Região caminha para o projeto isralense do Novo Oriente Médio
Leia a entrevista da jornalista egípcia que esteve no Brasil e participou da Mostra Amrik, promovida pelo Icarabe. Ela fala sobre a fabricação do choque de civilizações e de como a região está sendo redesenhada após os ataques israelenses ao Líbano. Icarabe: Na sua palestra, você procurou enfatizar o problema da fabricação do choque de civilizações e do conceito de que existe uma cultura superior e uma cultura inferior, e como isso acaba servindo de justificativa para ataques como os que ocorreram no Líbano. Como isso ocorre aos olhos dos árabes? Mona: Claro que não há uma coisa como uma cultura superior e uma cultura inferior, mas o que tentava argumentar é que depois do fim da Guerra Fria, do desmantelamento da União Soviética e do fim do inimigo comunista, a máquina da guerra precisava de novos inimigos. Havia a necessidade de manter a indústria da guerra que está por trás da economia dos Estados Unidos. A partir daí, começa a fabricação do choque de civilizações. Um famoso orientalista, Bernard Lewis, escreveu, em 1990, que nós temos um choque de culturas ou de civilizações, ou seja, há essas pessoas e culturas que são aliens, que não pertencem à cultura cristã ou cultura judaica. A origem dessa hipótese começa com pessoas extremamente racistas, como os antigos colonialistas, e foram tomadas pelo ‘establishment’ contemporâneo e pela mídia dos Estados Unidos e feitas maiores e maiores, como com (Samuel) Huntington, em 1993. O que estava tentando explicar era que todas essas hipóteses são partes do projeto norte-americano que no tempo de George Bush Pai foi chamado de Nova Ordem Mundial e que com George Jr. é chamado de século americano, ter o século XXI dominado pelos Estados Unidos. É como se eu inventasse uma mentira para persuadir você a fazer algo, e aí eu mesma fico convencida dessa mentira que inventei. Essa é a pior parte disso. Foi dito na fabricação desse choque de civilizações que os muçulmanos odeiam a modernidade, que vão destruir a cultura ocidental porque são irracionais e isso se completa quando o Ocidente começa - principalmente os Estados Unidos e Israel, no mundo árabe - a atingir com força brutal, como aconteceu com o Líbano, como acontece com a Palestina. Essas pessoas, da “cultura inferior”, começam a acreditar que os “superiores” estão contra “nós” porque somos muçulmanos. Aí tem início coisas como a Al Qaeda ou Osama Bin Laden, que são cruzados. A ironia é que, tudo bem, talvez Bush e Dick Cheney realmente acreditem nisso, que são cristãos e que são superiores. Bush acredita em uma missão messiânica, ele acredita que Deus realmente fala com ele, então ele diz ‘Nós estamos em uma cruzada’. Mas do outro lado, você tem esses loucos muçulmanos, que realmente sentem injustiça em toda essa conjuntura, mas não entendem o mundo no qual estão, com a opressão e os opressores, e dizem: ‘Eles não gostam de nós, eles estão atacando tão brutalmente, não porque eles querem nosso petróleo, não porque querem nos colonizar, mas porque nós somos muçulmanos e eles são cristãos’. A partir daí, a fabricação se realiza e o conflito toma parte desse canto do mundo. Icarabe: Mas como fica o Hizbollah, por exemplo, que no “Ocidente” é retratado como a Al Qaeda? Não há distorção dos objetivos do Hizbollah, mais ligados à política, quando se tratam todos de forma igual, como muçulmanos irracionais e loucos? Mona: Uma coisa importante a se destacar nos conflitos atuais é que o Hizbollah não é a Al Qaeda, não é Osama Bin Laden ou Al-Zawahri. Nasrallah é muito sensível. Sem seu turbante e suas roupas religiosas, ele poderia ter sido Che Guevara. Ele fala com muita sensibilidade, com muito equilíbrio. Ele disse a todo o momento, ‘nós não queremos ferir civis, mesmo que sejam israelenses, mas se atingirem Beirute, vamos atacar com mísseis’. Eles sabiam que os mísseis do Hizbollah não tinham a tecnologia que os aviões e as armas de Israel têm, mas impuseram uma