Mulheres muçulmanas superando o colonialismo e o patriarcado

Qua, 21/11/2018 - 14:55

 

A maior luta tem sido, em primeiro lugar, sair das amarras do patriarcado que muitas famílias ainda impõem

Por Francirosy Campos Barbosa

As eleições nos EUA que elegeram duas muçulmanas, sendo uma de origem palestina e outra de origem somali, só comprovam o que eu já sabia há muito tempo. Mulheres muçulmanas estão na luta. A maior luta tem sido, em primeiro lugar, sair das amarras do patriarcado que muitas famílias ainda impõem sobre as mulheres com leituras literalistas de textos sagrados; a segunda é provar que mesmo usando lenço, elas não se diferenciam de outras mulheres e que são, sim, mulheres propositivas, que sabem o que querem sem abrir mão de sua fé e da sua religiosidade.

Os reflexos das lutas dessas mulheres eleitas podem ser encontrados em vários outros contextos, como por exemplo, durante a Primavera Árabe, quando chamei atenção ao fato de que as formas de organização das mulheres não eram recentes, a demanda já tinha sido construída[1], e não cabia mais pensar as mulheres muçulmanas como aquelas que esperam dentro de casa, e quando isso ocorria nunca foi uma espera passiva, entretanto, isso é pouco publicizado. Mulheres palestinas, curdas, saharauis tem histórias de resistência que poucos conhecem. As mulheres saharauis apresentam pautas de reivindicação pela autodeterminação do seu território no Sahara Ocidental e nesta luta estão lado a lado com os homens nas questões públicas e privadas, são elas a força do grupo, o alicerce da resistência de forma muito organizada como é possível conferir no artigo de Marcos Tenório – A intensa força das mulheres do deserto[2].

Nem todo o processo de colonialidade conseguiu suplantar a força e determinação dessas mulheres. Mulheres, essas, árabes-africanas-muçulmanas não se colocam e nem são colocadas como subjugadas, contudo, esses exemplos de resistência e feminismo nunca são citados em nossos repertórios ocidentais, talvez porque vivemos ainda sobre a égide colonial/colonizadora que só a luta de mulheres brancas e ocidentais importa.

É neste mapa de luta por sobrevivência e direitos, que considero importante as eleições americanas, que elegeram duas muçulmanas, uma mulher negra e uma de origem palestina. A eleição de Ilhan Omar e Rashida Tlaib trazem ao cenário político norte-americano uma configuração diferente. As pautas das deputadas eleitas buscam interlocução com questões que para as duas são caras, desde o respeito à religião que professam, mas não só, pois estão antenadas com os problemas sociais e a criminalização que sofrem os refugiados e as minorias de modo geral. A história de seus próprios países que resistem à colonização, à violação de direitos humanos é pano de fundo para as mulheres que se tornaram, como nos lembra Simone Beauvoir – não se nasce mulher, se torna mulher, com a explícita ideia de que somos construção cotidiana do que significa ser uma mulher que luta por seus direitos e pelo seu lugar no mundo. A eleição das duas deixa claro que nenhuma, nem outra, necessitam de ‘salvação’, para pensarmos nos termos de Lila Abu-Lughod que critica a ideia de que mulheres muçulmanas precisam ser ‘salvas’. É preciso compreender que elas necessitam de interlocução com seus pares, sejam esses homens ou mulheres e, certamente, este será o caminho tomado pelas deputadas.

Ilhan Omar foi eleita em 2016 para Câmara dos Deputados de Minnesota, sendo a primeira somali-americana, refugiada eleita para um cargo nos Estados Unidos e agora em 2018 é eleita ao Congresso dos EUA junto com Rashida Tlaib, muçulmana de origem palestina. Tlaib é advogada e desde 2009 está na carreira política, mas é a primeira vez que ocupa um assento no Congresso.

O lenço islâmico usado por Ilhan Omar é a marca de sua identidade religiosa que não deixa dúvida que mulheres muçulmanas com ou sem lenço estão comprometidas com as causas sociais. Omar disse em entrevista a CBS This Morning, depois de vencer sua eleição no 5º distrito de Minnesota, com 78% dos votos que o Congresso precisa "ter certeza de que estamos mudando o país para uma direção mais esperançosa, inclusiva e próspera". Ela também se refere da necessidade de acabar com a retórica do medo. Omar tem vários atributos na constituição da sua identidade que valorizam ainda mais sua vitória – ser muçulmana, negra, usar o hijab e ser refugiada somali – todos esses elementos delineiam uma mulher forte e ativa, que representará a todos esses grupos no governo.  A muçulmana de origem palestina Tlaib manifestou apoiou as iniciativas que promovessem a paz entre os dois Estados – Israel e Palestina -, mas ao apoiar o direito palestino de retorno recebeu retaliações da J Street[3] que não endossou sua candidatura.

"Os crentes, masculinos e femininos, são protetores ('awliyya) uns dos outros", al-Tawbah, 71

Importante dizer que no Islam mulheres não são proibidas de nada, inclusive de assumir cargos políticos. Há na história do Islam mulheres públicas, entretanto, muitas coisas relacionada às mulheres ficam em silêncio e a invisibilidade é que acaba se destacando. Por outro lado, penso que o mundo vem mudando e as mulheres, certamente, não vão retornar aos haréns descritos por Fatima Mernissi em Sonhos de Transgressão. E se o mundo muda as organizações islâmicas também vão assumindo seu novo papel, afinal os problemas atuais requerem esforço coletivo da comunidade seja de homens e de mulheres em atuações em diversos contextos, interno ou externo à casa. A casa, a rua e a mesquita são espaços conjugados na sociabilidade islâmica. O que faz um-a muçulmano-a na mesquita deve ser refletido no seu cotidiano.

