O “Livro da alma”, de Avicena, recebe a primeira tradução direta para o português

Sex, 29/04/2011 - 11:52

 

Miguel Attie Filho, professor especializado em filosofia árabe, foi o responsável por esse importante trabalho de resgate da obra de um grande pensadorO filósofo persa Ibn Sina, também conhecido como Avicena, escreveu o “Livro da alma” em 1027. Médico, astrônomo, pensador que transitava entre todas as disciplinas, Avicena representa o ponto alto da filosofia escrita árabe, a falsafa. Mas, engana-se quem acha que seus escritos ficaram restritos ao mundo árabe. A falsafa bebeu diretamente na fonte da cultura clássica grega, dialogando com a obra de nomes como Aristóteles, e, posteriormente, já em âmbito europeu, com figuras como São Tomás de Aquino. Vem daí a imensa importância do trabalho de tradução direta para o português de “Livro da alma”, realizado pelo professor Miguel Attie Filho. Não se trata somente de tornar acessível um texto relacionado à filosofia árabe, mas de demonstrar que a forma como o conhecimento tornou-se compartimentado – e particularmente cingido entre os conceitos de Oriente e Ocidente – está na contramão do intenso diálogo que propiciou que obras fundamentais como essa fossem escritas. Segundo Attie, a história do pensamento é uma só, e é isso que demonstra o estudo da obra de Avicena, que foi influenciado e influenciou culturas aparamente distintas. Publicado pela editora Globo, o livro está disponível em diversas livrarias. Professor Livre-Docente de Filosofia e História do Pensamento Árabe do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Miguel Attie dedica-se à pesquisa e tradução da filosofia escrita em árabe, principalmente nas obras de (Avicena), Al-Kindi, Al-Farabi e Ibn Rushd (Averrósi). Mas também concentra esforços na difusão da reconstrução e crítica da história do pensamento universal. Seu trabalho pode ser conhecido por meio de dois sites "Falsafa -  Filosofia Árabe” e  "Marcas e Pensamentos". Confira abaixo a entrevista de Miguel Attie Filho para o ICArabe.Esta tradução de “Livro da alma” é a primeira realizada diretamente para o português? “Livro da alma” foi escrito em 1027, e em 1250 foi traduzido para o latim. Em 1950, num movimento de resgate desses materiais nas universidades europeias, foi feita uma tradução para o francês, a partir da tradução latina. Esta é a primeira tradução feita diretamente do árabe para o português, em diálogo com as outras duas. Mas o trabalho não se restringe apenas à tradução, foi preciso reformular o vocabulário e explicar diversos conceitos. Houve também o trabalho de criação do glossário.A obra de Avicena dialogou com o pensamento europeu?Sim. A obra influencia e dialoga tanto com o pensamento oriental como ocidental. É uma das alavancas da metafísica iraniana. A partir da tradução para o latim, contribuiu para a reconstrução do pensamento cristão. São Tomás de Aquino dialoga com Avicena, que é uma figura central que antecede essa cisão entre pensamento oriental e ocidental. Os árabes guardaram a cultura clássica e a transferiram para a Europa. O pensamento europeu – inclusive a produção dos teólogos cristãos – vem da tradição Greco-árabe. Posteriormente, a retomada dos clássicos gregos cinde as questões ciência e teologia. A filosofia grega, assim como a árabe, não trata da questão religiosa. Dessa forma, apesar de se chamar “Livro da alma”, a obra de Avicena não fala da perspectiva religiosa, mas segue a tradição de Platão e Aristóteles. Os árabes não recebem a filosofia com a censura imposta pela religião, são herdeiros da tradição filosófica grega.Como a obra de Avicena se insere na história da falsafa, a filosofia escrita em árabe?A falsafa tem seu momento de intensa produção entre os séculos IX e XV, sendo que Avicena representa seu ápice, pois viveu em um momento político favorável e fez o recolhimento da tradição anterior, utilizando conceitos de histórico muito longo. Avicena produziu uma enciclopédia, Al Sifa, ou Cura da alma, de 12 volumes, reunindo todo o conhecimento disponível na época. Além de filósofo, Avicena foi médico, astrônomo e teve contato com todas as disciplinas. O “Livro da alma” é uma das seções desta enciclopédia, dentro das ciências naturais, e estuda o movimento dos corpos na natureza. Esta obra segue a divisão das ciências proposta por Aristóteles, e traz a fusão de várias teorias, inspirando diversos autores posteriores.O que se sabe da figura de Avicena?O filósofo Avicena deixou uma autobiografia, o que permite que tenhamos contato com acontecimentos de sua vida. A obra foi completada por um discípulo após sua morte e trata-se de uma fonte de informações muito interessante. Avicena se formou nos estudos da ciência do Alcorão e aos 10 anos foi introduzido nas chamadas ciências intelectuais, matemática, lógica. Aprendeu medicina por conta própria e tornou-se médico conhecido na região dos atuais Uzbequistão e Irã. Produziu obras de filosofia e medicina, tendo recolhido em suas obras os conhecimentos disponíveis sobre essas ciências. Em sua opinião, o interesse por obras de origem árabe tem aumentado no Brasil?Acredito que esta é uma tendência do mercado editorial, não só o brasileiro. A partir da década de 1950, houve um aumento na busca e procura por textos de origem árabe, persa, indiana, e também uma abertura para a pesquisa. Nesse sentido, o professor Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento foi pioneiro, pois introduziu o estudo da filosofia árabe no Brasil.Qual a importância do estudo de textos como o “Livro da alma” atualmente?A leitura de obras como essa ajuda a costurar a história do pensamento. Avicena ajuda a uniras vozes de toda a civilização. Enxergo a civilização planetária como uma só, mas hoje a visão de cultura e de civilização vigente diz que existem várias manifestações, separadas. No século XXI devemos procurar evidenciar as ligações existentes entre as várias culturas, contribuindo para diminuir o estranhamento em relação à figura do outro. A partir do entendimento, talvez vejamos que o “outro” não é tão “outro” assim. É lógico que as particularidades são importantes para a formação das identidades, mas isso nos ajudaria a desmontar paradigmas como o do Ocidente e Oriente.

