Diário de Beirute

Qua, 10/10/2012 - 08:30
26/09/2012
Eu começo hoje a fazer o caminho de volta que meu pai, seu Nahul Sader, fez há 82 anos. Ele, imigrante libanês, pegou um navio no Líbano, parou em Marselha e, três meses depois chegou ao Rio de Janeiro.

Ele conta que havia muitas festas no Rio, eles puderam sentir desde o navio, com muitos fogos de artificio. Depois pudemos nos dar conta que ele tinha passado no Rio exatamente em outubro de 1930, quando Getúlio chegava, vitorioso, com os tenentes, para amarrar os cavalos no obelisco.

Semi-analfabeto, ele se dirigiu com seu pai ao interior de São Paulo, cidade de Itaberaba, região de Sorocaba, onde se estabeleceriam em comércio de roupas. Meu pai trabalhava como mascate, vendendo roupas pelo interior, montado num cavalo.

No fim da vida ele pode voltar ao Libano, quando foi visitar meu irmão, o Eder, no exílio, em Paris. Um pouco antes da guerra civil que devastou o país.

Eu estava na América Latina, não pude saber das suas experiências noretorno a seu país natal e ele faleceu antes que eu voltasse do exílio. Não voltei a falar com ele.

Hoje eu tenho a possibilidade de fazer esse caminho de volta ao Líbano, para um seminário sobre as experiências da primavera árabe, levando balanço das experiências latino-americanas da luta contra as ditaduras. E de passar pelo Cairo, para conhecer mais de perto a experiência egípcia.

O seminário será realizado em Beirute, na Universidade Americana de Beirute, tendo como tema: Transição da autocracia à democracia no mundo árabe e lições de outras regiões. Terá uma apresentação geral, seguida de exposições sobre a Tunísia, o Egito, o Sudão, a Síria, o Kuait e o Líbano.

Depois de uma discussão geral sobre as experiências da primavera árabe, no dia seguinte eu farei uma exposição sobre a luta democrática na América Latina, sucedida por uma sobre o leste europeu e um debate geral sobre as transições para a democracia. E uma sessão final sobre o conjunto dos temas.

De Beirute vou ao Cairo, por três dias. Vou escrever relatando as experiências recolhidas numa viagem muito curta, de 6 dias no total, mais o tempo de viagem, uns 8 dias.

Parte 2: Líbano, os mal-entendidos

29/09/2012

Civilização europeia (francesa) incrustrada no coração do mundo árabe – o Líbano só poderia se prestar para clichês e mal- entendidos.

Antes disso ainda, não é preciso visto para ir ao Libano, ao contrário do que diz a Air France – que tem o poder de impedir que alguém embarque. No Consulado, simpaticamente explicam que não é preciso – o que é confirmado no aeroporto de Beirute. O único impedimento é ter selo de entrada em Israel. (Eu tinha, por ter ido à Palestina, por onde só se entra por terra pela Jordania ou pelo aeroporto Ben Gurion, de Tel-Aviv, dizendo que se vai fazer turismo em Jerusalem e desaparecendo na Palestina, mas estava em outro passaporte.)

Na chegada já fica claro que cada vez menos pessoas falam francês, o inglês tornou-se o segundo idioma. Varias pessoas me disseram que já não aprenderam o francês na escola, só o inglês.

Dois elementos ajudam os mal-entendidos: a beleza natural contrastando com o violento passado recente e, por outro lado, a profundidade da sua história milenar justaposta à proximidade cultural com a Europa.

A diversidade religiosa, política e social do povo libanês faz com que as questões das identidades sejam centrais para a compreensão do país. Dilacerados entre o apego ao país, a critica a ele, a exaltação das suas comunidades originárias e suas raízes religiosas, os libaneses aparecem como incógnitas para a compreensão externa.

Os clichês são de todo tipo:

“O Líbano é uma criação da potência colonial francesa.”

“O Líbano é a Suíça do Oriente Médio.”

“O Líbano é um país francófilo.”

“A cultura libanesa é antes de tudo sua cozinha.”

“Os refugiados palestinos são os responsáveis pela guerra civil.”

