Anthony Shay e a análise ideológica da representação cênica da dança oriental

Qua, 06/10/2010 - 11:48

O coreógrafo, antropólogo e historiador da dança na Universidade da Califórnia Antony Shay é talvez um dos principais estudiosos da representação política e cultural na dança. Ele aborda e conceitualiza uma série de questões relativas à ideologia no campo coreográfico no sentido da corporificação de um discurso. Ele constrói um arcabouço conceitual para pensar as questões relativas ao intercâmbio entre tradições e representações cênicas na construção coreográfica e suas consequências políticas e ideológicas, e questiona a validade dos conceitos ocidentais na avaliação da dança oriental. Tais reflexões são cruciais tanto para o bailarino-intérprete ou coreógrafo como para o crítico, uma vez que muitos elementos originais de uma dada cultura são negligenciados, eliminados, ou transformados no processo da sua transposição para o palco, como ocorre com frequência nas performances de dança oriental da atualidade.

Adoto aqui o termo dança oriental conforme a própria definição crítica de Barbara Sellers Young e Anthony Shay, de uma dança de solo improvisado do Oriente Médio, comumente dançado nos centros urbanos, designada por “um conjunto de movimentos e práticas corporais cujas origens se deram na vasta região que se estende desde o Oceano Atlântico ao norte da África e oeste do Balcãs até as áreas ocidentais da China, Ásia Central, e a porção ocidental da Índia subcontinental”(SHAY, 2005).

Abordarei adiante alguns tópicos desenvolvidos por este autor em seu livro Choreographic Politics: State Folk Dance Companies, Representation, and Power (SHAY, 2002) onde ele analisa os processos de composição coreográfica de diversas companhias nacionais ou profissionais de grande importância local ou mundial. O conceito central desse trabalho é o de tradições paralelas, que permitiu analisar as relações de influência e intercâmbio entre as tradições populares e cênicas. Inspirado no trabalho do historiador Eric Hobsbawm (1997), que identificou a invenção de tradições como um processo artificial típico da construção da identidade em nações emergentes, Shay demonstra como a representação cênica de danças tradicionais ou folclóricas resultou na criação de tradições paralelas, de forma que as companhias nacionais “inventam” coreografias e formatam repertórios que não correspondem nem ao tradicional original, nem a um trabalho puramente cênico, e são, portanto, uma expressão intermediária, cuja construção está diretamente marcada pelo crivo político. 

Shay também expandiu o conceito de orientalismo do grande pensador Edward Said, (Orientalismo – o oriente como invenção do ocidente, 1978), e definiu o processo de auto-exotismo como resultado desse orientalismo, nos grandes centros urbanos do Oriente Médio: detectou que além das projeções ocidentais de um oriente imaginário sendo construída a serviço de propósitos imperialistas, ocorreu a proliferação de estereótipos produzidos e reabsorvidos internamente pelas sociedades dominadas, ao longo do processo de reconfiguração da identidade e emancipação política pós-colonialista, entre fins do XIX e início do XX. Isto ocorreu notadamente na dança oriental - que ficou consagrada então como dança do ventre, sob o estilo modernizante e vulgarizado do cabaré-belly dance, cuja estética é fortemente carregada ideologicamente e que parece encaixar-se neste conceito de tradição inventada.

Para que se compreenda claramente o que é uma tradição inventada na dança, exemplificarei com as danças circulares, tão de moda nos últimos tempos: Bernhard Vosien criou a maioria de suas coreografias a partir das danças folclóricas que conheceu, emprestando-lhes algo da sua estrutura simbólica basal; ele não reproduziu ipsis literis a maioria das danças estudadas em campo, mas adaptou-as à sua proposta de utilizar a disposição espacial do círculo, afim de intensificar o poder arquetípico desse formato. É preciso que se tenha bem claro em mente que as danças tradicionais (ou folclóricas) de que se utilizou diferem essencialmente das suas adaptações para a dança circular: esta é, afinal, uma tradição inventada, pois, além das possíveis diferenças coreográficas em relação às danças originais, realiza-se com um propósito e num contexto histórico-cultural completamente diverso. Isto não invalida a sua proposta, mas, sem considerar essa distinção fundamental, os profissionais que trabalham com ela cairão, mais dia, menos dia, no problema da identidade cultural ao tentar universalizar aspectos que são particulares e distintivos, geradores de alteridade.

Mas de que forma podemos delimitar e definir os aspectos próprios de uma dança do ponto de vista da identidade cultural, uma vez que nela incide a maior interferência e mutabilidade nos processos de influência cultural?

