Jihadistas são todos muçulmanos
Fica aqui uma sugestão de dissertação/tese para quem quiser se aprofundar no tema. Aqui me interessa compreender as comunidades islâmicas no Brasil, essas que venho estudando desde 1998, e esclarecer porque a matéria dessa revista é perniciosa e não contribui para informar a realidade de uma comunidade.
Nesses 18 anos de pesquisa que serão completados neste mês de março vi muitas comunidades se formarem, vi muitas conversões, aproximações e distanciamentos da religião. O brasileiro certamente é um povo que gosta de religião e que se interessa em conhecer as diversas religiões que coexistem hoje no país. E o Islã, é certamente uma das que mais vem chamando a atenção, inclusive da imprensa, principalmente a partir do 11 de Setembro. Infelizmente, nem todos têm ainda a boa vontade de conhecer por dentro as comunidades e conhecer suas lideranças, suas histórias, o que fazem, preferem generalizar a partir de informações escassas que veem pipocar nas redes.
Este é o jornalismo que não me atrai e não atrai aos bons jornalistas, porque ele simplesmente não fala da realidade e não mostra a conjuntura desses grupos, mas tenta atrelar sempre ao que há de pior, sem, é claro, uma pesquisa adequada dos agentes e sujeitos da ação. Se produz um jornalismo factóide para vender revista e desinformar.
A comunidade de Embu das Artes, hoje conhecida como Mussala al Rahmah (Casa da Misericórdia) coordenada por Cesar Kaab, foi uma das comunidades pesquisadas por uma orientanda minha de mestrado entre os anos de 2009 e 2011. A dissertação apresentada no Instituto de Artes da Unicamp teve como ponto central Hip Hop e Islã**. Era com brilho no olhar que eu via minha aluna, iniciante na pesquisa etnográfica, relatar as longas conversas com Kaab, um homem que veio da probreza, que passou por todas as mazelas daqueles que nasceram na periferia, mas que não se entregam, porque sabem que o único instrumento que tem é Deus e a luta por justiça social.
É assim que todos os dias este homem se levanta para fazer sua oração antes do sol nascer e começar seu trabalho cultural, social e religioso na favela, onde o poder público não chega e quando chega é no período eleitoral. O Centro Cultural Zumaluma, coordenado por ele, promove debates, cursos, oficinas para jovens e para comunidade do Embu. Lá que estive em 2014 discutindo com outras mulheres: negras e brancas, de outras religiões e pertencimentos políticos variados, o papel da mulher na sociedade. Aprendi muito mais do que “ensinei”, foi uma tarde memorável entre mulheres e homens com saberes diversos. Esse é o homem que a revista sugere sutilmente como sendo um dos aliciadores de jovens para o extremismo/terrorismo.
Alguém que promove a cultura em seu bairro, que tem de falar com traficantes a lideres religiosos de outras denominações, que se expõe com sua roupa religiosa em sua quebrada, que atende a todos sem distinção, seja Sheik, pobre, negro, rico, professor, analfabeto. Um homem preocupado com a juventude, com os caminhos que estão percorrendo, porque já sentiu na pele o que é ser desqualificado, o que é não ter um lugar. Fica fácil para um jornalista da redação dizer que esse sujeito é um extremista. Só se for um extremista na luta por justiça social...
Talvez, seja difícil ainda para jornalistas e outras pessoas entenderem o conceito de Jihad, traduzido equivocadamente como Guerra Santa (em referência às Cruzadas). A palavra Jihad vem da palavra árabe ja-ha-ba que significa esforço, empenho, dedicação, tanto que a palavra Ijtihad, um dos termos da Jurisprudência Islâmica, significa esforço intelectual. São dois os principais conceitos de jihad: jihad nafs (esforço individual, aquele que vai lidar com o ego de cada muçulmano para que se esforce a ser uma pessoa melhor), jihad como guerra (qital), quando o muçulmano tem que se defender, resistir às invasões, às agressões, ao colonialismo, como podemos ver na Palestina, que resiste a tanta violência promovida pelos sionistas israelenses. Essa é a sua Jihad, resistir aos ataques e à violência perpretada há mais de 60 anos em suas terras. Eles jamais vão se render à violência, vão resistir, porque a resistência é alcorânica, o direito à defesa é alcorânico.
O fato de alguns grupos como Daesh (Isis/Estado Islâmico do Iraque e Síria), Boko Haram da Nigéria utilizarem a Sharia (Lei Islâmica) de forma literalista, isto é, sem considerar os contextos, as realidades é no mínimo dizer que não praticam a Ijtihad (interpretação), que é justamente uma forma de compreensão/interpretação das fontes islâmicas, dando os devidos aferimentos do que significa ser muçulmano e como agir com aqueles que são diferentes.
A ijtihad é um esforço individual e coletivo de juristas para produzir uma explicação da mensagem religiosa, desconsiderar este instrumento de jurisprudência islâmica, como os demais (ijima – consenso; qiyas – analogias; fatwa - decreto) é não levar a sério a Ciências Islâmicas. O que esses grupos entendem de Ciências Islâmicas? A meu ver, nada. Apenas reproduzem de forma seca e sem entendimento profundo o que significam as fontes da tradição islâmica. Falta conhecimento da própria religião, que dizem seguir. Estão em discordância até com o próprio termo que significa ISLAM, que é paz. Muçulmano é aquele que se entrega a religião. As fontes islâmicas não podem ser lidas sem orientação e profundo conhecimento dos termos em árabes, pois as traduções (lembrando que a etimologia da palavra tradução é traição) não dão conta do que de fato cada palavra representa.
Como antropóloga posso dizer, sem sombra de dúvida, que o Ilm al-Akhlãq (Ciência da Ética, valores morais, comportamento)*** é um exercício de alteridade constante entre os muçulmanos que têm conhecimento, e são esses que infelizmente não são ouvidos pela mídia, e as pessoas de senso comum. Reafirmo que todos os muçulmanos são jihadistas, pois é obrigação de todos o esforço, a dedicação e o empenho em suas atividades. Se se perguntar a um professor muçulmano qual é a sua jihad, ele dirá que é ser um professor melhor a cada dia. Se se perguntar a um médico, advogado, pedreiro, agricultor, todos vão dizer que a sua jihad é se dedicar em fazer sua atividade cada dia melhor e se empenhar em serem seres bons muçulmanos. Esta é a jihad maior de todo muçulmano.
Está faltando um pouco, ou muito, de jihadismo em alguns jornalistas para compreender a diversidade ímpar que são as comunidades islâmicas no Brasil.
* Francirosy Campos Barbosa é professora de Antropologia da USP e especialista em islamismo.
*Tomassi, Bianca. Assalamu Aleikum Favela: a performance islâmica. Dissertação de Mestrado, IA/UNICAMP, 2011.
** Sugiro a leitura do livro Le Génie de l`Islam: initiation à ses fondements, sa spiritualité et
Publicado originalmente no site da Revista Caros Amigos
http://carosamigos.com.br/index.php/artigos-e-debates/6016-jihadistas-sao-todos-muculmanos