Libaneses lembram guerra civil que forçou vinda para o Brasil
Marie (a segunda da direita para a esquerda) com os irmãos e a mãe, ainda no Líbano. Foto: Arquivo pessoal de Marie Obeid
De 1975 a 1990, uma guerra opondo diferentes grupos político-religiosos destruiu o Líbano e deixou cerca de 120 mil mortos. Para fugir da violência, Marie Obeid e George Hage cruzaram o Atlântico e chegaram ao Brasil, onde puderam reconstruir suas vidas longe dos conflitos.
Marie Obeid não imaginava que, aos 18 anos, teria de deixar o Líbano e recomeçar a vida no Brasil. Em 1980, um dos seus cinco irmãos foi assassinado em Beirute, durante a Guerra Civil que dividia a nação. “Meu pai ficou completamente transtornado e não aguentava mais ficar nem um segundo no Líbano”, lembra a libanesa, hoje com 57 anos. A solução foi abandonar o país.
Atualmente, o Líbano acolhe 1,5 milhão de refugiados da Síria, segundo a Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). É o país com a maior população relativa de estrangeiros deslocados por conflitos e situações de violência generalizada. De acordo com um levantamento da Comissão Europeia divulgado em janeiro de 2018, 30% dos habitantes são refugiados.
Mas o território libanês já foi ponto de partida para pessoas inocentes que tiveram de deixar tudo para trás em busca de segurança. De 1975 a 1990, uma guerra opondo diferentes grupos político-religiosos destruiu a nação e deixou cerca de 120 mil mortos, segundo números reconhecidos pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Uma das vítimas foi o irmão de Marie, que passeava com dois amigos quando recebeu três tiros de um franco-atirador. Uma das balas entrou pelas costas e saiu pelo coração. Ele morreu na hora.
“Naquele tempo, em 1980, quando a gente saiu (do Líbano), Beirute era dividida entre duas partes. Qualquer cristão que tentava passar por uma certa linha era baleado, esfaqueado, morto”, conta a libanesa. Ao recordar a vida na capital durante a guerra, Marie descreve um cenário de “destruição total, com sonhos acabados e jovens partindo e emigrando para fora do país a qualquer preço”.
Fragmentação nacional
O pesquisador e professor de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Murilo Meihy, atribui a eclosão do conflito ao acirramento das tensões entre setores com projetos de nação distintos. “O Líbano é construído como um Estado nacional independente sem uma unidade em relação a qual seria o futuro do país”, explica.
Em 1932, um censo é realizado para estimar a quantidade de cristãos e muçulmanos constituindo a população libanesa. Onze anos mais tarde, essas proporções adquiririam um peso político, com a adoção de um Pacto Nacional que determinava que certos cargos do governo deveriam ser ocupados por indivíduos de grupos religiosos específicos. O presidente da República e o comandante do Exército deveriam ser cristãos maronitas; o primeiro-ministro, um muçulmano sunita; e o presidente do Parlamento, um muçulmano xiita.
“Por ser um Estado multiconfessional e com uma divisão política baseada na separação entre esses grupos confessionais, a ideia de cada um deles é tomar para si o Estado libanês, porque, controlando o Estado libanês, há um controle sobre o país e sobre os recursos”, afirma Meihy sobre as disputas da Guerra Civil.
O historiador alerta, porém, que não é possível compreender o confronto sem olhar para o contexto regional — marcado pelo conflito israelo-palestino — e para a polarização global em meio à Guerra Fria. O jogo da política libanesa estava atrelado ao equilíbrio demográfico — que é abalado com a chegada em massa de palestinos ao Líbano a partir de 1948, por conta da primeira guerra árabe-israelense. No início dos anos 1970, a resistência palestina armada deixa a Jordânia e se instala no território libanês.
“Do ponto de vista interno, você tem milícias cristãs, a principal delas era a Falange, que foi responsabilizada por uma série de massacres e atividades contra os palestinos. A família Frangieh também foi bastante atuante e uma série de outros grupos menores que, por essas alianças, acabavam compondo o grupo pró-Ocidente dentro da Guerra Civil”, explica Meihy.
Um dos episódios considerados como o estopim do conflito foi o massacre em Ain-al-Rumannah, um distrito de Beirute onde um ônibus levando palestinos e libaneses foi alvejado por falangistas no dia 13 de abril de 1975. Vinte e sete passageiros morreram e 19 ficaram feridos. O atentado teria sido uma retaliação contra ataques a uma igreja na região. O episódio precipitou novos embates entre grupos armados de palestinos e cristãos. Confrontos se espalharam progressivamente pelo restante do país, mobilizando outros setores da sociedade libanesa.
“Do outro lado, alguns grupos muçulmanos sunitas com a forte presença do ideário pan-árabe. Entre os xiitas, dois grandes movimentos concorrentes, mas, com o desenvolvimento da Guerra Civil, (apresentam) alguns elementos em comum. O primeiro deles era o grupo Amal, ligado a um líder xiita local chamado Nabih Berri, e um outro grupo que nasce nos anos 80, principalmente com a chegada dos israelenses ao conflito, que é o que nós chamamos hoje de Hezbollah, com uma aliança muito forte com os iranianos. Os drusos também têm uma força importante, com uma orientação bastante à esquerda e socialista”, acrescenta o especialista.
