Edward Said e a cobertura jornalística dos ataques ao Líbano
Enquanto escrevo a TV anuncia a morte de 54 civis libaneses, entre eles 37 crianças, na mais violenta ação das forças israelenses desde o início desta estúpida ofensiva militar em território libanês. Em outro canal, o Itamaraty presta contas sobre o resgate dos brasileiros ainda presos em meio ao conflito. Numa revista, Condoleezza Rice e Ehud Olmert trocam sorrisos em mais um cordial encontro. Nos jornais, a ministra das relações exteriores de Israel, Tzipi Livni, é exaltada por conta do binômio competência/beleza – uma espécie macabra de “musa”. Em nenhum momento nessa coleção de textos e imagens aparece a imagem de um árabe. Nem o primeiro-ministro libanês, nem militantes do Hizbollah, nem civis. Inútil dizer que não há sequer uma linha dedicada ao depoimento de um cidadão do Líbano ou de qualquer outro país árabe sobre o conflito. No mundo inteiro, o público é vítima dos interesses corporativos nos bastidores da mídia de massa e da falta de informação dos jornalistas que cobrem o mundo árabe. No Brasil, em particular, sofremos com uma cobertura quase sempre terceirizada por conta do alto custo de manutenção de equipes no exterior e também pela pouca importância que o público brasileiro dá aos fatos de fora do eixo Estados Unidos-Europa. Nossa própria política externa descobriu há pouco tempo as inúmeras possibilidades do hemisfério sul. O que mais me intriga como jornalista e como descendente de palestinos é o nível praticamente nulo de conhecimento sobre o mundo árabe entre os jornalistas que cobrem o noticiário internacional a partir do Brasil. É claro que não acredito que devam se tornar especialistas de área. Mas poderiam se esforçar um pouco mais para compreender a história do mundo árabe em sua complexidade e ir além das interpretações enviadas pelas agências de notícia internacionais. Para que a cobertura seja coerente, eficiente e honesta há um passo vital a ser dado por qualquer jornalista que cubra o Oriente Médio: ler Edward Said, ora! Em 1981, Said publicou a obra síntese da cobertura jornalística dos fatos do Oriente Médio: Covering Islam: how the media and the experts determine how we see the rest of the world (infelizmente ainda não editado no Brasil, mas disponível em importadoras e pela Internet por menos de US$ 15). Em 1997, o livro foi relançado com revisão do autor. Embora alguns dos temas levantados se apliquem mais diretamente à mídia americana, há pontos que se aplicam também à imprensa brasileira e que devem ser levantados diante da cobertura insipiente do que se passa no Líbano nesse momento. Há imensa repetição de estereótipos em uma cobertura emocional dos fatos. O mundo árabe é retratado como entidade única e estagnada. O Líbano e a Arábia Saudita, por exemplo, são absolutamente a mesma coisa. Do mesmo modo, todos os árabes são iguais e nunca retratados individualmente, mas em bandos. Todos já vimos imagens de militantes marchando de armas em punho ou de mulheres vestidas de negro e chorando em desespero os seus mortos. Alguém já ouviu suas vozes ou sabe o que eles pensam? Improvável. Como Said observou, também na mídia, os árabes não tem voz. Os intelectuais árabes, e há muitos vivendo no Ocidente, raramente são chamados a dar sua interpretação dos fatos. Em seu lugar, são convocados especialistas ocidentais e rapidamente são feitas as associações “árabe-aversão à modernidade” e “árabe-fundamentalismo”. Isso se dá porque eles raramente conhecem o todo da civilização árabe (literatura, direito, política, sociologia, artes ...) e também não se esforçam para explicar termos como fundamentalismo (suas manifestações em outras religiões e a confusão com radicalismo ou extremismo). No caso dos recentes ataques, o caráter religioso do estado israelense nunca é mencionado. A existência de uma oposição, tanto nos países árabes, quanto em Israel também não recebe destaque. Diariamente acontecem em Tel Aviv e Jerusalém manifestações de grupos pacifistas israelenses contrários à guerra. Simultaneamente, acontecem em Beirute (cada vez menos por conta dos bombardeios) manifestações pedindo o fim dos ataques e outras de grupos de oposição tanto a Israel quanto ao Hizbollah. É claro que para a mídia “preto-no-branco” israelenses sempre devem ser a favor dos ataques e libaneses sempre partidários do Hizbollah. Como Said ressalta em Covering Islam, há sempre o favorecimento de certas representações da realidade – sempre o que nós achamos “deles” e nunca o que “eles” acham “deles” mesmos. Há implicações políticas tanto no estudo de área, quanto na cobertura jornalística: órgãos governamentais, corporações e diretrizes de política externa. Sabemos que a segurança de Israel é a desculpa perfeita para a perpetuação da hegemonia ocidental em todo o mundo árabe. O público realmente entende o que se passa nos países árabes? Será que as pessoas sabem por que Israel ataca o Líbano? Fica clara a intricada lista de interesses que marcam as relações de todo o planeta com os países árabes? São perguntas que nós jornalistas devemos nos fazer. Para isso, Covering Islam é ferramenta fundamental.