Documentário aborda o conflito Israel-Palestina sob a ótica do futebol
Dirigido por quatro brasileiros, Arturo Hartmann, Lucas Justiniano, J. Menezes e João Assumpção, o documentário "Sobre Futebol e Barreiras" traz um novo olhar para o conflito Israel-Palestina.
Filmado durante a Copa do Mundo da África de 2010, ele retrata o cotidiano de judeus e palestinos tendo o futebol e o Mundial como pano de fundo, e mostra como a linguagem universal do principal esporte do mundo influencia uma região permeada por problemas de identidade nacional.
O documentário já foi exibido na 35ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e está na programação da Semana do Povo Palestino, que acontece entre os dias 25/11 e 1/12.
Leia abaixo uma entrevista com Arturo Hartmann, jornalista e membro da equipe de diretores de "Sobre Futebol e Barreiras".
Como surgiu a ideia para o documentário? Os integrantes do grupo que dirigiu o filme já se interessavam pela questão palestina? Por que a escolha do futebol como gancho para abordar o conflito?
A ideia surgiu quando eu fazia uma viagem pelos territórios no início de 2010. Era parte de uma pesquisa pessoal sobre a questão, juntando material para um livro, para entender os problemas da cobertura jornalística em relação à questão. Eu estava uma noite em um bar em Beit Sahour, uma cidade ao sul da Cisjordânia, colada em Bethlehem. Estava com alguns palestinos assistindo ao jogo Egito X Argélia, pela semi-final da Copa Africana de Seleções. E o impressionante, divertido, era que todos os palestinos torciam para a Argélia. Isso porque na época o governo egípcio, ainda sob o controle de Mubarak, era uma espécie de parceiro de Israel no cerco à Faixa de Gaza, já que controlava a passagem com a cidade de Rafah, que faz fronteira com o Egito.
Era algo incrível jornalisticamente. Era a manifestação do conflito de uma outra forma. Não era a amenização do conflito, mas ele podia ser enxergado através de uma outra linguagem. Um dos palestinos que estavam ali, o Yasser, que depois virou personagem do filme, disse: “cara, você precisa ver isso durante a Copa do Mundo”. E foi isso que fomos fazer. Falei com o Lucas (Justiniano) por Skype e ele gostou da ideia na hora. Depois ele falou com os outros dois diretores (José Menezes e João Carlos Assumpção) e o projeto foi ganhando corpo. A ideia foi lançar um olhar sobre a sociedade Israel/Palestina. Entender como as dinâmicas internas sociais alimentam o conflito e como o conflito impacta de volta essas sociedades. E, na minha visão particular, formam a sociedade “do conflito”. A Copa, como festa de nacionalidades, mais do que o futebol em si, entrou como o pano de fundo e um iniciador para as conversas que queríamos ter.
Como se desenvolveu o processo de produção? Houve financiamento? Foram feitos contatos prévios com pessoas ou organizações palestinas ou israelenses?
O processo todo nós bancamos do bolso, desde a pesquisa até as filmagens lá. Agora, em 2011, conseguimos um financiamento para a finalização do filme através de um Programa de Incentivo do Governo Estadual (Proac), e conseguimos o aporte de dinheiro da empresa São Manoel. Os contatos prévios, na maioria, foram os que eu havia feito na minha viagem de pesquisa, nos três meses que fiquei em Israel e Cisjordânia, logo no início de 2010. Então alguns personagens que entraram eu já conhecia. Outros achamos em uma segunda fase de procura, quinze dias antes do início da Copa, aí com toda a equipe já mais voltada para o filme.
Quanto tempo durou cada etapa do processo? Filmagem, edição etc?
Bom, se considerarmos o meu tempo de pesquisa por lá, começamos em janeiro de 2010. Passei três meses – de janeiro a março. Depois voltei ao Brasil e foram mais dois meses de planejamento de toda a equipe. No final de maio, fomos todos para lá, por dois meses, para as filmagens. Voltamos no final de julho. De agosto a dezembro, assistimos todo o material – tínhamos cerca de 80 horas de filmagens - e começamos a selecionar o que ia entrar. Daí pra frente, a partir de janeiro, depois de algumas reuniões, Lucas e eu começamos a trabalhar no roteiro simultaneamente à montagem. E fazíamos reuniões periódicas todos os diretores, para que eles pudessem acompanhar e opinar sobre o que estava sendo feito. Acho que a história e o corte final ficaram prontos por volta de abril. Nesse momento, mostramos o filme para nossos produtores executivos – Gal Buitoni e Luiz Ferraz - e aí batemos o martelo. A partir daí, acho que mais dois meses, até início de junho, foram detalhes de finalização. No total, podemos dizer que fizemos esse filme em um ano e meio.
Como tem sido a distribuição do filme? Ele será exibido em mostras ou também no circuito comercial?