resistência: ‘não vamos esperar deitados ou covardemente, não somos escravos, nós sim temos dignidade’, disseram. Acho que por isso eles queriam liquidar o Hizbollah, que não é uma força do comunismo, é islâmica na ideologia, mas com pessoas muito sensíveis, que não matam indiscriminadamente como Zawahri ou Bin laden. Mas, ainda que o Hizbollah aja racional e sensivelmente, pintam um inimigo que é irracional, louco, contra “nossa” civilização, fascistas. Repetem este lixo, não importa o que aconteça. E é isso que faz com que pessoas simples, pobres, que vivem em vilas, nas cidades que foram atingidas, no caso do Líbano, apóiem o Hizbollah. Icarabe: Voltando à sua análise do choque de civilizações, então você acredita que essa fabricação se realiza hoje no Oriente Médio pelo confronto de dois radicalismos, um, Estados Unidos/Israel, o outro, organizações como a Al Qaeda? Mona: Com certeza. E pode levar a um confronto desastroso. Digo isso porque me parece que eles estão empurrando o mundo para um confronto global. O que eles estão fazendo no Iraque é loucura, mas eles estão obtendo sucesso. Eles são criminosos, mas eles obtêm sucesso. Você pode dizer que no longo prazo, eles pegaram um país inteiro, fragmentaram em pedaços e nos próximos dez anos este país viverá em guerra civil. Isso poderia ter sido evitado antes da guerra. Eles poderiam ter forçado Saddam a deixar o poder, poderiam ter matado ou agido através de ações planejadas e previstas pela oposição do Iraque que tornariam o país unido, mas parece que intencionalmente dividiram o país. E aqui há que se fazer uma ressalva, não é verdade que Israel seja um servente dos Estados Unidos. Eles servem-se mutuamente. Por isso trabalham muito próximos. Pois o que acontece no Iraque também é uma agenda israelense. O Iraque tem duas coisas, reservas financeiras, o petróleo - e por isso era um país rico - e pessoas educadas, um país que potencialmente podia ser um perigo. Por exemplo, o Egito tem pessoas educadas e intelectuais, “Israel não é amado pelo Egito”, mas o Egito não é rico, é totalmente dependente dos Estados Unidos. O Egito é o segundo recipiente de dinheiro da região, depois de Israel. Então, eles pensam: ‘o Egito pode ser controlado pelos Estados Unidos’. Mas o Iraque não podia ser controlado. Israel tem um plano para toda a região, como mantê-la fragmentada e fraca, plano que também se adapta muito bem aos interesses dos Estados Unidos na região, onde a América quer supremacia. Desse modo, põe todo o mundo em ordem. Icarabe: Qual seria o próximo alvo? Fala-se muito do Irã. Um ataque ao Irã não desenharia um cenário ainda mais desastroso na região? Mona: Eles puderam atacar o Iraque, pois lá havia um ditador, um fascista. O Iraque tinha alguém que nenhum iraquiano gostava, era uma república de medo e terror. Já o Irã tem um regime popular. Talvez metade das pessoas não goste do regime, mas a outra metade gosta. A elite secular, educada, não gosta das restrições que existem, mas ainda assim podem lidar com o regime e se opor a ele. Ela pode sair e receber um prêmio Nobel, voltar e não ser torturada e morta. O Irã também tem um bom exército, mas o Iraque também tinha e foi removido. No entanto, não penso que vão forçar uma guerra com o Irã, ainda que haja uma série de jornais norte-americanos que diz ‘a próxima guerra será contra o Irã’. Acho que vão tentar estrangular de fora, em vez de atacar. Acredito que uma das razões de o Irã não ser o próximo alvo é que, talvez, em todo o mundo islâmico, seja o país que realmente faz o jogo político e que tem cartas na manga. O resto dos regimes árabes não tem nada. Eles são escravos e reféns, mesmo que não gostem, da administração americana. O Irã tem uma boa margem de manobra e isso, acho, está deixando os americanos loucos. Com a aventura no Iraque, o Irã ganhou um argumento de barganha, pois é muito influente dentro do país. Mais do que o Hizbollah, pois o Iraque é o maior país árabe que tem uma maioria xiita. E