“A guerra civil era uma guerra de religiões.”

“Israel ocupou o sul do Libano para defender a Galileia.”

“A ocupação síria do Líbano tinha como objetivo sua anexação.”

“Por trás do Hezbollah, está o Irã.”

“Rafic Hariri reconstruiu o Líbano depois da guerra civil.”

“O retorno da violência depois de 2005 é devido à Síria.”

“A campanha militar israelense do verão de 2006 visava libertar seus dois soldados capturados pelo Hizbollah.”

“A ‘revolução do Cedro’ permitiu o retorno do regime democrático.”

Como se vê, clichês de diferentes tipos, que foram se acumulando ao longo do tempo, mais ainda quando explodiu a guerra civil, de 1975 a 1990, que de uma ou outra forma envolveu os palestinos, Israel, a França, os EUA, a Síria, ajudando a acrescentar sobredeterminações externas às fraturas internas. Estas tem na dualidade maronitas-islamitas seu eixo, mas mesmo dentro de cada uma delas, surgem diferenciações. Além das comunidades internas, com suas determinações étnicas e religiosas.

O Líbano tem tudo para ser quase indecifrável. Daí a utilidade inicial do livro sobre os clichês, de que eu tirei as referências acima. Tentarei dar alguns elementos nesta primeira passagem pelo país, que talvez ajudem a decifrar o Líbano.

Parte 3: Sabadão libanês

30/09/2012

Peguei um carro para visitar as ruínas de Baalbek, situadas no norte do Líbano. Significa sair do Líbano urbano para o mundo rural, do litoral para as montanhas e os povoados pequenos.

A estrada passa perto da fronteira com a Síria. Dá para chegar até a fronteira, bem perto de Damasco, em 45 minutos. Muitos controles policiais dos dois lados, mas não dá para cruzar porque me falta o visto. Não me deixam entrar na Síria, nem alegando que quero fazer reportagem para mostrar a realidade do país.

Diz-se que circula grande quantidade de armas para a oposição. O Exército libanês fecharia os olhos. A Síria paga o preço de ter tido tropas em território libanês por tanto tempo. Estranha a sensação de estar tão perto da capital de um país convulsionado, separado por uma grande montanha da aprazível tarde libanesa. Ninguém diria que uma guerra civil devasta o país a alguns quilômetros apenas.

O caminho para o norte é ocupado por cartazes dos mártires e líderes atuais do Hezbollah. É uma região que eles controlam assim, como o sul, de onde expulsaram as tropas israelenses. Desço e compro uma bandeira do Hezbollah.

Meu fiel escudeiro, Khalil, chofer e – segundo ele – guarda-costas. Gordo como o Sancho, mas felizmente bem mais alto.

A indústria que mais se expande no país é a indústria do mini-sequestro. Só nesta semana, no noticiário divulgado, dois bilionários de Omã e de Doha, foram sequestrados e liberados pelas incríveis somas de 2 e 5 milhões de dólares, em poucos dias.

Um comerciante foragido do Líbano para a Síria foi sequestrado lá. Para tentar libertá-lo, 40 sírios foram sequestrados no Líbano. Seus sequestradores apareceram na televisão, mostrando seus documentos de identidade e pedindo a troca. Este grupo exagerou, foi preso e esta troca não prosperou.

Khalil foi marinheiro de cabotagem durante 10 anos, conhece o mundo inteiro. Ou melhor, os portos do mundo inteiro. O Brasil existe por Santos, Rio de Janeiro e Paranaguá. Em compensação, o Paraguai e a Bolívia não existem, conforme o mesmo critério da Rainha Elisabeth: não tem saída ao mar.

Durante a guerra civil de 1975 a 1990, a casa dos pais de Khalil, drusos, foi explodida e seus pais morreram. Ele foi com sua família para a Alemanha, onde trabalhou 10 anos como operário e voltou quando o país ja havia sido reconstruído. Ele trouxe um Mercedão cinza, com o qual ganha a vida e que nos transporta pra lá e pra cá neste Líbano de hoje.