De acordo com Judith Lynne Hanna, (To dance is human, 1979), partindo da perspectiva interna do trabalho corporal, percebe-se que em todo o processo há a veiculação de características não só pessoais, mas também culturais. Assim, as “funções cognitivas e afetivas são consideravelmente intercambiáveis. A dança tende a ser o testamento de valores, crenças, atitudes e emoções. Como Mills pontuou, os ‘modos cognitivos e qualitativos são margens de um fluxo de experiência’. Mesmo se a dança é executada mecanicamente e deixa o observador e o bailarino insatisfeitos ou enfastiados, tais reações são respostas afetivas. E ainda assim, a dança realizada mecanicamente, geralmente um padrão de estímulo-resposta, retêm sua essência enquanto experiência simbolicamente transformada; é esta transformação que distingue o movimento cultural do natural”. Sendo assim, tanto o modo de balancear as funções motoras, afetiva e cognitiva podem revelar a filiação cultural de uma dada dança, como o seu produto, isto é, o gesto transformado pelo adensamento simbólico da experiência corporal e apresentado num determinado formato identificável, por exemplo, os deslocamentos típicos de quadril na dança árabe, o acentuado gestual das mãos no flamenco, etc. Na dança oriental, o aspecto rítmico pareceria tornar preponderante o elemento motor, mas na realidade há certo equilíbrio entre o desenvolvimento expressivo-afetivo e a capacidade de mobilização da audiência (como ocorre na poesia e na música), além da orquestração conjunta das funções cognitivas e afetivas durante a improvisação, em oposição ao caráter mecânico da coreografia pré-estabelecida.

Quanto à delimitação do caráter externo da dança, isto é, dos traços culturais específicos da composição coreográfica, a abordagem do antropólogo Clifford Geertz (O conhecimento local, 1997) - outra influência de Shay - parece muito profícua, pois propõe que consideremos a cultura como um sistema interrelacional, onde todos os aspectos da vida de uma sociedade encontram eco e correspondência técnica e/ou simbólica nos produtos artísticos que se elaboram em seu interior. Assim, é possível traçar com assertividade os traços distintivos de uma dança a partir de sua simbologia central e os elos de correspondência com os demais aspectos do sistema cultural no qual está imerso. No caso da dança oriental podem-se estabelecer relações com o sistema musical modal e com os demais traços estéticos e cosmológicos do pensamento árabe-oriental, como por exemplo, os padrões geométricos, que também regem os arabescos, mosaicos, estruturas arquitetônicas, teares e cerâmica, etc.

Embora esta correspondência e organização harmônica dos elementos coreográficos na dança oriental seja central, ela muitas vezes é negligenciada quando essa arte fica sujeita às distorções provocadas pelo hibridismo e fusão com técnicas e procedimentos de tradições cênicas ocidentais. Tais distorções são, muitas vezes, reflexo dos processos ideológicos, como ocorreu na sua difusão via cinema hollywoodiano ou companhias nacionais de folclore, como veremos adiante.

No caso das companhias de dança nacionais, observou-se, sobretudo, o problema da construção da identidade étnica da nação. Uma vez que nem toda a diversidade étnica e cultural pode ser abarcada num repertório estrito, a seleção de cada componente determina o conteúdo político da representação a ser encenada. Acontece então o problema de quem será representado, como se dará essa representação e por quem – isto inclui desde eliminar a filiação com identidades estrangeiras, que outrora participaram da história daquele lugar, até a seleção de determinados tipos étnicos e físicos para compor elenco, segundo o tipo de formação, técnica ou tradicional, etc. A questão da identidade é a mais permeada pelos interesses políticos e ideológicos das agências financiadoras (como o Estado, no caso de uma companhia nacional), e varia conforme a capacidade crítica dos coreógrafos em respeitar ou distorcer as tradições e grupos representados. O problema da representação histórica na dança também ocorre nesse caso, quando o repertório das companhias nacionais abrange reconstituições de supostas danças antigas, para legitimar ou forjar identidades nacionais através da dança. Segundo Shay, isto ocorreu com grupos importantes, como o Reda Troupe e o National Folkloric Troupe, do Egito, o Turkish State Folk Dance Ensemble, a companhia Mahalli de danças iranianas, e diversos outros grupos que recorreram a reconstituições históricas ou as inventaram. Mas o problema não se restringe só aos grupos grandes, uma vez que profissionais independentes e amadores muitas vezes seguem os padrões daqueles, sem se preocupar com o discurso político subjacente à interpretação artística.

Uma das formas mais recorrentes de forjar uma representação histórica ou cultural na dança é a partir da essencialização. Este procedimento consiste, basicamente, na criação de movimentos que diferem das expressões tradicionais existentes, mas remetem a elas. Diante de um repertório muito extenso e/ou da possível perda do impacto estético do espetáculo, o coreógrafo recorre a essencialização, ou seja, busca fundir uma série de elementos coreográficos diversos, que aparecem de forma variada nas distintas tradições, amalgamados e reunidos numa só coreografia em sínteses simbólicas ou estéticas. Pode ocorrer também a criação de elementos coreográficos novos que jamais foram recolhidos em campo, que não existiam em absoluto na realidade. Aqui o risco é o de “pasteurização” e da criação de algo que pode inclusive não fazer referência a nada existente, mas que obedece a uma distorção conveniente, associada ora a uma estética identificada com a elite, ora às culturas estrangeiras de nações dominantes, como ocorre no auto-exotismo ou na estereotipificação, processos diretamente ligados a essencialização. À essencialização se opõe a particularização, que consiste em manter-se fiel aos elementos da tradição, o que por seu turno implica em delimitar as tradições que serão retratadas, dando ênfase ou prioridade para umas em detrimento de outras, caindo por outro lado no problema político da seleção das etnias ou regiões representadas para compor a identidade nacional em cena.