isso é um grande perigo para o resto dos regimes amigos dos Estados Unidos, para a Arábia Saudita e para o Bahrein, por exemplo. Para todos que têm preocupações em ter os xiitas do Iraque tomando a liderança e sendo apoiados, pois foram apoiados durante toda a luta contra Saddam, pelo Irã. Sua base era ali. Outra coisa, os Estados Unidos não poderiam ter entrado no Afeganistão sem o consentimento do Irã. E também no Iraque eles tiveram que conversar com os iranianos, a portas fechadas, para poder assegurar que pudessem fazer essa guerra sem a presença deles. Os iranianos deixaram que fizessem o plano inicial, mas agora é como areia movediça, estão sendo sugados para dentro do Iraque, como em um pântano. E os Estados Unidos sabem muito bem que o Irã, ao menos quando o momento chegar para uma estratégia de saída - eles querem sair, querem montar suas bases, querem seus contratos e investimentos em petróleo e vão tirar seus soldados dessa loucura - terá que ser feito com a ajuda do Irã, o país será um instrumento para essa saída. Não acho que, ainda que digam, que seja o Irã. Icarabe: Quem será, então? Mona: Acho que será a Síria, e não como foi no Líbano, uma guerra pelo ar e de bombardeios. Diziam que o Líbano foi uma guerra por proximidade, que o Hizbollah liderava uma guerra pelos interesses iranianos. É mais correto afirmar que Israel liderava uma guerra americana para ter toda a região redesenhada, rearranjada de acordo com os planos americanos. E alguns israelenses, generais israelenses especialmente, estavam bravos, diziam ‘o que nos fez realizar essa aventura foram interesses dos Estados Unidos e não de Israel’. Claro que não era bem assim e havia uma coalizão de interesses, mas parte desta guerra, no fim, e agora com a presença de forças internacionais, foi feita para monitorar as fronteiras sírias. Então o problema não se limita ao Líbano. É verdade que o Hizbollah lutou uma luta valente e heróica, mas, no fim, Israel e Estados Unidos também saem dessa guerra de forma vitoriosa. O rearranjo feito pelo Conselho de Segurança da ONU claramente é um rearranjo estadunidense, com a cumplicidade da União Européia. Os franceses, porque têm ligações históricas com o Líbano, adicionaram um detalhe aqui e outro ali, mas o acerto, com a chegada de forças internacionais, é americano. Icarabe: A ligação que geralmente era destacada e reiterada nos ataques de julho e agosto era a que ligava Hizbollah e Irã por intermédio da Síria. Israel seria a ponta de lança dos Estados Unidos e o Hizbollah dos iranianos, desligado do contexto local libanês e palestino. Me parece que a ligação principal para explicar as causas do conflito, do Hizbollah com os palestinos, foi ignorada no discurso ocidental? Mona: Exatamente. Eles procuram passar a imagem de que o Hizbollah é iraniano, certo? Bobagem. Tudo bem, digamos que ela exista. Mas essa ligação é mais complexa e antiga. Os xiitas que hoje ocupam o sul do Líbano foram as pessoas que transformaram o Irã em um país xiita. O Irã nem sempre foi um país xiita. Até a dinastia dos safávidas, 500 anos atrás, eles eram sunitas. A dinastia dos safávidas queria uma nova ideologia e eles, desse modo, consultaram clérigos e homens religiosos do sul do Líbano, de Jabal ‘Amil, um local tradicional de ensino xiita. Mas a ligação mais importante, como você diz, é a Palestina. Para os israelenses e estadunidenses, esse é o perigo do Líbano, os palestinos refugiados no Líbano atacados por invasões em 1972 e 1982 para acabar com a resistência. Na época, os palestinos treinaram muitos libaneses durante a Revolução Palestina. Com esses treinamentos, formaram-se muitos lutadores e milícias. O curioso agora é que são os libaneses que estão ensinando novas gerações de palestinos. Há essa ligação muito forte. Desde o “dia um” dessa guerra, Nasrallah queria negociar os três soldados juntos, E isso é o que os regimes árabes e mesmo a liderança palestina, da Fatah, de Abu Mazen (Mahmud Abbas), achavam muito