas outras heranças que fazem parte da sociedade iraquiana e diferencia o país de outros países árabes. Você consegue perceber e fazer esse tipo de análise estudando o passado e observando o presente? Rede: A história da humanidade é uma sucessão de culturas, por vezes há assimilações e continuidades, por vezes, substituições abruptas, destruição, esquecimento. É preciso levar em conta que, desde a invasão persa, em 539 a.C., que colocou fim ao império babilônico, a região passou por sucessivas dominações, formas de governo e culturas diferentes, inclusive com o ingresso de novas populações: macedônios, reinos helenísticos, romanos, mongóis, mais tarde o império Otomano etc. Além disso, deve-se também considerar que a expansão islâmica, a partir do século VII d.C., mudou consideravelmente o perfil da região, do ponto de vista político, religioso e cultural. Deste modo, muitas das culturas da antigüidade mais remota, como os sumérios, assírios e babilônios, foram lentamente soterradas pelos recém-chegados. Não se esqueça também que, até o século XIX, ou seja, há pouco mais de 150 anos atrás, não sabíamos praticamente nada de todas essas sociedades antigas, fora algumas poucas referências nos autores clássicos (gregos e latinos) e na Bíblia. Foi só com as descobertas arqueológicas e com a decifração das antigas escritas e línguas que elas puderam ser resgatadas do esquecimento. Se pensarmos bem, é algo muito recente. O que é interessante notar é que, no contexto do Próximo-Oriente, o Iraque sempre se destacou por uma postura mais aberta sobre suas heranças culturais. A identidade iraquiana procurou assimilar, para além do elemento preponderante islâmico, também o seu passado pré-islâmico. Isso se refletiu de modo marcante na arqueologia do país, na formação de quadros capazes de estudar o seu passado, nos contatos científicos com o ocidente etc. Logicamente, também houve um lado negro desta recuperação do passado, com as tentativas de Saddam em manipulá-lo em benefício próprio, por exemplo, associando sua imagem à de Nabucodonosor, rei babilônico entre 604 e 562, época do apogeu de Babel. Evidentemente, esta identificação com a antiga Babilônia – que era traduzida em imagens em cartazes e nas cédulas do dinheiro local - tem a ver com o fato de que Nabucodonosor foi o destruidor de Jerusalém. Aqui, história do passado e política do presente são forçadas a estranhas alianças. Icarabe: Os danos do conflito para os estudos arqueológicos se resumiram ao Iraque ou atingiram uma escala maior? Rede: A situação no Oriente-Próximo é muito diversificada, mas a região é bastante instável e os conflitos resultam sempre em perigo para o patrimônio arqueológico, que, no final das contas, compõe o conjunto de documentos sobre os quais trabalham os especialistas. É preciso lembrar o óbvio: este patrimônio material é... material. Portanto, pode ser vitimado pelas guerras (locais, regionais, internacionais) assim como qualquer outro elemento do ambiente físico de um país, como a infra-estrutura, as pontes, a malha rodoviária, os quarteirões residenciais. O Líbano e, particularmente, Beirute sofreram muito com a guerra civil. No Afeganistão, a situação já era caótica antes da queda do regime Talebã: não esqueçamos a explosão dos Budas de Bamyan, que datavam do século VI, pelos fundamentalistas talebãs. E não melhorou muito desde então. Na região palestina, também a situação política impede ou dificulta muito os trabalhos arqueológicos. No momento, as equipes européias e japonesas concentram-se na Síria e na Jordânia. Israel é um caso a parte, com um aparato arqueológico próprio bem desenvolvido e que, em função da chamada ‘arqueologia bíblica’, atrai o interesse e o investimento de muitos centros de pesquisa de todo mundo.