Independentes, mas ainda não livres - parte 4
Não se pode pensar em independência sem se examinar as condições acordadas entre Argélia e França para garanti-la. Depois de exaustivas negociações, as duas delegações, a argelina, chefiada por Krim Belkacem (1922-1970), ministro da defesa e depois das relações exteriores do GPRA, e a francesa, por Louis Joxe (1901-1991), ministro de estado para assuntos argelinos, assinaram os Acordos de Evian, cujo título oficial é Declaração Geral das duas Delegações, em 18 de março de 1962. Já pelas duas denominações daquilo que se convencionou, dá para se ter uma ideia das dificuldades que foram encontradas durante as negociações e até que se chegasse a um acordo. As expressões “guerra” e “acordos”, a rigor, não poderiam ser empregadas, pois só um Estado pode fazer a guerra e assinar acordos, o que não se aplicava à Argélia. Por trás destas qualificações jurídicas se escondem, na verdade, questões políticas na busca da solução do conflito armado.
O texto integral foi publicado pelo jornal El Moudjahid no lado argelino e pelo Journal Officiel no lado francês respectivamente em 19 e 20 de março de 1962. O texto publicado na Argélia se referia a “Governo Provisório da República da Argélia” e aquele constante do diário oficial francês o “Front de Libération Nationale”, já que a França não reconhecia o GPRA.
O documento põe fim ao conflito e a França reconhece a independência da Argélia e trata também da cessação das hostilidades, sobre o período de transição, libertação de prisioneiros, organização dos referendos, programação da retirada das forças francesas, o estatuto daqueles que preferirem guardar a nacionalidade francesa.
O ponto chave da questão não consta do documento: são os acordos sobre os ensaios nucleares franceses no Saara argelino. Num primeiro arroubo é de se indagar como Belkacem aceitou que tais experimentos fossem feitos, prejudicando e contaminando as pessoas e o território, mas num segundo momento, é recomendado que se entendesse o clima dominante durante as negociações e a discrepância, em todos os aspectos que se queira, de um estado colonial comparado a uma frente de libertação; não cabe comparação.
Em artigo recente publicado pelo jornal argelino Liberté de 07/07/2012, o jornalista Djamel Bouatta, em artigo intitulado “No Saara argelino – A pesada herança do nuclear” expressa a sua indignação ao escrever que “a explosão da bomba atômica francesa chamada Gerboise Bleu, três vezes mais potente que aquela lançada pelos estadunidenses sobre Hiroshima, causou chuva negra em Portugal”. “Ao todo, prossegue Bouatta, a França realizou entre nós 4 ensaios aéreos e 13 outros subterrâneos, sendo o último em fevereiro de 1966 [e] outras experiências foram realizadas clandestinamente, no mínimo, outras quarenta”. O jornalista do Liberté continua: “Hoje, os locais são abertos aos quatro ventos, atravessados por nômades e os equipamentos escondidos abaixo dos terrenos reapareceram graças à erosão [e] se constituem em novas fontes importantes de radiação”. Na França, só agora foi dado ao pessoal militar e civil que participou do empreendimento auxílio médico enquanto que na Argélia pouco se fez. É por isto que Bouatta grita: “Cinquenta e um anos após, explosões e ensaios nucleares continuam a fazer vítimas no grande sul argelino, principalmente entre as populações jovens que sofrem de dois problemas: as consequências da radioatividade com o aparecimento de leucemia desde 1984 e nossa indiferença total apesar de que nossa responsabilidade está plenamente engajada”.
Se os negociadores de Evian não pensaram nas consequências ou se eles e seus sucessores, dos dois lados do Mediterrâneo, acham que valeu ou não a pena, é hora de voltar ao que ocorreu depois.
Com a proclamação da Independência, em 5 de julho de 1962 começou, dias depois, a luta pelo poder. Dia 22, Ahmed Ben Bella (1918-2012), com apoio do coronel Houari Boumediene (1932-1978), comandante do Exército Nacional Popular (ANP), braço armado da FLN, formou em Tlemcen o Birô Político contra a GPRA, esta instalada em Argel. Fracassadas as negociações pacíficas, em setembro, o ANP entra em Argel e Ben Bella assume o governo dia 29.