perigoso. O problema foi que no terceiro dia dos ataques, os palestinos começaram a ter medo dessa ligação, não só Abbas, mas também o Hamas a partir desse momento. Houve um medo de que se iniciasse uma guerra ainda mais violenta e dura. Provavelmente o Hamas disse ao Hizbollah, ‘não, talvez isso vá abrir inferno’, então vamos conversar sobre o seqüestro de Gaza separadamente do seqüestro do Líbano. Mas Nasrallah sempre falou abertamente e disse ‘eu dedico esta operação aos nossos irmãos na Palestina’. Houve um momento, em que todo o mundo árabe e em partes de todo o mundo, como Japão e América Latina, havia solidariedade com os palestinos. Os palestinos são muito perigosos no mundo árabe para o status quo, eles são o foco de radicalização, eles são potencialmente a força que irá mexer com o status quo, por isso há um processo que busca isolá-los. Agora, só no Líbano há uma força em que as pessoas se solidarizam com os palestinos. E Israel tenta quebrar essa ligação remanescente. Essa é a ligação principal e enquanto houver uma guerra permanente na Palestina, na Cisjordânia e em Gaza, vai haver essa tensão. Icarabe: O Hizbollah aparece como um novo modelo de resistência política na região. Esse novo modelo, se você acredita que ele existe, seria uma ameaça aos regimes árabes? Mona: Toda a história da região, desde 1948, gira ao redor de Palestina e Israel. E desde Oslo, os israelenses isolaram os palestinos em bantustões e enclaves. Pelos acordos, israelenses e americanos acharam que tinham acabado com a guerra, que - com os enclaves e as regras que permitiriam aos palestinos governar a eletricidade, sua água e o esgoto, a segurança, como ocorriam com os bantustões na África do Sul - a guerra teria terminado. Mas quando os colonialistas acham que acabaram com o problema, é aí que explode a resistência. Então, ocorre esse processo a partir de Oslo. Primeiro, os palestinos pensam e olham Oslo com uma certa esperança: ‘desde 1948 sofremos uma colonização brutal. Então, apesar do discurso de paz, os apertos de mão, todo o processo como um espetáculo, como se fosse um filme, com toda a mídia, o hype, vendendo a idéia de um fato histórico, talvez isso vá levar a algum lugar’. Cinco ou seis anos depois, ficou claro aos palestinos que fizeram um péssimo acordo. Então, há a Segunda Intifada. E nesse contexto, há o crescimento das forças islâmicas no mundo árabe, como o Hizbollah, o Hamas e a Jihad. Isso ocorre depois que regimes que se proclamavam socialistas não foram bem-sucedidos. Isso ocorre no mundo todo, não apenas no mundo árabe, o retorno às identidades, e as pessoas descobriram, naquela região, que o islã é sua identidade. O Hizbollah é um fenômeno que aparece no meio dos anos 80. Nos 90, levam adiante uma guerrilha no sul do Líbano e conseguem fazer com que os israelenses se retirassem pela primeira vez de um território, no caso, o sul do Líbano, sem assinar tratados de paz. Então, é muito interessante ver que no lugar em que deveria haver grupos marxistas e de esquerda que falam da guerra do povo, ou da revolução do povo, essas coisas que vinham desde o tempo de Guevara, fossem forças islâmicas levando adiante a guerrilha do povo. Eles estão construindo um modelo diferente. Por exemplo, minha filha, tem 20 anos, cresceu numa época da paz, dos apertos de mão, com todos dizendo que as pessoas deveriam viver em paz, que devemos construir uma cultura de paz, todas essas noções falsas. Claro que todos amamos a paz, mas há toda a mídia da moda, esse lixo, e em paralelo a idéia do choque de civilizações. Para não ser um muçulmano enraivecido com a modernidade, a amável modernidade cristã e o ocidental, você tem que dizer ‘sim, senhor’. Ou você é um escravo total das potências ocidentais, ou então você é um fanático, um estúpido muçulmano, você é irracional, não entende nada e deve ser morto. Como quando mataram o brasileiro no subterrâneo de Londres. Se ele fosse um homem branco, não teriam tão desastradamente atirado