Olé no apartheid israelense
Por Soraya Misleh
O cancelamento do amistoso que estava marcado para 9 de junho, em Jerusalém, entre as seleções de Israel e Argentina é uma importante vitória do movimento BDS (boicote, desinvestimento e sanções). Merece ser celebrada como o que é: um “olé” no apartheid, um gol de placa contra a ocupação e a colonização sionistas. Simboliza mais do que isso: o declínio do sionismo em todo o mundo.
Expressão disso é o acúmulo de vitórias do BDS a Israel no último período. Nesse rol, o cancelamento de shows de artistas como os cantores brasileiros Gilberto Gil – após três anos de recusa em atender aos apelos do movimento em solidariedade ao povo palestino –, Linn da Quebrada e a colombiana Shakira. Antes disso, vários diretores, inclusive brasileiros, cancelaram sua participação no Festival Internacional de Cinema LGBT de Tel Aviv. Igual postura assumiu o dramaturgo português Tiago Rodrigues, que participaria do Festival Israel em Jerusalém.
O declínio do sionismo se aprofunda nos 70 anos da Nakba – a catástrofe palestina com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica. Dois acontecimentos catalisam esse alcance: a Grande Marcha do Retorno e a transferência da Embaixada dos Estados Unidos de Tel Aviv para Jerusalém, capital histórica da Palestina. A ação americana ocorreu no último dia 14, enquanto o exército sionista matava cerca de 60 palestinos, incluindo a bebê de oito meses Leila al-Ghandour, durante os protestos na faixa de Gaza.
A Grande Marcha do Retorno, que se iniciou em 30 de março – Dia da Terra para os palestinos –, representa sua resistência heroica e simboliza a demanda fundamental de retorno dos milhões de refugiados as suas terras. Já ao primeiro dia, Israel assassinou mais de 30, utilizando inclusive franco-atiradores contra palestinos que tinham como armas apenas estilingues e pedras. Mas não conseguiu intimidar a resistência. Os protestos seguiram até 15 de maio. O saldo da repressão violenta foi de 116 mortos e aproximadamente 12 mil feridos.
Esse quadro tem contribuído para expor a verdadeira face de Israel perante um mundo que – salvo ocasionalmente – insiste em cegar. O ataque sionista à flotilha palestina “Barco da Liberdade” que partiu de Gaza rumo ao Chipre em 29 de maio – a qual incluía pessoas que precisam de cuidados médicos – é uma peça a mais nessa engrenagem que desmascara o caráter colonial e genocida do Estado de Israel.
A indignação internacional com mais sangue derramado palestino é apimentada pela afronta do imperialismo, cujo gesto representa o reconhecimento de Jerusalém como “capital de Israel”. Até o momento, dois outros países seguiram os Estados Unidos, abrindo suas embaixadas no local: Guatemala e Paraguai, não sem enfrentar o repúdio mundial. Expressões de solidariedade, que marcaram a semana em que se completaram os 70 anos da Nakba palestina, crescem, dos Estados Unidos e Europa à África, Oriente Médio e América Latina. Judeus antissionistas se somam aos protestos.
Crítica x propaganda
Sintomática de que o sionismo está em xeque é a mudança para tom ao menos mais crítico da chamada “grande mídia” – que vinha realizando especiais sobre o que chamava falsamente de “70 anos da independência do Estado de Israel”. Quando se iniciou a Grande Marcha do Retorno, adotou a retórica israelense de “resposta”, “confronto” e “ambos os lados”, chegando a culpar as vítimas pela resistência e luta pelo direito legítimo de retorno, por se recusarem a sucumbir a um estado cuja gênese é colonial e racista. Após condenação mundial, a mídia corporativa se viu obrigada a amenizar sua posição e mascarar sua defesa de Israel.