Por enquanto está sendo exibido exclusivamente em mostras e festivais, mas ainda temos planejado exibições em escolas e faculdades. Ele vai entrar no circuito comercial, mas ainda estamos em negociações, não há previsão.
Quais foram as maiores surpresas encontradas pela equipe durante as filmagens? Houve alguma dificuldade ou restrição imposta por Israel às filmagens? Algum fato curioso?
Acho que as restrições foram as que normalmente aconteceriam. Quando passávamos por um posto de controle, pediam que não filmássemos. Mas não lembro de algo realmente problemático em relação às filmagens.
Curioso, o Lucas gosta de contar uma história engraçada. Quando estávamos em Hebron, um dos lojistas palestinos da Cidade Velha, ocupada pelo exército israelense, pediu que ele sentasse em sua loja. Os palestinos por lá fazem isso com frequência, são muito hospitaleiros, te chamam para tomar um chá. Então o Lucas estava por lá e o cara colocou a música tema da Copa no celular dele, e isso chamou a atenção das pessoas que passavam. E o lojista falava para todas que ele era brasileiro. Todo mundo parava e ia dar oi. Ele virou atração. Disse que se sentiu como atração de zoológico. Sobre surpresas, olha, não sei.
Acho que as surpresas vêm quando você não encontra o conflito, quando você anda por aquele lugar e algo diferente te surpreende. Você espera a violência, nem que seja de forma latente, no convívio social. E isso é facilmente visto em Jerusalém, por exemplo. A impressão é que nos lugares em que palestinos e israelenses se cruzam, eles não se olham, eles existem em universos paralelos. Esse é o normal de lá.
Mas uma coisa que me marcou foi minha chegada na primeira viagem. Da primeira vez, eu desci em Amã, na Jordânia (da segunda vez fomos direto para Tel Aviv), e então cruzei a fronteira entre Jordânia e a Cisjordânia ocupada, controlada do lado palestino pelos israelenses. Não esqueço uma cena. O lance todo é que lá você pode passar horas sendo interrogado ou então apenas esperando se vão te dar um visto ou não. Aí você faz o pedido, ele pode demorar ou vir rápido, enfim. Em um momento, um agente de imigração israelense veio como um passaporte na mão, era o passaporte de um palestino, e começou a gritar o nome dele. Ele tinha sido liberado para entrar. E chamou de novo, e nada do cara responder. Então alguns amigos dele apontaram para um sujeito ajoelhado no chão, fazendo a reza da tarde. O homem não parou a reza, sabia que seu nome havia sido chamado, mas não interrompeu a reza. O agente não reagiu. Ficou ali, apoiado num banco, em silêncio, esperou o cara acabar a reza pacientemente e então devolveu os documentos para ele.
Filmado durante a Copa do Mundo da África de 2010, ele retrata o cotidiano de judeus e palestinos tendo o futebol e o Mundial como pano de fundo, e mostra como a linguagem universal do principal esporte do mundo influencia uma região permeada por problemas de identidade nacional.
O documentário já foi exibido na 35ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e está na programação da Semana do Povo Palestino, que acontece entre os dias 25/11 e 1/12.
Leia abaixo uma entrevista com Arturo Hartmann, jornalista e membro da equipe de diretores de "Sobre Futebol e Barreiras".
Como surgiu a ideia para o documentário? Os integrantes do grupo que dirigiu o filme já se interessavam pela questão palestina? Por que a escolha do futebol como gancho para abordar o conflito?
A ideia surgiu quando eu fazia uma viagem pelos territórios no início de 2010. Era parte de uma pesquisa pessoal sobre a questão, juntando material para um livro, para entender os problemas da cobertura jornalística em relação à questão. Eu estava uma noite em um bar em Beit Sahour, uma cidade ao sul da Cisjordânia, colada em Bethlehem. Estava com alguns palestinos assistindo ao jogo Egito X Argélia, pela semi-final da Copa Africana de Seleções. E o impressionante, divertido, era que todos os palestinos torciam para a Argélia. Isso porque na época o governo egípcio, ainda sob o controle de Mubarak, era uma espécie de parceiro de Israel no cerco à Faixa de Gaza, já que controlava a passagem com a cidade de Rafah, que faz fronteira com o Egito.
Era algo incrível jornalisticamente. Era a manifestação do conflito de uma outra forma. Não era a amenização do conflito, mas ele podia ser enxergado através de uma outra linguagem. Um dos palestinos que estavam ali, o Yasser, que depois virou personagem do filme, disse: “cara, você precisa ver isso durante a Copa do Mundo”. E foi isso que fomos fazer. Falei com o Lucas (Justiniano) por Skype e ele gostou da ideia na hora. Depois ele falou com os outros dois diretores (José Menezes e João Carlos Assumpção) e o projeto foi ganhando corpo. A ideia foi lançar um olhar sobre a sociedade Israel/Palestina. Entender como as dinâmicas internas sociais alimentam o conflito e como o conflito impacta de volta essas sociedades. E, na minha visão particular, formam a sociedade “do conflito”. A Copa, como festa de nacionalidades, mais do que o futebol em si, entrou como o pano de fundo e um iniciador para as conversas que queríamos ter.
