Estereótipo de árabes confundidos com turcos permanece
Aziz Ab´Sáber, professor e geógrafo da USP, em visita a sua cidade natal, São Luís do Paraitinga, é abordado por uma conhecida de sua família. Ela não hesita: “Ah! Você que é filho do turco Nacib”. Aziz é filho de Nacib Ab´Sáber, mas o pai do geógrafo não era turco. Nasceu no país que hoje conhecemos como Líbano.
A confusão sobre a origem do pai de Aziz é na verdade um equívoco que se difundiu durante a leva de imigrantes árabes que vieram do Líbano e da Síria no começo do século XX. E essa confusão entre esses imigrantes e os turcos é um dos mais difundidos estereótipos sobre os árabes no Brasil.
A Turquia é um país situado em parte na Europa, em fronteira com a Grécia e a Bulgária, e em parte na Ásia, em fronteira com a Síria, Iraque e Irã. Apesar de ter uma forte influência islâmica, não é um país árabe. Como um ponto geográfico estratégico entre o Ocidente e o Oriente desde o domínio romano, o território sofreu influência das culturas latinas, gregas, bizantinas, persa e, inclusive, árabe.
Mas o que explica a confusão que se faz no Brasil entre turcos e árabes foi o fato de durante muito tempo a Turquia ser o centro do que ficou conhecido de Império Turco-Otomano. No seu auge, entre os séculos XVI e XVII, chegou a abranger parte do norte da África, da atual Arábia Saudita e da Europa. “Ela tinha muita força, estava dentro de outra ocidentalidade. Ela se formou à custa de Roma Oriental, e teve uma série de vantagens comerciais entre os dois blocos da própria Turquia, a Turquia européia e a Turquia da Península”, diz Aziz.
Na primeira década do século XX, o Império passava por um desmantelamento (se extinguiria em 1922, com a proclamação da República), mas ainda dominava a Síria. Esses imigrantes, então, chegavam ao Brasil com passaporte turco, do dominador. “Quer dizer, sobrou esse cognome, porque por muito tempo os passaportes vinham em nome da Turquia. Chega o passaporte, falando árabe todos, e de repente olha lá e veio da Turquia, então o nome passou a ser estendido para todos os que saíram de lá”, explica Aziz.
Para esses imigrantes que chegavam ao Brasil, a lembrança de que sua terra estava dominada era dolorosa. “No começo, era muito humilhante para eles ser chamados de turcos. O povo brasileiro em geral até hoje não sabe por que é turco, por que é libanês, por que é sírio. Não entende a diferença. Só que isso hoje não causa mais problema para o libanês ou para o sírio. Hoje é uma coisa meio brincadeira. Mas a maior parte das pessoas não entende o significado dessa diferenciação”, explica André Gattaz, historiador e autor do livro “Do Líbano ao Brasil: História oral de imigrantes”.
ALÉM DE TURCOS, MASCATES – Um segundo estereótipo que acompanhou os árabes, especialmente sírios e libaneses, no Brasil, foi o de mascates interesseiros. Aziz diz que sírios e libaneses entraram no país por rotas diferentes. Alguns grupos pegavam navios que passavam pelo Mar Mediterrâneo, atravessavam o Atlântico e chegavam em Belém do Pará. “Daí, eles iam até Manaus, e mais tarde até o Acre. E sempre fazendo um tipo de atividade, o comércio. Em pequenas ruas comerciais, sempre tinha duas, três casas de sírios, libaneses ou sírio-libaneses. E ao mesmo tempo, no caso da Amazônia, eles, que vieram de regiões secas, sobretudo os sírios, se integraram muito na circulação fluvial, como comerciantes que paravam de ponto em ponto para vender produtos. Isso coincidiu, no caso da Amazônia, com o ciclo da borracha. Então havia uma necessidade muito grande de compra de produtos que não eram produzidos na Amazônia. Não tinha um comércio interno suficiente”.
Os sírios e libaneses passaram, então, a ser conhecidos desde Belém, no Pará, até Rio Branco, no Acre, por pequenos comércios de venda de coisas como vestuário, bugigangas simples, fitas e sapatos e, eventualmente, tecidos. Naquela região, os árabes participaram do abastecimento de produtos de primeira necessidade.
Gattaz explica que se essa imagem inicial de mascate era pejorativa, num momento posterior os próprios imigrantes a incorporaram. “Primeiro eles foram criticados por serem comerciantes e interesseiros, mas depois eles transformaram isso num motivo de orgulho e se transformaram em representantes do mascate que foi bem-sucedido, que abriu uma lojinha e depois uma indústria”.
SÍRIO, LIBANÊS, SÍRIO-LIBANÊS ? – Os dados sobre o grupo de imigrantes árabes que chegou ao Brasil no começo do século XX são imprecisos. E se o objetivo for dividir a imigração síria da libanesa, a tarefa fica um pouco mais difícil. “Até o começo do século XX era uma coisa só. Era na verdade só a Síria. Então os primeiros que vieram vinham com passaporte turco, como se fosse da Síria, só que não dava para saber se eram sírios ou libaneses, porque não existia essa distinção”.
O Líbano surgiu como país no ano de 1916, com o tratado de Sykes-Picot, firmado entre França e Grã-Bretanha, as duas grandes potências imperialistas da época. O tratado definiu as fronteiras que hoje conhecemos do Oriente Médio, incluindo a separação de Síria e Líbano.