nele. Um homem negro, de cor, é muçulmano e acabou. E acabou que veio a ser um brasileiro. E era apenas um passageiro, é loucura. Mas, voltando, esse tipo de modelo, que combina a cultura enraizada, é como se o Hizbollah estivesse chegando o mais perto possível da Teologia da Libertação. O desenvolvimento desse modelo é muito mais perigoso para o status quo, pois pode atingir uma amplitude de pessoas muito maior do que quando se falava de guerrilha, como os grupos antigos de marxistas costumavam fazer. Quando há pastores e pessoas que podem falar a mesma língua das avós e das mães, a realidade dessas pessoas, o alcance é maior. Por isso, o Hamas e Jihad ganharam algum poder na Palestina e, por isso, que Israel e Estados Unidos sufocaram e fizeram a União Européia sufocar a Palestina. Isso não tem precedentes, pessoas elegeram um governo ao parlamento e, então, você decide que não vai mais dar o dinheiro a eles. Isso porque eles percebem que há um modelo perigoso que se espalha pelo mundo árabe, e continuará a se espalhar, pois em cada país árabe há um movimento militante islâmico que é popular. Icarabe: Said costumava dizer que os árabes não sabem construir sua narrativa e que esse seria um dos pontos de fracasso no conflito com os israelenses. A Al-Jazeera representa alguma melhora? Mona: Said pertencia ao mundo árabe e pertencia ao Ocidente. Ele tinha um olho em como contar a sua narrativa para o Ocidente, que é algo, verdade, os árabes não sabem fazer. Mas isso é papel de pessoas como Said, como eu, que vivi 20 anos na Inglaterra. Não se pode esperar que um camponês egípcio seja capaz de contar essa narrativa, pois além de tudo, essas pessoas não estão interessadas em contar sua narrativa ao Ocidente, mas em contar sua história aos seus filhos, pois é isso que mantém a luta. O Hizbollah, por exemplo, sabe a narrativa dos palestinos. São pobres camponeses xiitas que sabem a narrativa dos palestinos que foram expulsos e chegaram aos campos de refugiados no final dos anos quarenta. Eram pessoas carregando chaves de suas casas antigas das quais foram expulsas e carregando os títulos de propriedade, avós que ainda lembram do que aconteceu. Essa é uma narrativa muito coerente, uma narrativa da resistência. A narrativa que se faz para o Ocidente, para que se ganhe apoiadores e mais solidariedade, não havia ninguém tão brilhante como Said para fazê-lo. Said é um caso muito especial. Ele é palestino, mas por sua origem rica, foi educado nas instituições de elite nos Estados Unidos - como Princeton, Harvard. Também era um pianista. E é isso que fazia com que fosse muito odiado pelos barões da mídia nos Estados Unidos ou por setores no Ocidente pró-Israel, pois eles não podiam apontar para ele e dizer ‘ele é o irracional, louco, idiota árabe’. Ele era alguém que tinha todas as conquistas e currículo admirados e pelos quais o Ocidente se orgulha. A Al-Jazeera é uma coisa bem misturada de coisas e é um caso muito interessante, pois ela é propriedade de um dos mais importantes agentes da CIA no Oriente Médio, o emir do Qatar, que deu um golpe contra seu pai instigado pelos agentes da CIA. Então, há uma peculiaridade na Al-Jazeera, porque ela foi formada para significar uma coisa, mas se desenvolveu e se tornou outra coisa completamente diferente. Ela foi formada para promover um tipo de abertura, como quando você tem uma panela de pressão e ela está prestes a explodir. Então, você abre uma válvula para diminuir a pressão. Seria algo como um clube de debates. Mas tiveram que trazer jornalistas e os jornalistas que chegaram vieram de vários países árabes, eram pessoas com suas paixões e convicções, e eram árabes. E nesse caso, você tem uma cobertura bem mais vibrante. Em algumas coisas, a cobertura da Al-Jazeera se dá muito bem. Na última guerra no Líbano, seus enviados libaneses foram fantásticos. Algumas pessoas que fizeram a cobertura nem eram apresentadores ou correspondentes. Eram pessoas que trabalhavam na administração