O ICArabe lança mais um verbete da série especial criada para ampliar o conhecimento sobre o mundo árabe. A iniciativa reforça o compromisso do Instituto em difundir informações de qualidade, promover a diversidade cultural e colaborar para a desconstrução de estereótipos, incentivando uma compreensão mais crítica e abrangente da sociedade.
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Sectarismo
O sectarismo (em árabe al Ta’fiyya) é a politização da religião. Pode ser definido como o enquadramento e perpetuação político-institucional de filiações comunais, isto é, a institucionalização do secto ou confissão religiosa e seus diferentes ritos – as chamadas identidades sectárias – transpostas à esfera político-confessional.
No contexto do Oriente Médio, o Líbano é um caso emblemático de identificações e disputas sectárias. Ali, a identidade mais relevante ou politicamente saliente é a religiosa. Nesse contexto, o comunalismo se refere ao vínculo sectário ou partidarismo à comunidade religiosa. Dá-se o nome de confessionalismo ao regime institucional que garante representação política ao secto sob suas diferentes (sub)denominações.
Contudo, apesar de este e outros conflitos no Oriente Médio serem denominados religiosos, com frequência outras clivagens sócio grupais, políticas e econômicas estão sobrepostas e atravessam as sectárias, aumentando a complexidade do cenário. O sectarismo, apesar de fundamental para a compreensão da realidade, narrativa e prática política libanesa, dialoga pouco com fundamentações pós-coloniais, autoritárias e com equações geopolíticas regionais (HASHEMI; POSTEL 2017) – além de reforçar abordagens que essencializam, exotizam e excepcionalizam a região.
Socialmente construído, o sectarismo como politização da religião tem sido instrumentalizado tanto como fator explicativo das tensões contemporâneas na região quanto apresentado como solução dessas mesmas disputas. Apesar de reais, as identidades político-sectárias são construções modernas (MAKDISI, 2000), e não primordiais, atávicas ou endógenas. Assim, as identidades, longe de essencializadas ou imutáveis, são avivadas, manipuladas e politizadas em resposta a contextos sociais.
A história moderna do Líbano é um exemplo de como rivalidades faccionais são exploradas e manipuladas, mesmo que involuntariamente, para ofuscar as reais causas dos conflitos. Além disso, sua história institucional é de reiterada contestação e ajuste da representação confessional. De modo que a continuidade de disputas ditas “intratavelmente religiosas” reflete a incorporação de novas forças políticas e a sectarização dos conflitos – não o revivalismo de paixões primordiais.
Assim, como resultado de sua institucionalização prolongada, o sistema se auto-reproduz em diferentes âmbitos, sob formas materiais e imateriais, temporais e espaciais. É o caso das disputas urbanas (BOU AKAR, 2018), das redes de lealdade e da reprodução de práticas clientelistas, de patronagem e da apropriação dos espólios estatais frutos da economia política do sectarismo pós-guerra (LEENDERS, 2012; SALLOUKH, 2015). Como resultado, o sectarismo mobiliza não somente estruturas e órgãos legalmente institucionalizados (mais ou menos formais), como também imaginários e narrativas, perpetuando-se ao longo de décadas.
Referências
BOU AKAR, Hiba. For the war yet to come: planning Beirut’s frontiers. Redwood City: Stanford University Press, 2018.
CALFAT, Natalia. Lebanon History. In: The Middle East and North Africa 2024, 70th edition. Europa Regional Surveys of the World. London/New York: Routledge, pp. 496-508, 2023.
HASHEMI, Nader; POSTEL, Danny (Orgs.). Sectarianization: mapping the new politics of the Middle East. Nova York: Oxford University Press, 2017
LEENDERS, Reinoud. Spoils of truce: corruption and state-building in postwar Lebanon. Ithaca: Cornell University Press, 2012.
MAKDISI, Ussama S. The culture of sectarianism: community, history, and violence in nineteenth-century Ottoman Lebanon. Los Angeles: University of California Press, 2000.
SALLOUKH, Bassel et. al. The Politics of Sectarianism in Postwar Lebanon. London: Pluto Press, 2015.

Natália Nahas Carneiro Maia Calfat é doutora e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), onde atua como pesquisadora do Grupo de Trabalho sobre Oriente Médio e Mundo Muçulmano (GTOMMM/LEA-USP), editora-executiva da Revista Malala (ABCD-USP) e como Teaching Fellow na IPSA-USP Summer School in Concepts, Methods and Techniques in Political Science, Public Policy, and International Relations. É colaboradora da Cátedra Edward Said de Estudos da Contemporaneidade (UNIFESP). Foi pesquisadora visitante na Universidade de Harvard em 2019 e colaboradora do Project on Shiism and Global Affairs, Harvard Divinity School. Board member do research committee Politics and Ethnicity da International Political Science Association (IPSA). Recentemente atuou como consultora da Organização Internacional do Trabalho (ILO Geneva) para cooperação triangular Sul-Sul entre Brasil e Líbano. Colabora com o Instituto da Cultura Árabe (ICArabe) desde 2014, tendo assumido sua presidência em outubro de 2024.