Ainda sintomática é a resposta israelense, tentando ganhar adeptos ou a simpatia de desavisados, usando velhas táticas: representação religiosa e propaganda. Exemplos em São Paulo são os investimentos do Consulado de Israel em dois grandes eventos: a Parada do Orgulho Gay no dia 3 de junho, que teve um bloco LGBT patrocinado pelo sionismo, e a Marcha para Jesus, em 31 de maio último, em que o próprio cônsul, Dori Goren, esteve presente. No primeiro caso, fica demonstrado o esforço de propaganda utilizando para tanto o que os ativistas de BDS chamam pinkwashing – uma tentativa de encobrir os crimes contra a humanidade cometidos por Israel utilizando a retórica de que são “amigos dos LGBTs”, que “Tel Aviv é o paraíso LGBT”. Como denunciam palestinos, inclusive seus grupos LGBTs, quando o sionismo ataca os palestinos, o tal “paraíso” se mostra como o “inferno”. A instrumentalização da causa contra a opressão e discriminação é uma constante por parte do Estado de Israel e lamentavelmente ganhou adeptos como o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), que faz coro a essa propaganda enganosa e se coloca como porta-voz dessa esquizofrenia chamada “sionismo de esquerda”.
Essa vertente busca entrar com mais força nos possíveis espaços de solidariedade. Assim, apresenta-se como uma voz que diz ser alternativa a um governo fascista israelense – do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que seria de “direita”.
Os “sionistas de esquerda”
Esses são os mais perigosos. Confundem a solidariedade sob a fala mansa e palavras como “coexistência”, “paz” e “diálogo”, ao mesmo tempo em que tentam minar campanhas centrais como a de BDS – responsável pela queda de 46% nos investimentos externos em Israel nos últimos anos. Não passam de uma ramificação – mais ardilosa – do mesmo projeto colonial, ao qual tentam ser a tábua de salvação. Sob o discurso da “paz”, não reconhecem um dos direitos inegociáveis e inalienáveis para os palestinos: o retorno dos milhões de refugiados às terras de onde foram expulsos.
Em resenha sobre a publicação “Falsos profetas da paz”, de Tikva Honig-Parnass, o Ijan (Rede Internacional de Judeus Antissionistas) escreve: “Como esse livro mostra, desde antes da fundação do Estado de Israel, a esquerda sionista falou demasiadas vezes a língua do universalismo, enquanto ajudava a criar e manter sistemas jurídicos, governos e o aparato militar que permitiram a colonização de terras palestinas.” Em seu livro “História da Palestina moderna”, o historiador israelense Ilan Pappe destaca: “Na gíria israelense local e no discurso político utilizado pelos meios de comunicação e pela comunidade acadêmica, o ‘campo da paz’ em Israel é a ‘esquerda’. Noutras partes do mundo, tal significaria necessariamente uma plataforma social-democrática ou socialista, ou pelo menos uma preocupação acentuada com os grupos social e economicamente desfavorecidos numa dada sociedade. O campo da paz em Israel tem se concentrado inteiramente nas manobras diplomáticas desde a guerra de 1973, um jogo que tem pouca relevância para um número crescente de grupos.”
Alguém hoje em sã consciência defenderia um debate com um africâner moderado em pleno boicote ao apartheid na África do Sul nos anos 1990? O sionismo foi hábil em criar essa confusão, após anos de chantagem em classificar como antissemitas os apoiadores da causa palestina. É mister pôr fim a essa e todas as suas representações, a serviço de justificar seu projeto e intimidar os que se opõem.
“Não são suíços”
Elemento que contribui ao declínio do sionismo são as falas de suas lideranças e representantes no momento. Netanyahu afirmou que medidas “não letais” não funcionam para Gaza – ao tentar responsabilizar as vítimas pela decisão de atirar nos palestinos desarmados para que não furassem o bloqueio que os impede até de receber medicamentos, alimentos e reconstruir suas casas destruídas em bombardeios anteriores.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo no dia 15 de maio, o cônsul de Israel em São Paulo, Dori Goren, refletiu essa posição desumanizante. Declarou: “Não há outra opção. A alternativa é deixar que eles passem. Não podemos correr este risco. O Oriente Médio é um lugar muito violento. Não estamos lidando com suíços. É um lugar cruel onde a única língua que vale é a força.” Em outra resposta, foi surpreendente: “Imagine que Israel seja um lutador de sumô diante de um menino de cinco anos que começa a espetá-lo com uma agulha. O lutador pede várias vezes para a criança parar de perturbá-lo, mas ele continua. Até que uma hora ele perde a paciência e bate no garoto, quebrando vários dentes dele. Então, vem a mãe e faz um escândalo, perguntando se os jornalistas filmaram a agressão. Isso é o que está acontecendo em Gaza.”