Na primeira quinzena de setembro de 1963, uma Constituição foi adotada por referendo, um regime de partido único foi instaurado e Ben Bella foi eleito, sem contestação, Presidente da República e, dias depois, Hocine Ait Ahmed (que fora representante da FLN na Conferência de Bandung) cria a Frente das Forças Socialistas (FFS) e entra em dissidência na Kabilia.
Contados os 437 dias após a data da independência ocorreu a primeira cisão dentro do partido que lutou por ela e 1080 dias depois ocorreu o primeiro golpe de estado por iniciativa de Boumediene que derrubou o companheiro Ben Bella, em 19 de junho de 1965, e revogou a Constituição dias depois.
Ben Bella fora eleito pelo povo argelino e a Constituição igualmente votada pelo mesmo povo. Pierre Vergniaud (1753-1793), um dos líderes da Revolução de 1789 já dissera, antes de ser guilhotinado: “Cidadãos, teme-se que a revolução, como Saturno, não devore sucessivamente todos os seus filhos e não produza finalmente o despotismo, com as calamidades que a acompanham”. A frase coube perfeitamente à revolução argelina que apenas dava seus primeiros brados.
Boumediene passou a governar com um Conselho da Revolução, formado principalmente por militares. Segundo declarou ao jornalista francês Robert Gauthier (1901-1966), então Redator Chefe do jornal Le Monde e autor de várias obras sobre a Argélia, conforme consta do artigo Vocation Socialiste et Réalités Économiques, “[O Conselho] continuaria fiel às opções interiores e exteriores definidas logo após a independência, mas que uma ação coordenada, realista, eficaz, seria empreendida para que fossem finalmente realizadas as esperanças do povo”. Sua política externa caracterizou-se pelo apoio aos movimentos de libertação nacional das colônias afro-asiáticas e pela adoção internamente de uma política socialista, nacionalizando, em 1966, várias empresas estrangeiras, principalmente as francesas, de minas e seguro. Por outro lado, assinou vários acordos de cooperação com a França.
Somente em maio de 1967 o pessoal francês, militar e civil, deixa as bases de Reggane e Bechar, onde foram realizas as experiências nucleares e meses depois a base marítima de Mers El-Kébir que dava apoio àquelas.
Em solidariedade ao Egito, à Jordânia e à Síria, atacados por Israel em junho de 1967, na que passou a ser conhecida como a Guerra dos Seis Dias, Argélia, Iraque, Kuwait e Sudão mobilizaram as suas tropas, mas não chegaram a enviá-las. A Argélia, em decorrência, rompe relações diplomáticas com os Estados Unidos.
Tahar Zbiri (1929-), chefe do estado maior do exército, participou do golpe de estado que derrubou Ben Bella, junto com Boumediene, é feito membro do Conselho da Revolução. Decepcionado com o posto que lhe foi atribuído, em dezembro de 1967, tenta e fracassa num golpe de estado contra Boumediene. É mais cisão entre revolucionários. Zbiri viveu no exílio e só voltou à Argélia após a morte de Boumediene.
Demorou, mas parece que o ano de 1971 foi o ano de lembrança das importantes reivindicações do povo argelino: em fevereiro o estado nacionalizou petróleo e gás adquirindo 51% das companhias francesas presentes na Argélia e, em novembro, lança a “revolução agrária” e a “gestão socialista das empresas”. A cultura resistente a todo tipo de dominação estrangeira solaparia as iniciativas modernizantes de Boumediene. Faltava também ao país quadros para tocarem as iniciativas.
Boumediene tomou parte ativa na política internacional de não alinhamento e fez com que a IV Cúpula dos Países não Alinhados se realizasse em Argel, em novembro de 1973 e, com o sucesso da iniciativa, foi às Nações Unidas e pronunciou um discurso reivindicando uma nova ordem econômica internacional.
O primeiro presidente da república francesa, Valéry Giscard d’Estaing (1926-) a visitar a Argélia após a independência, em abril de 1975, em nada arrefeceu os sentimentos contra a França colonial, muito pelo contrário, conseguiram ampliar as divergências entre os dois países.
Após fazer aprovar, em junho de 1976, uma Carta Nacional, como todos os demais presidentes argelinos, Boumediene também teve a sua Constituição, ambas votadas em referendo e, sendo candidato único, de partido único, foi eleito presidente em dezembro.
Boumediene morreria exatos dois anos depois, em 1978.
Estava aberto o caminho para a Guerra Civil.
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