da Jazeera e que se ofereceram para pegar um microfone e fazer reportagens de uma vila na fronteira com Israel. Em todos os lugares, havia mulheres que de forma apaixonada contavam histórias humanas. Então, a Al-Jazeera atingiu algo além de seu objetivo original, que era ter esse circo de debates. Mas, agora, o desafio real para a Jazeera é ter seu canal em inglês, coisa que eles tentam há tempos, mas que eles não conseguem construir. Eu não acredito, honestamente, que esse tipo de televisão será permitida. Estava vendo o nome das pessoas que eles recrutaram, são ingleses, pessoas que não têm credenciais e que vieram do mainstream britânico. É como se a Liga Árabe ou qualquer regime árabe quisesse produzir uma revista publicitária. E te digo uma coisa, quando Said estava vivo, e outras pessoas como Said, ele apresentava projetos, para a Liga Árabe e para os regimes árabes, que tinham o objetivo de fazer esse tipo vibrante e amplo de jornalismo e publicidade da causa árabe, mas os regimes árabes não se interessavam. Icarabe: Por quê? Mona: Os palestinos são perigosos para os regimes árabes. Minha geração, no final dos anos 60 e início dos 70, - de radicais, esquerdistas, marxistas, maoístas - nós dizíamos que libertar a Palestina passava por todas as capitais árabes. Naquele tempo, pensávamos que haveria uma revolução permanente por todo o mundo árabe (risos). Quarenta anos depois, percebe-se que sonho era aquele. Mas o fato permanece, que todos esses árabes radicais, árabes revolucionários, que eram perseguidos em seus países, voaram para a Revolução Palestina na Jordânia, antes do Setembro Negro, e para Beirute. Então, a Liga Árabe e os regimes não estão interessados nisso, estão interessados no tipo de propaganda oficial. Para ser hábil e contar a sua narrativa para o Ocidente , você tem que ter uma forte oposição e saber utilizar todas as suas forças, alguém como Edward Said foi. Alguém na Inglaterra ou na Alemanha, com atitudes como a do Instituto da Cultura Árabe, pois serão essas pessoas em todos esses países que serão capazes de construir uma narrativa coerente que possa se dirigir às pessoas do Ocidente. E também a pessoas que podem ter uma experiência parecida, como as minorias. Os árabes deveriam se dirigir aos nativo-americanos, aos afro-americanos, pois estas são as pessoas com um conhecimento e uma experiência que vão entender a opressão que os árabes sofrem. Mas nesse momento, e por um longo tempo, nos últimos 20 anos, os regimes árabes estão interessados nos departamentos de Estado dos governos, interessados em vir ao Brasil e tentar chegar ao Ministro das Relações Exteriores. Não estão interessados em conversar com este Instituto ou com a comunidade árabe. Estão interessados nos Estados Unidos, em sentar por horas em uma sala de espera do escritório de algum oficial de terceiro escalão, que é o assistente do assistente do assistente de Condoleezza Rice, no lugar de ir conversar com sociedades de afro-americanos ou de americanos nativos. Foi isso que os argelinos fizeram dentro da França, isso que os vietnamitas fizeram nos Estados Unidos. Icarabe: Você falou de um rearranjo e de um novo desenho para a região. Que arranjo será esse? Mona: Acredito que será algo como depois da Primeira Guerra Mundial, quando houve uma divisão estratégica geográfica entre as várias potencias, o acordo conhecido como Sykes-Picott. Claro que não estamos no começo do século XX, onde você traz um cara e dá a ele o principado das Arábias e diz que ele é rei de tal, mas há algo similar. A Palestina permanece o principal problema. O que acho que Estados Unidos e potências européias gostariam é de uma mudança para regimes mais estáveis, que permaneçam amigáveis às potências. Eles não estão felizes com os regimes no mundo árabe, que são totalmente dependentes dos Estados Unidos, mas não são nem populares nem estáveis, e ainda alimentam a ameaça de movimentos islâmicos que ganham força e podem substituí-los. O objetivo dos