O poeta, o rastro do sonho*

Qui, 23/03/2006 - 00:00
CONTAM QUE... Ibn Hazm, poeta do século XI, intelectual de amplo espectro, jurista, filósofo, foi um homem do califado. Viveu o esplendor de Córdoba e parece que seus passos permaneceram no tempo da dinastia omíada, mesmo depois de destruída. Ao norte, Rodrigo de Bivar, el Cid, admirado por chefes e tropas cristãs e árabes, lutou dos dois lados. O adolescente sensível Ibn Hazm acompanhava os feitos do guerreiro, pouco antes da destruição de Madinat-al-Zahra, a cidade real. Mesmo com a prisão do pai e as invasões sucessivas, viveu em busca do resgate do califado. Ou do próprio sonho? Levou amargura pelos seus dias e não imaginava que seria conhecido na posteridade por um livro sobre o amor: histórias e observações da elegante sociedade em que viveu, contas preciosas do colar pendurado no pescoço de uma pomba. "O colar da paloma". Tratados neoplatônicos e textos sobre jurisprudência, suplantados por um livro romântico que abordava temas como : "Daqueles que se apaixonam à primeira vista", "Dos sinais enviados pelos olhos", "Da traição". Um "tributo ao amor cortês", segundo Maria Rosa Menocal que ainda nos conta: "... a popularidade duradoura d' O Colar, deveu-se precisamente às maneiras como o mundo das taifas - um mundo que Ibn Hazm via como um sinal inequívoco do fim da civilização que ele conheceu e amou - transformou aquelas noções altamente refinadas bastante acessível à todos. Foi o mundo das taifas que retirou esses conceitos dos lugares cercados de muralhas onde antes se escondiam, como Madinat-al-Zahra, expondo-o aos olhos do público". Este trecho de "O colar" me trouxe ecos de um soneto de Camões e um sentimento de contemporaneidade: "O amor, Deus seja louvado, é uma enfermidade Cujo tratamento deve ser de acordo com a aflição. Deliciosa doença, maravilhoso mal bem vindo. Quem dele não sofre não quer ser-lhe imune, E quem dele sofre não quer vê-lo findo. Minha doença, os médicos não curam. Inexorável, arrasta-me à destruição. Consinto em fazer dela um sacrifício E, impaciente, bebo o vinho e o veneno. Minhas noites de amor foram sem peja Minh’alma as amou, porém, acima das paixões." ( O COLAR DA PALOMA) Camões, 500 anos depois de Ibn Hazm, Borges e nós em 2005, o desespero do apaixonamento que nos enforca, sem nos deixar alternativa que não seja, na melhor das hipóteses, a da entrega: " o amor é fogo que arde sem se ver é ferida que dói e não se sente é um contentamento descontente é dor que desatina sem doer É um bem querer mais que bem querer é solitário andar por entre a gente é um não contentar-se de contente é cuidar que se ganhe em se perder É um estar-se preso por vontade é servir a quem vence o vencedor é um ter, com quem nos mata, lealdade Mas como causar pode o seu favor nos mortais corações conformidade sendo a si tão contrário o mesmo amor." (LÍRICA) E Borges: "es el amor, tendre que ocultarme o que huir..." (EL AMENAZADO) *texto originalmente publicado no dia 9 de dezembro de 2005, na edição nº28 da newsletter do Icarabe