Miguel Attie Filho, professor especializado em filosofia árabe, foi o responsável por esse importante trabalho de resgate da obra de um grande pensador

 

O filósofo persa Ibn Sina, também conhecido como Avicena, escreveu o “Livro da alma” por volta de 1027. Médico, astrônomo, pensador que transitava entre todas as disciplinas, Avicena representa o ponto alto da filosofia escrita árabe, a falsafa.

Mas, engana-se quem acha que seus escritos ficaram restritos ao mundo árabe. A falsafa bebeu diretamente na fonte da cultura clássica grega, dialogando com a obra de nomes como Aristóteles, e, posteriormente, já em âmbito europeu, com figuras como São Tomás de Aquino.

 Vem daí a imensa importância do trabalho de tradução direta para o português do “Livro da alma”, realizado pelo professor Miguel Attie Filho. Não se trata somente de tornar acessível um texto relacionado à filosofia árabe, mas de demonstrar que a forma como o conhecimento tornou-se compartimentado – e particularmente cindido entre os conceitos de Oriente e Ocidente – está na contramão do intenso diálogo que propiciou que obras fundamentais como essa fossem escritas. Segundo Attie, a história do pensamento é uma só, e é isso que demonstra o estudo da obra de Avicena, que foi influenciado e influenciou culturas aparamente distintas. Publicado pela editora Globo, o livro está disponível em diversas livrarias. 

Professor Livre-Docente de Filosofia e História do Pensamento Árabe do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Miguel Attie dedica-se à pesquisa e tradução da filosofia escrita em árabe, principalmente nas obras de Ibn Sina (Avicena), Al-Kindi, Al-Farabi e Ibn Rushd (Averróis). Mas também concentra esforços na difusão da reconstrução e crítica da história do pensamento universal. Seu trabalho pode ser conhecido por meio de dois sites "Falsafa -  Filosofia Árabe” e  "Marcas e Pensamentos". 

Confira abaixo a entrevista de Miguel Attie Filho para o ICArabe.

Esta tradução do “Livro da alma” é a primeira realizada diretamente para o português?