Em reunião do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), a embaixadora americana Nikki Haley apoiou a repressão violenta e achou pouco: “Nenhum país agiria com mais moderação.” Posteriormente viu sua palestra na Universidade de Houston, no Texas, interrompida por manifestantes que repudiaram seu apoio aos massacres em Gaza. “Nikki Haley, o sangue está em suas mãos! Você é cúmplice do terrorismo e colonização”, bradava, enfurecido, um deles.
Instabilidade
Não é novidade o aval dos Estados Unidos ao projeto colonial sionista. Essa aliança se reflete em auxílio bilionário à garantia de armas e desenvolvimento de tecnologias militares a Israel. Em 2016, antes de deixar o governo, Barack Obama anunciou o maior pacote dessa parceria histórica de ajuda militar ao estado sionista, no valor de US$ 38 bilhões para os próximos dez anos.
Apesar de também adotar a retórica da paz e a postura de mediador em “possíveis negociações”, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ousa mais. Ao assumir desde seu primeiro dia no mandato a cara feia explícita do imperialismo, ele deu passo perigoso ao transferir a embaixada americana para Jerusalém – de encontro até mesmo ao que a ONU recomenda. Na prática, não há mudança na política. Mas o simbolismo da medida é um elemento adicional na instabilidade que se acentua na Palestina e região.
“Cobaias humanas”
Neste momento de mais uma derrota política de Israel – entre outras estão durante a invasão de Israel ao Líbano em 2006 e o massacre em Gaza em 2014 –, a solidariedade internacional precisa aprofundar o declínio do sionismo. Cumpre papel importante nesse sentido o engajamento à campanha de BDS, ao que deve ser associada a denúncia de que a ocupação e a limpeza étnica cotidianas enfrentadas pelos palestinos dão lucro. Mais uma vez, durante a Grande Marcha do Retorno, Israel testou novas tecnologias militares e armas à exportação, como denunciou o site de notícias Middle East Monitor. Uma delas é chamada “bala borboleta”, cujo impacto nos órgãos internos atingidos é devastador.
Na contramão da solidariedade, lamentavelmente durante os governos Lula e Dilma a cumplicidade com a economia que mantém o apartheid e a colonização sionistas se acentuou: o Brasil se tornou um dos cinco maiores importadores de tecnologia militar israelense. Os governos estaduais no país, como do Rio de Janeiro e de São Paulo, seguiram na mesma direção. Fizeram investimentos bilionários por exemplo na aquisição de blindados israelenses e treinamento a serviço das polícias militares que promovem o genocídio pobre e negro nas periferias.
Resistência heroica
Levantes populares seguem a germinar. Alguns exemplos disso foram as manifestações de libaneses e de palestinos que vivem em campo de refugiados pelas ruas de Sidon, no Líbano, no dia 21 de maio. Ao condenarem o novo massacre em Gaza – onde vivem 2 milhões de palestinos em condições subumanas – e a posição dos Estados Unidos, chamaram os árabes a se unirem em luta contra a ocupação e em apoio à resistência palestina. Quase simultaneamente protestos ocorriam em Haifa, cidade ocupada em 1948 – fortemente reprimidos. Antes disso, houve greve geral de trabalhadores na Cisjordânia, território ocupado em 1967. Os palestinos, separados há 70 anos, unem-se em sua luta.
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A jornalista palestino-brasileira Soraya Misleh é diretora de Comunicação e Imprensa do ICArabe, mestre em Estudos Árabes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora do livro “Al Nakba – um estudo sobre a catástrofe palestina”.