Pesquisadora defende integração dos países árabes
ICArabe - Como você analisa o Mundo Árabe a partir das conquistas da Primavera Árabe? Elas permaneceram, ainda estão em curso?
Silvia Ferabolli - Eu acho que o maior erro que se comete nas análises é, primeiro, chamar de Primavera Árabe, como se as populações árabes – antes da erupção daqueles protestos – estivessem dormindo. Elas não estão. Quem vem acompanhando há muitos anos sabe que aquilo foi o ápice de um processo que está se desenvolvendo faz muito tempo. O que está acontecendo é sim um processo revolucionário, mas quero chamar a atenção para essa palavra “processo”. Revolução não é um ato, é um processo. A Revolução Francesa levou décadas para se desenvolver e até hoje os preceitos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, defendidos naquele momento revolucionário, não foram atingidos na sociedade francesa. A própria França vive hoje um retrocesso na igualdade, vide o tratamento que os seus cidadãos muçulmanos recebem. Como eu analiso o momento árabe: é um processo que está em curso. A contrarrevolução é normal, como aconteceu no Egito, e a gente ainda vai ver os desdobramentos daquele ápice revolucionário se desenvolvendo nos próximos anos, talvez nas próximas décadas. Os processos são marcados por momentos, têm ápices, avanços.
ICArabe - Como as relações culturais têm contribuído para estimular o comércio entre o mundo árabe e a América Latina? Qual tem sido o papel do Brasil neste contexto?
Silvia Ferabolli - É muito engraçado isso, porque nas relações entre o Brasil, ou América do Sul e o Mundo Árabe, o ideal seria a gente fazer um movimento inverso do que se tenta fazer. Às vezes, o problema da ênfase na cultura é que quando a gente narra o outro, a gente acaba enfatizando os aspectos culturais dele. Por exemplo: eu sou gaúcha, então eu vou ter que te dizer o que faz de mim gaúcha: eu uso vestido de prenda, tomo chimarrão, eu falo “bah”, mas, na verdade, na maior parte do tempo eu não falo “bah”, usei vestido de prenda quando eu era pequena e nem gosto de chimarrão. Os estudos de cultura têm de ser muito cuidadosos, pois essas aproximações culturais reforçam estereótipos. A gente culturaliza demais o diferente. Deveríamos buscar o que somos mais parecidos.
ICArabe - O Brasil e outros países acabam por reforçar esses estereótipos?
Silvia Ferabolli - Foi lançado um livro muito interessante faz uns dois anos, “The Arabs”, que se propunha a narrar os novos desenvolvimentos no Mundo Árabe, após a virada do milênio, e na capa tinha um camelo. Eu não consigo compreender ainda como alguém consegue escrever um livro de 600 páginas sobre os árabes com um camelo na capa. Claro, a ideia seria que existe uma cultura beduína da qual os árabes são herdeiros, mas é tão mais do que isso, que um camelo não vai simbolizar.
ICArabe - O comércio também acaba usando esses estereótipos?
Silvia Ferabolli - Logicamente, sim. Acho o cinema árabe fantástico, o problema é que os filmes que às vezes chegam a nós são os mais estereotipados e isso prejudica o comércio, porque se eu sou um empresário e eu tenho hoje alguns milhões disponíveis, eu não vou investir em um lugar cheio de camelos e dançarinas do ventre. Eu vou investir em um lugar onde tenha prédios, empresas, asfalto. Quando a gente se fixa nos estereótipos, impede o estreitar das relações comerciais. Foram feitas várias pesquisas no Brasil, com pessoas de vários níveis de graduação, pedindo: “me diz três ou quatro palavras que resumem o Mundo Árabe”. As palavras são as mesmas invariavelmente: terrorista, deserto, camelo, harém, como se essas palavras representassem o que é o Mundo Árabe hoje.
ICArabe - Você acredita que a divulgação e a valorização da cultura árabe têm conseguido enfrentar essas imagens estereotipadas que muitas vezes são divulgados nos veículos de mídia?
Silvia Ferabolli - Não, não tem conseguido. O trabalho de instituições como a Câmara de Comércio Árabe Brasileira é um trabalho feito por algumas pessoas. São grandes instituições, estão se mobilizando, claro que sim, mas você tem contra uma mídia gigantesca determinada a demonizar os árabes e muçulmanos, pois é essa é a parte que cabe a eles no latifúndio mundial. Servem como lugares onde Os Estados Unidos, a Rússia e Israel escoam os seus produtos, armamentos - sua indústria bélica pode ser movimentada de tempos em tempos – de onde vem o petróleo que lhes interessa, então, para eles, que são os donos do poder global, quanto mais formos mantidos na posição de ignorância no Mundo Árabe, melhor para eles.
ICArabe - É mais fácil para a mídia reforçar esses estereótipos do que se aprofundar na cultura?
Silvia Ferabolli - Repetir o que já foi dito é sempre mais fácil do que propor algo novo. Propor algo diferente vai te levar a fazer um movimento a que todos estão pouco dispostos, que é pensar, refletir, estudar. Acho que acabando - e isso é uma coisa que vai acontecer - a grande mídia, que se chamava de Quarto Poder, está desaparecendo. A gente está vendo emissoras saindo do ar, jornais demitindo, fechando as portas. Essa descentralização da mídia vai possibilitar que a mídia alternativa bata de frente com esses barões do establishment midiático e talvez, aí sim, haja esperança para superar a ignorância que reina no Brasil e na maior parte do mundo sobre o Mundo Árabe islâmico.
ICArabe - Quais são, em sua opinião, as áreas/segmentos de maior potencial para estreitar ainda mais as relações entre o Brasil e os países árabes?
Silvia Ferabolli - Acho que existe um potencial na área energética, toda a questão da descoberta do Pré-sal e o Brasil se tornando um gigante na produção de hidrocarbonetos. Nós somos grandes, não só exportadores de commodities, mas também podemos transferir tecnologia para alguns países árabes. Também parece que podemos transferir dois tipos de tecnologia, que às vezes parece que não levamos em consideração: tecnologia social, acho que nosso modelo de bem-estar social, alicerçado no Bolsa Família, é um modelo que, por exemplo, a Índia já busca copiar e mandou diversas delegações ao Brasil para isso. Acho que podíamos transferir esse pequeno arremedo. O Brasil é uma democracia muito recente, tivemos pouco tempo na História. Temos mantido desde 1985 essa democracia e podemos transferir essa manutenção. Quando você fala de trocas, as relações não precisam se dar no nível estritamente comercial-cultural, podem dar em um outro nível, também tecnologia social e política, que nós devemos aprender com o outro lado. O Brasil não deve e não pode se colocar na posição de ter algo para ensinar. Somos iguais.
ICArabe - É um intercâmbio?
Silvia Ferabolli - Exatamente, intercâmbio entre iguais. É a grande palavra que deveria nortear a política externa com o Mundo Árabe: igualdade.