 O “Livro da alma” foi escrito por volta de 1027 d.C, e em 1152 foi traduzido para o latim. Em 1950, num movimento de resgate desses materiais nas universidades europeias, foi feita uma edição do texto árabe acompanhada de uma tradução para o francês e, na década de 1970, foi editada a tradução latina. Esta é a primeira tradução feita diretamente do árabe para o português, em diálogo com as outras duas. Mas o trabalho não se restringe apenas à tradução, foi preciso reformular o vocabulário e explicar diversos conceitos. Houve também o trabalho de criação do glossário.

A obra de Avicena dialogou com o pensamento europeu?

Sim. A obra influencia e dialoga tanto com o pensamento que se costuma considerar “oriental” como com o “ocidental”. É uma das alavancas da metafísica iraniana. A partir da tradução para o latim, contribuiu para a reconstrução do pensamento cristão. São Tomás de Aquino dialoga com Avicena, que é uma figura central que antecede essa cisão entre pensamento oriental e ocidental. Os árabes guardaram a cultura clássica e a transferiram para a Europa. O pensamento europeu – inclusive a produção dos teólogos cristãos – vem da tradição Greco-árabe. Posteriormente, a retomada dos clássicos gregos cinde as questões entre ciência e teologia. A filosofia grega, assim como a árabe, não trata da questão religiosa. Dessa forma, apesar de se chamar “Livro da alma”, a obra de Avicena não fala da perspectiva religiosa, mas segue a tradição de Platão e Aristóteles. Os árabes não recebem a filosofia com a censura imposta pela religião, são herdeiros da tradição filosófica grega.

Como a obra de Avicena se insere na história da falsafa, a filosofia escrita em árabe?

A falsafa tem seu momento de intensa produção entre os séculos IX e XV d.C., sendo que Avicena representa seu ápice, pois viveu em um momento político favorável e fez o recolhimento da tradição anterior, utilizando conceitos de histórico muito longo. Avicena produziu uma enciclopédia, “Al Shifa”, isto é “A Cura” da alma, em 12 volumes, reunindo todo o conhecimento disponível na época. Além de filósofo, Avicena foi médico, astrônomo e teve contato com todas as disciplinas. O “Livro da alma” é uma das seções desta enciclopédia, dentro das ciências naturais, e estuda o movimento dos corpos na natureza. Esta obra segue a divisão das ciências proposta por Aristóteles, e traz a fusão de várias teorias, inspirando diversos autores posteriores.

O que se sabe da figura de Avicena?

O filósofo Avicena deixou uma autobiografia, o que permite que tenhamos contato com acontecimentos de sua vida. A obra foi completada por um discípulo após sua morte e trata-se de uma fonte de informações muito interessante. Avicena se formou nos estudos da ciência do Alcorão e aos 10 anos foi introduzido nas chamadas ciências intelectuais, matemática, ciências naturais, metafísica etc. Aprendeu medicina por conta própria e tornou-se médico conhecido na região dos atuais Uzbequistão e Irã. Produziu obras de filosofia e medicina, tendo recolhido em suas obras os conhecimentos disponíveis sobre essas ciências. 

Em sua opinião, o interesse por obras de origem árabe tem aumentado no Brasil?

Acredito que esta é uma tendência do mercado editorial, não só o brasileiro. A partir da década de 1950, houve um aumento na busca e procura por textos de origem árabe, persa, indiana, e também uma abertura para a pesquisa. Nesse sentido, o professor Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento foi pioneiro, pois introduziu o estudo da filosofia árabe no Brasil.

Qual a importância do estudo de textos como o “Livro da alma” atualmente?

A leitura de obras como essa ajuda a costurar a história do pensamento. Avicena ajuda a unir as vozes de toda a civilização. Enxergo a civilização planetária como uma só, mas hoje a visão de cultura e de civilização vigente diz que existem várias manifestações, separadas. No século XXI devemos procurar evidenciar as ligações existentes entre as várias culturas, contribuindo para diminuir o estranhamento em relação à figura do outro. A partir do entendimento, talvez vejamos que o “outro” não é tão “outro” assim. É lógico que as particularidades são importantes para a formação das identidades, mas isso nos ajudaria a desmontar paradigmas como o do Ocidente e Oriente.