O homem mais rico do Líbano, Farid Hariri, foi eleito presidente para comandar a reconstrução e o fez atraindo investimentos e empréstimosestrangeiros, que desfiguraram boa parte de Beirute e endividaram muito o país em um esquema claramente especulativo e neoliberal.

Mas era um tempo de resgate do país, de otimismo, depois da devastação da guerra civil. Porém, em 2005, em frente a um dos hotéis mais conhecidos de Beirute, um carro explodiu quando passava a comitiva de Hariri. Morreram ele e 13 dos seus guarda-costas. Nunca se descobriu os autores do atentado.

Foi construído um mausoléu na praça principal da cidade, ao lado da principal mesquita, mas os tempos de otimismo acabaram para o Líbano. Desde então o país voltou a viver à flor da pele, sempre esperando novas explosões de violência, seja entre cristãos e islâmicos, seja dentro de cada uma dessas religiões, seja a partir das comunidades que compõem o pais.

Um país que tem fronteiras com a Síria – agora conflagrada – e com Israel, países que o invadiram várias vezes, não pode ter sossego. O mar é o oxigênio do Líbano, porque ao sul tem um muro que impede o acesso à Palestina e tem Israel. No resto das fronteiras, a Síria, cuja guerra civil ameaça estender seus efeitos sobre o Líbano.

Sem falar nos palestinos. O Líbano é o pais que abriga mais palestinos em proporção à sua população – com exceção desse Estado postiço, a Jordânia, em relação ao qual o sonho israelense é expelir a todos os palestinos, fazendo desse país o abrigo dos palestinos, cuja terra Israel pretende esvaziar e se apropriar inteiramente.

Entre os riscos de instabilidade politica – em maio deve haver novas eleições presidenciais, fator de risco sempre – e casos como esses de mini-sequestro, grandes empreendimentos econômicos ligados aos ricos países do Golfo são suspensos. A elite síria, que também tinha se refugiado aqui pela guerra civil, se desloca para outros lugares, ajudando a paralisia e as incertezas para os libaneses.

Khalil tem medo de que, vendo meu Emir no nome, acreditem que é um título e não um nome, que sou mais um dos miliardários de Kuwait ou de Omã, e possa ser vítima de algum mini-sequestro. Por isso diz que atua também como meu guarda-costa.

Eu conhecia Baalbek de todas as folhinhas e calendários da infância, de lojas árabes, em que essas ruínas eram o prato principal. Eu reencontro e reconheço Baalbek, bonita, imponente, só maior do que eu a conhecia.

Na ida e na volta, casamentos, típicos do sábado, gente dançando com os noivos em praças. Noivos tiram fotografias para o álbum nas ruínas de Baalbek.

No retorno, paramos para comer a especialidade da região: uma esfiha pequena, feita na hora, de que o mínimo que eles vendem é meio quilo, o que representa 100 esfihas. Eu tomo um iogurte que funciona como refrigerante. No final do almoço trago numa quentinha 30 esfihas, o que significa que comemos 70, certamente 40 ou mais Khalil.

Na ida e na volta, pago o pedágio de ouvir Julio Iglesias, o tempo todo, no rádio do carro, cantando em castelhano, em português e em italiano.

No retorno fico olhando as montanhas, onde fica o povoado dos meus pais – Kfifen -, do qual, a ninguém a quem perguntei, nunca ouvir falar. Tão pequeno será, num pais tão pequeno!

Mas me lembrei que o povoado tinha um Frei, candidato a ser tornado santo – Frei Charbel -, para quem as tias pediam que rezássemos, para que ele se tornasse santo. Encontrei, numa livraria cristã do centro de Beirute, um pequeno livrinho sobre ele. Pelo visto as rezas funcionaram, ele se tornou santo. A mulher da loja, acreditando que sou um seguidor do Frei, me deu de presente um saquinho de plástico com um vidrinho com uma poção magica ligada ao Frei e umas pedrinhas do seu tumulo, que dão sorte. Mas no livrinho está escrito o nome do povoado – Kifane.

Antes de sair de Baalbek, escrevo numa árvore o nome dos dois, do meu pai e da minha mãe: Nahul e Ercília.