Como se desenvolveu o processo de produção? Houve financiamento? Foram feitos contatos prévios com pessoas ou organizações palestinas ou israelenses?
O processo todo nós bancamos do bolso, desde a pesquisa até as filmagens lá. Agora, em 2011, conseguimos um financiamento para a finalização do filme através de um Programa de Incentivo do Governo Estadual (Proac), e conseguimos o aporte de dinheiro da empresa São Manoel. Os contatos prévios, na maioria, foram os que eu havia feito na minha viagem de pesquisa, nos três meses que fiquei em Israel e Cisjordânia, logo no início de 2010. Então alguns personagens que entraram eu já conhecia. Outros achamos em uma segunda fase de procura, quinze dias antes do início da Copa, aí com toda a equipe já mais voltada para o filme.
Quanto tempo durou cada etapa do processo? Filmagem, edição etc?
Bom, se considerarmos o meu tempo de pesquisa por lá, começamos em janeiro de 2010. Passei três meses – de janeiro a março. Depois voltei ao Brasil e foram mais dois meses de planejamento de toda a equipe. No final de maio, fomos todos para lá, por dois meses, para as filmagens. Voltamos no final de julho. De agosto a dezembro, assistimos todo o material – tínhamos cerca de 80 horas de filmagens - e começamos a selecionar o que ia entrar. Daí pra frente, a partir de janeiro, depois de algumas reuniões, Lucas e eu começamos a trabalhar no roteiro simultaneamente à montagem. E fazíamos reuniões periódicas todos os diretores, para que eles pudessem acompanhar e opinar sobre o que estava sendo feito. Acho que a história e o corte final ficaram prontos por volta de abril. Nesse momento, mostramos o filme para nossos produtores executivos – Gal Buitoni e Luiz Ferraz - e aí batemos o martelo. A partir daí, acho que mais dois meses, até início de junho, foram detalhes de finalização. No total, podemos dizer que fizemos esse filme em um ano e meio.
Como tem sido a distribuição do filme? Ele será exibido em mostras ou também no circuito comercial?
Por enquanto está sendo exibido exclusivamente em mostras e festivais, mas ainda temos planejado exibições em escolas e faculdades. Ele vai entrar no circuito comercial, mas ainda estamos em negociações, não há previsão.
Quais foram as maiores surpresas encontradas pela equipe durante as filmagens? Houve alguma dificuldade ou restrição imposta por Israel às filmagens? Algum fato curioso?
Acho que as restrições foram as que normalmente aconteceriam. Quando passávamos por um posto de controle, pediam que não filmássemos. Mas não lembro de algo realmente problemático em relação às filmagens.
Curioso, o Lucas gosta de contar uma história engraçada. Quando estávamos em Hebron, um dos lojistas palestinos da Cidade Velha, ocupada pelo exército israelense, pediu que ele sentasse em sua loja. Os palestinos por lá fazem isso com frequência, são muito hospitaleiros, te chamam para tomar um chá. Então o Lucas estava por lá e o cara colocou a música tema da Copa no celular dele, e isso chamou a atenção das pessoas que passavam. E o lojista falava para todas que ele era brasileiro. Todo mundo parava e ia dar oi. Ele virou atração. Disse que se sentiu como atração de zoológico. Sobre surpresas, olha, não sei.
Acho que as surpresas vêm quando você não encontra o conflito, quando você anda por aquele lugar e algo diferente te surpreende. Você espera a violência, nem que seja de forma latente, no convívio social. E isso é facilmente visto em Jerusalém, por exemplo. A impressão é que nos lugares em que palestinos e israelenses se cruzam, eles não se olham, eles existem em universos paralelos. Esse é o normal de lá.
Mas uma coisa que me marcou foi minha chegada na primeira viagem. Da primeira vez, eu desci em Amã, na Jordânia (da segunda vez fomos direto para Tel Aviv), e então cruzei a fronteira entre Jordânia e a Cisjordânia ocupada, controlada do lado palestino pelos israelenses. Não esqueço uma cena. O lance todo é que lá você pode passar horas sendo interrogado ou então apenas esperando se vão te dar um visto ou não. Aí você faz o pedido, ele pode demorar ou vir rápido, enfim. Em um momento, um agente de imigração israelense veio como um passaporte na mão, era o passaporte de um palestino, e começou a gritar o nome dele. Ele tinha sido liberado para entrar. E chamou de novo, e nada do cara responder. Então alguns amigos dele apontaram para um sujeito ajoelhado no chão, fazendo a reza da tarde. O homem não parou a reza, sabia que seu nome havia sido chamado, mas não interrompeu a reza. O agente não reagiu. Ficou ali, apoiado num banco, em silêncio, esperou o cara acabar a reza pacientemente e então devolveu os documentos para ele.