Estados Unidos e de Israel é fazer com que Síria assine um tratado de paz, como os que assinaram Egito e Jordânia com Israel. Desse modo, a tensão entre os governos acabaria e se chegaria a uma paz na guerra entre árabes e israelenses. Assim, se chegaria ao Novo Oriente Médio, que por sinal é uma visão israelense. Há um livro de Shimon Peres lançado em 1994 com esse nome. Esse Novo Oriente Médio seria basicamente Israel como o cérebro da região, sendo abastecido com trabalho barato e matérias-primas provindas de todo o mundo árabe. Existem pontes e estradas que seriam a ligação desse sistema, é um projeto muito detalhado que faz de Israel o dínamo de tudo isso. A região seria uma grande colônia americana e Israel o mandatário de tudo isso. Os israelenses empurraram os americanos para atingir essa conjuntura. E o fato é que estão sendo bem-sucedidos. Encontram uma resistência aqui e ali, têm um revés, mas depois dão dois passos a frente. Progridem lentamente. Encontra alguma oposição, como com o Hizbollah e o Hamas, uma eleição desfavorável no Egito, mas é pouca coisa. Israel já assinou acordos de zonas qualificadas de indústrias com o Egito. Isso tudo está no livro de Peres. E o mais importante sobre o plano israelense do Novo Oriente Médio é que os palestinos terão sua terra natal na Jordânia. Eles dizem ‘não’ ao retorno dos palestinos refugiados, isso é uma coisa fora de questão para os israelenses, ‘eles que vivam na Jordânia’, dizem. Querem também que os refugiados palestinos no Líbano sejam naturalizados. Quem está fora, esqueça. Icarabe: E esse projeto está obtendo sucesso? Mona: Sim. Isso depende também da quantidade de resistência, mas sim, está atingindo seus objetivos. Como qualquer projeto, encontra resistência, mas não dá indicações que os Estados Unidos estejam sendo derrotados. Claro que há uma resistência e é bom acumular experiências para o longo prazo, mas por enquanto o projeto avança. Destruir um projeto global dos Estados Unidos, nesse momento, dependeria também das pessoas dentro dos Estados Unidos e das potências ocidentais. Essas administrações e governos são um problema para essas populações, pois enquanto eles financiam projetos militares, há problemas de saúde e eles cortam benefícios sociais, coisas que foram conquistadas durante todo o século XX, com lutas e greves. E pelo lado de Israel, a não ser que os israelenses descubram que sustentar esse tipo de militarismo – todo o país é militarizado, desde seus mais jovens adolescentes – a não ser que os israelenses se cansem dessa forma de vida, isso trará para mais perto o fim de Israel como nós o conhecemos. Eu não quero jogar os judeus no mar, mas não vejo como Israel possa existir dessa maneira. Israel terá que ser outra coisa, desisraelizado, dessionizado, Israel sem o sionismo. Icarabe: Os árabes aceitariam Israel desse modo? Mona: Nós, árabes, crescemos com o slogan de uma Palestina secular e democrática em toda a terra histórica, o que significava que você sendo judeu, hindu ou cristão, não importa, poderia viver ali. Claro que os loucos, como os judeus americanos de Manhattan, vão ir embora. São pessoas que vieram – e alguns dos assentamentos são coisas irreais, loucuras -, são pessoas que mantêm um flat ali, pois é seu direito histórico retornar a Israel. Eles não vivem ali, não querem fazer nada dentro de Israel, mas enquanto nenhum palestino pode voltar, é seu direito ser israelense e ter um lugar em Israel. Mas esses judeus de Manhattan não ficariam nesse tipo de Israel, dessionizado, digamos assim. Nessa Israel, você acabaria por ter os pobres, os judeus safardis e judeus orientais, esses ficariam. Provavelmente, os judeus ricos binacionais, estadunidenses ou europeus, voltariam para seus países. Afinal, por que eles iriam querer viver em um país pobre, com população predominantemente árabe e oriental? Podem ir. (risos). Eles vão querer ir para suas casas melhores em Manhatan ou em Londres, mas em uma Israel como essa, não ficam.