Outro ponto que tange aos limites da fidelidade histórica e cultural, é a questão da autenticidade. A noção de autenticidade pode variar muitíssimo. Não podemos considerar que uma tradição inventada não seja autentica, uma vez que ela passa a existir. O conceito de tradições paralelas de Shay prevê isto. No entanto, uma tradição inventada através da estereotipificação ou da essencialização não é autentica em relação à tradição, à identidade original que supostamente retrata. Mas, mesmo assim, diversas companhias famosas mundialmente se valem de elementos essencializados, inventados e até completamente alheios à realidade, cobertos por um verniz de folclore que faz com que os espectadores estrangeiros reconheçam nele o gosto da autenticidade e da originalidade! Estamos diante do historicamente verossímil, que é bastante enganoso. Segundo Shay, este é o caso das companhias do Leste europeu, que adotou o verniz criado por Igor Moiseyev (coreógrafo e fundador da Moiseyev Dance Company da URSS), cujos modelos de figurinos, coreografia e cenografia se expandiram pelos países do bloco soviético durante sua existência, refletindo os ideais comunistas de culto ao corpo, ênfase no movimento vigoroso de caráter combativo, valorização do elemento camponês e da coletividade em oposição à individualidade (carro-chefe simbólico do capitalismo), e recorrendo a generalização das identidades nacionais, em detrimentos das peculiaridades das minorias em sua infinita variedade. Estas, primeiro sufocadas pelos efeitos da dominação política e cultural do colonialismo e, depois, pelas restrições culturais dos regimes totalitários, costumavam ser simbolicamente dissolvidas ou amputadas das representações oficiais de dança. 

Quanto à questão do colonialismo na dança, Antony Shay também faz uma interessante análise do contexto cultural egípcio. Ele chama a atenção para o fato de que grande parte das tradições musicais e performáticas da densa população instalada ao longo de todo o Nilo não é valorizada pela política cultural oficial; ao contrário, a presença britânica se impôs de tal forma naquele país, que penetrou em todas as suas instituições, configurando, como ocorre em outros países descolonizados, um distintivo de classe, de categoria e de poder. Isto é, aquele que tem acesso a uma educação de modelo britânico e assume sua estética, costumes, inclinações políticas, etc, terá trânsito facilitado na elite local, já bastante moldada nesse sentido. Isso se reflete na formação de coreógrafos importantes, como Mohamed Reda, fundador do Reda Troupe, grupo egípcio que elevou o status da dança do ventre e outros folclores egípcios no país e no mundo. Na ótica de Shay, a ascensão de tal grupo se deu às custas de graves distorções da tradição egípcia e do apagamento da sua variedade cultural, por meio da estilização e ocidentalização, tanto coreográfica como musical.

Para nosso autor, até as orquestras orientais, ainda que contenham muitos instrumentos tradicionais ou executem peças folclóricas - como as que acompanhavam o Reda Troupe ou mesmo a famosa cantora Uum Kulthum –, tendo base ocidental, podem ser vistas como tradições inventadas. Essas tradições inventadas na música se deram igualmente na dança e marcam todo o cenário das representações da dança oriental do século XX até hoje. Porém, uma dificuldade em diferenciar a tradição inventada da autêntica reside justamente no fato de haver grande circularidade e intercâmbio entre ambas. Minha sugestão, sobretudo em tempos de globalização, é que se estabeleça na dança oriental uma distinção entre influência cultural e fusão, sendo a primeira o processo que ocorre entre duas culturas distintas compartilhando de referências culturais in loco, isto é, a partir de um tempo de convivência entre grupos e comunidades distintos entre si, num mesmo território ou ambiente. A segunda ocorre pela manipulação deliberada e intencional de elementos coreográficos díspares e estrangeiros, e seguem o padrão da tradição inventada.

Além disso, temos os fenômenos próprios da fusão cultural – mescla de processo de influência com a absorção inconsciente de produtos coreográficos já encharcados de auto-exotismo, por exemplo - em que as distorções se amplificam, naturalmente. É curioso perceber como no Brasil, por exemplo, as bailarinas são reconhecidas pelo seu grande domínio rítmico. Na Revista Brasil Oriente, a bailarina espanhola Carolina Grandela notou esse fato, questionando porém, certa falta de criatividade das bailarinas de Belly Dance em nosso país (1).  É certo que ela só viu algumas artistas, com determinado estilo de dançar, mas não seria isso um reflexo de nossa própria cultura: o forte matiz rítmico, mas com pouca atenção e domínio do aspecto melódico? Ou, por outro lado, não devemos nos perguntar, ainda, o quanto a formação de nossas bailarinas contempla uma formação musical e cultural adequada para a representação da dança oriental, e o quanto não estará, ainda, fortemente marcada pelo orientalismo e suas deformações típicas?

 

Notas

1) Entrevista. Revista Brazil Orient. Ano 1, no. 2, jul-set 2009, pp. 8-9.