Se a transmissão da educação para os filhos é prerrogativa de mulheres, hoje sabemos, que homens muçulmanos não conseguem assumir as responsabilidade de despesas da casa, e não só, mulheres se profissionalizam e querem exercer seu papel como profissionais de diversas ordens e este novo tempo de inserção na vida pública requer de pessoas religiosas um esforço de compreensão de que a felicidade de mulheres e homens passa também por suas atuações públicas e não apenas no universo do doméstico. Se as muçulmanas eleitas querem promover a justiça o fazem seguindo o que propõe o Alcorão, e portanto, a palavra de Deus, quando diz que o mais honrado é o mais justo e aquele que tem consciência de Deus. E no mundo rodeado de injustiças, nada mais implicado que promover a paz, sendo esta a essência do Islam.

Oh, humanidade! Nós criamos vós de um único par de um masculino e feminino, e feito vós em tribos e nações que vós podeis conhecer um ao outro (não que vós podeis desprezar um ao outro). O mais honrado de vós diante de Deus é o mais justo de vós (aquele que pratica o mais taqwa – consciência de Deus ou piedade) sura 49, aya 13 – al-Hujura

Quão distantes estamos de uma “nova” interpretação das fontes escriturárias islâmicas, que dá prioridade aos pobres, oprimidos, como faz a Teologia da Libertação de Leonardo Boff, e que insira a discussão da opressão de gênero, que ainda, infelizmente é encontrada em famílias e grupos muçulmanos. Há ainda muita reação reativa de lideranças e, por vezes, até protetora em relação ao mundo atual e aos-as muçulmanos-as, entretanto, no Brasil, busca-se cada vez mais uma abordagem ética aos princípios que pautem justiça social, meio ambiente e aos poucos vão se coadunando no processo educacional, quiçá, poderemos ver maiores discursos pautados na importância fundamental de estar ao lado de pessoas oprimidas e de promover a igualdade de gênero em conhecimento e espaço nas comunidades, isso não implica em tirar lugares de homens, mas sim, de promover a justiça ensinada pelo Profeta Mohammad em vários hadices e encontrado nos versículos do Alcorão.

Penso que mulheres muçulmanas no poder demonstram que as comunidades de modo geral devem e podem incentivar mulheres a executarem atividades que possam ser benéficas para sociedade como um todo, e principalmente, para desconstruir o estereótipo de muçulmanos não interessados em política, ou em vida social com outras pessoas fora do grupo étnico, religioso e social. A tarefa das comunidades islâmicas é repensar seus objetivos de contribuição para desenvolver uma ética individual e social que vá na contramão da violência que vemos crescer na atualidade. Ouvi esta semana de uma muçulmana que ‘muçulmano é resistência’ e completo dizendo que a comunidade não está sozinha nesta resistência, mas precisa buscar urgentemente o caminho do conhecimento e formar lideranças femininas e masculinas para que possam contribuir na redução do termo Islam x Ocidente.

Os jovens muçulmanos devem, sobretudo, investir no conhecimento e passarem a ser mais propositivos e se manterem fiéis aos princípios religiosos de modo que a justiça e a paz sejam os termos mais vivenciados. Os-As Muçulmanos-as não estão sozinhos-as na resistência global, mas precisam aprender a usar os meios de comunicação a fim de estabelecerem diálogos de alto nível que englobem conhecimento científico e/ou religioso de modo a não se isolar em mesquitas, grupos étnicos e sociais.  

Ilhan Omar e Rashida Tlaib reabriram as portas da representatividade e torna-se urgente aproveitar este momento e refletir sobre como caminha a comunidade muçulmana e como é possível crescer e contribuir para fora e para dentro da comunidade sem perder de vista os princípios éticos/religiosos islâmicos. O silenciamento político ou discursos sem profundidade política podem levar a abismos intransponíveis. Cabe aproveitar este momento de destaque na política internacional e produzir debates que almejem sempre um maior engajamento de muçulmanos-as nas proposições de justiça, respeito e acolhimento ao próximo, talvez assim, será possível vislumbrar lugares que destaquem as mulheres em todas as comunidades pondo fim a colonialidade de grupos ocidentais e ao patriarcado praticado para impedir a ascensão de mulheres a lugares que sempre são ocupados por homens. É preciso dar fim a política do silenciamento de mulheres e abrir espaços para novos engajamentos nesta nova ordem mundial no qual muçulmanos-as são o tempo todo associados-as ao que há de atraso, entretanto, bem sabemos, que a religião promove um avanço de direitos sociais desde o século VII, talvez ocupar o espaço público seja um caminho a ser construído. Insh´Allah.

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Francirosy Campos Barbosa é antropóloga, docente Associada ao Departamento de Psicologia da FFCLRP/USP, coordenadora do GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes.

[1] https://www.icarabe.org/mulher/para-alem-das-primaveras-voz-da-mulher-arabe-muculmana

[2] http://www.vermelho.org.br/noticia/316557-1

[3] J Street é um grupo de defesa liberal sem fins lucrativos com sede nos Estados Unidos cujo objetivo declarado é promover a liderança americana para acabar com os conflitos árabe-israelense e israelense-palestino de forma pacífica e diplomática. J Street foi incorporada em 29 de novembro de 2007.

 

Publicado originalmente no site: Instituto Brasil Palestina (IBRASPAL)