Artigo: A Religião e a Batalha de Chaldiran
Por José Farhat
Em 23 de agosto de 1514, o Brasil recém nascia e, no Oriente Médio, já se disputava aquilo que hoje ainda perdura: os poderosos guerreando através dos fracos, para reforçar suas hegemonias, usando de lado a lado uma arma profana: a própria Religião.
Perto de 500 anos depois, assistimos à Revolta no Barein, de 14 de fevereiro a 18 de março de 2011, quando o povo bareinita empreendeu uma série de manifestações que se tornaram violentas quando o governo da Família al-Khalifa apelou para forças regulares de outros países árabes e mercenários de outras origens, para forçar o povo a desistir de suas reivindicações. O que queria o povo de Barein era acabar com a corrupção, criar mais empregos que estavam sendo preenchidos por estrangeiros, acelerar o rítmo quase patinante da verdadeira democracia, acabar com a discriminação contra os barenitas xiitas. As desculpas governamentais eram menos que meia verdade. Isto porque se olharmos os países do Golfo vamos notar em todos eles uma característica peculiar: o povo que cria riqueza recebe migalhas, mas é coincidentemente xiita e os governantes que se apoderam das riquezas nacionais são todos sunitas. Fica fácil então pintar os movimentos populares de reivindicações como uma questão religiosa, sunitas contra xiitas, uma falsa pintura do quadro de reivindicações populares em toda a região e não uma questão religiosa. Desta forma, o governo de Barein angariava apoio de seus vizinhos como movimentos religiosos xiitas, prontos para derrubar os governos sunitas da região. É uma situação inversa àquela que criou a Batalha de Chaldiranm, mas é igual no que concerne ao uso da Religião para fins longe de serem religiosos.
Semanas atrás a luta pela hegemonia regional voltou a usar a religião como ponto central. Duas potências locais - uma sunita wahabita e a outra xiita duodecimana - declararam, cada um por sua vez, que a outra parte não era muçulmana, por seguirem uma ou a outra vertente do Islã. Isto interferiu na participação dos cidadãos de um país no livre acesso de muçulmanos para o cumprimento do hajj, um importante pilar do Islã. Não precisa ser um sábio em matéria de Islã para notar que a causa deste ato não está na Religião e sim na Política em busca da hegemonia regional.
É chegada a hora - a bem da verdade, ela já passou há muitos séculos - para que os homens no poder, seja lá quando ou onde estiverem, assumam a verdade e deixem de lado a religião.
A Batalha de Chaldiran (uma cidade situada onde hoje é a Turquia), em 23 de agosto de 1514, não era para um sunita combater um xiita e vice versa e sim para saber quem é que passaria a dominar a região da Anatólia oriental.
Em 1514 o sultão otomano Selim I (1470-1520) também conhecido como Salim I Yavuz (o Sinistro, assim chamado por ter mandado matar seu pai e irmãos para que não sobrasse quem contestasse seu poder), sunita, iniciou uma campanha contra o xá iraniano Ismail I (1487-1524), fundador da dinastia Sefewida, para acabar com a influência sefévida sobre as tribos turcomanas dos Kizilbash, os cabeças vermelhas (assim chamados devido à cor de seus turbante), que estavam em revolta aberta contra a dominação otomana e que demonstravam seu descontentamento através do desafio à ortodoxia sunita. Note-se, que os Turbantes Vermelhos estavam descontentes com a dominação otomana e que a ‘ortodoxia sunita’ foi a desculpa para a rebelião, sublinhando-se igualmente que os otomanos perseguiam os Kizilbash, não por serem xiitas, mas por influenciarem as tribos dominadas encorajando-as à rebelião. A religião não passava de uma desculpa.
O estado sefévida, baseado no misticismo assim como os turcomanos no Azerbaijão e no Irã ofereciam aos turcomanos anatólios alternativas religiosas e políticas e os emissários sefévidas conduziam extensa atividade missionária através da Anatólia. Tal os pregadores estadunidenses na Amazônia que usam a religião como desculpa para que cumpram com o seu verdadeiro objetivo: descobrir as riquezas amazônicas. Os Sefévidas descendiam do Sheikh Safi al-Din (1253-1334) de Ardabil (hoje na região do Curdistão iraquiano), era o dirigente da ordem sufista dos Safawiah. Xá Ismail I (1487-1524) trocou a afiliação sunita dos sefévidas pelo xiismo talvez nem tanto pela Fé e sim para provocar os otomanos.
Salim começou por subjugar os Kizilbash anatólios e depois proclamou que sua “expedição contra o Xá era uma guerra santa contra os heréticos, os xiitas, que estavam corrompendo o Islã”. Os dois exércitos finalmente se enfrentaram em Chaldiran, a nordeste do Lago Van na Anatólia oriental. Salim tomou precauções contra os seguidores do Xá no meio de suas próprias tropas e ordenou o ataque em 23 de agosto e ganhou uma vitória otomana sensacional. Os janissaros (tropa otomana de elite) foram municiados com pequenas armas e foram apoiados por pequenas peças de artilharia montadas em carrinhos de bagagem, que devastaram os Kizilbash. Seria a primeira batalha na História ganha com o uso de armas de fogo.
Apesar de Salim ter entrado em Tabriz, no Irã ocidental (em 7 de setembro) a vitória não resultou em conquista otomana imediata devido a agitações no seio dos Janissares. Salim voltou logo depois à Anatólia. O mais significativo da batalha de Chaldiran, no entanto, foi a subsequente incorporação ao estado otomano dos principados curdos do leste da Anatólia e do principado turcomano de Dulkadir na região do Maras-Elbistan (1515) e da maior parte da região.
E assim, os otomanos tiveram um ganho marginal ao criar uma barreira contra invasões vindas do oriente, e passaram a controlar as rotas comerciais de Trabiz-Alepo e Tabriz-Bursa, um dos objetivos reais das guerras de conquista.
Quanto à religião, ora a religião.
José Farhat é presidente do Instituto da Cultura Árabe.
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