Forças externas também interviriam no conflito, como Israel, que invadiu o sul do Líbano em 1978. A ofensiva, orquestrada contra a resistência palestina, foi condenada pelo Conselho de Segurança da ONU e levou à criação da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL). A missão internacional ficou incumbida do monitoramento das regiões fronteiriças para confirmar a saída das tropas israelenses.
Em 1982, Israel avançou novamente sobre o território libanês, chegando até Beirute. No bojo das operações militares, falangistas que atuavam em coalizão com os israelenses entraram nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, matando pelo menos 900 pessoas, entre mulheres, crianças e idosos, de acordo com estimativas da Anistia Internacional. A matança foi considerada um genocídio pela Assembleia Geral das Nações Unidas.
A Síria e outros Estados árabes também teriam participação proeminente na Guerra Civil, com envio de soldados e protagonismo em negociações políticas.
Memórias da guerra no Brasil
“No nosso ver, como estudante e como progressista, não achávamos justo fazer um massacre de nossos irmãos dentro da nossa própria terra”, afirma George Hage, libanês que chegou ao Rio de Janeiro em 6 de fevereiro de 1976.
Nascido no norte do Líbano, ele estudava Informática em Beirute quando a guerra estourou. Com as hostilidades, o então universitário voltou para o interior. De lá, fugiu para a Síria e, posteriormente, para o Brasil. “O fanatismo religioso era tão grande que, como nossa região não concordava com a guerra, nossas casas foram bombardeadas”, lembra.
Depois de chegar a solo brasileiro, Hage saiu do Rio e foi para Franca, em São Paulo. Na cidade, o jovem de 25 anos comprava sapatos que revendia pelo interior, percorrendo uma rota que passava pelo Paraná e ia até o Mato Grosso, chegando a Goiás, Brasília e suas cidades satélites.
Após um ano e meio no ramo de calçados, Hage voltou para a capital fluminense e abriu uma loja na Penha. Desde então, o libanês — que também pode ser chamado de brasileiro, pois se apaixonou pelo país e se naturalizou — permaneceu na capital fluminense, onde se casou e teve três filhos.
Quando pensa na Guerra Civil que destruiu seu país, Hage lamenta que diferenças religiosas tenham sido usadas como justificativas para os confrontos.
“Qual a religião ou qual o Deus que manda matar?”, questiona. “O islamismo não tem nada a ver com Estado Islâmico, Al-Qaeda ou Talibã. O cristianismo não tem nada a ver com o fanático maronita que matava palestinos ou muçulmanos por serem palestinos ou muçulmanos.”
Migrações entre os dois lados do Atlântico não eram novidade para a família de Marie Obeid. Seu pai era brasileiro, filho de libaneses que emigraram para o país sul-americano em 1914. Os avós de Marie se estabeleceram na zona rural de Minas Gerais. Já adulto, seu pai voltaria para o Líbano a serviço do Instituto Brasileiro do Café. Ele residiu em Beirute até o retorno para terras brasileiras, motivado pela Guerra Civil. A adaptação dos filhos ao novo país não foi fácil.
“As culturas naquele tempo (os anos 80) eram completamente diferentes porque não tinha tanto intercâmbio entre esses dois países. Também não tinha internet como hoje nenem linhas telefônicas (de fácil acesso). Ninguém falava outros idiomas. A receptividade era boa, só que não tinha comunicação”, conta Marie. Ela e a irmã também vieram para o Rio, onde Marie começou a trabalhar com comércio e turismo. Entre seus outros irmãos, um continuou no estado de origem do pai. Os outros foram para São Paulo e Amazonas.
“Como esse Brasil é imenso, cada um ficou num estado completamente diferente. Nós saímos do Líbano para não se separar, mas acabamos nos separando aqui, dentro do território brasileiro”, conta Marie.
Os libaneses seriam considerados refugiados de acordo com as convenções internacionais da ONU sobre deslocamento forçado — a convenção de 1951 e o protocolo de 1967. Mas quando vieram para o Brasil na época da Guerra Civil, o país ainda não havia internalizado os dois marcos em sua legislação doméstica.
“Questões ligadas a refúgio ou à proteção e defesa dos direitos humanos não eram o principal elemento motivador da política externa durante o governo militar”, recorda Meihy. “O que favorece a vinda de libaneses para cá durante toda a Guerra Civil é o fato de que, já desde o final do século XIX, o Brasil era um território de recebimento de sírios e libaneses, por razões distintas.”
Esses migrantes que haviam se estabelecido por aqui formavam uma rede familiar de acolhimento para parentes que viviam no Líbano e queriam sair do país por causa do conflito. George Hage, por exemplo, foi acolhido por um tio que era bispo e liderava a comunidade cristã ortodoxa libanesa do Rio de Janeiro.
Passados quase 30 anos do final da guerra, Marie acumula o aprendizado de quem viu o sofrimento de perto. “A guerra não leva a nada. Ninguém sai ganhando. Todos têm que se desarmar e votar pela paz sempre.”
Publicada originalmente no site da ACNUR.