Pela paz entre os povos
Em meados de setembro a Cinemateca de São Paulo, antigo abatedouro municipal inteiramente reformado, foi palco de uma série de eventos entrelaçando as tradições orientais e ocidentais em torno da figura do jurista e médico Averróis. Ele empresta o nome ao prêmio instituído pelo senador José Luiz Del Roio. Pelo segundo ano consecutivo, é entregue a quem, em seus diferentes campos de atuação, contribui de forma criativa, pioneira e solidária, para aperfeiçoar a sociedade em que vivemos. Agora em 2009, foi entregue à professora Ausonia Donato, doutora em Saúde Pública pela USP e diretora pedagógica do Colégio Equipe. As atividades abriram com a jornada de cuidados paliativos e o Fórum do Conselho Federal de Medicina. Ao longo de quatro dias, de 10 a 14 deste mês, na sessão cinema e reflexão, foram exibidos 12 filmes, além de um coletivo de curtas-metragens, com mesas redondas que procuraram discutir e aprofundar as questões relacionadas à qualidade de vida, aos direitos dos pacientes e às escolhas de seus familiares. Como pano de fundo, o público pode apreciar a exposição “O sentido da vida em Al-Andaluz”. Concebida e realizada pela arquiteta Rita Vaz - também responsável pela arrojada reformulação arquitetônica do Hospital Premier, patrocinador da iniciativa - revela um olhar impressionista da região, mostrando a Espanha muçulmana do século VIII ao século XV com seus palácios, mesquitas e fortificações, jardins, pátios floridos e chafarizes que persistem nas cidades andaluzes até os dias de hoje, refletindo a cultura, a arte, a ciência e a técnica ibérica na Idade Média. As imagens retratam o ambiente urbano habitado por Averróis. Nascido em Córdoba em 1126 e tido como o mais importante filósofo do período, lançou as bases humanistas que construiriam o Renascimento europeu, deixando sua marca no pensamento ocidental. Para defini-lo, nada melhor do que citar um trecho de um poema de Zajal de Ibn-Quzmán de Córdova. Dirigido ao Averróis jovem, e traduzido por Michel Sleiman, diretor do Icarabe, seus refrãos dizem: “Como esse cortês não tem igual! Se o assunto é beleza, ele é o tal. Quer falar de outro? pega mal. Quer falar de generosidade? é um: Averróis Abulualide. De alta índole, ele é todo honrado. Perto dele, todo rei é escravo”. Foram os textos e a atitude de Averróis no sentido de estabelecer pontes e recuperar os traços comuns entre as diferentes religiões, etnias e culturas, sem perder de vista as especificidades de cada uma delas, numa convivência que transcende a tolerância, para ir além, na busca de um intercâmbio de saberes e competências, que inspiraram o concerto Enlace. Inaugurando a série de eventos na Cinemateca, reuniu dois expoentes do cenário musical brasileiro e tunisiano, Ivan Vilela e Mouna Amari, que tocaram sob a regência do maestro Martinho Lutero, mineiro radicado em Milão. Presenciamos a união de talentos de refinada qualidade artística. De um lado Ivan, compositor e arranjador que em mais de vinte anos de pesquisa e estudos levou a viola caipira a níveis artísticos e técnicos impensáveis para um instrumento de tanta tradição popular, conseguindo extrair dela sonoridades muito antigas, quase arcaicas. Já Mouna Amari, formada pelo Conservatório de Tunis e pelo Conservatório de Paris, adquiriu este raro conhecimento que vem do instrumento árabe, o Alaúde e do instrumento clássico europeu. E assim como Ivan Vilela, fez a trajetória em direção às raízes, procurando no seu instrumento as sonoridades de origem. E nesta busca os dois acabaram se encontrando, já que Vilela seguiu as pistas dos avós da viola caipira, que descende do alaúde árabe que migrou para a Península Ibérica, onde criou-se a viola portuguesa, da qual a viola caipira é derivada. Nesta comparação de parentesco próximo vale, aqui, retomar outro trecho do mesmo poema de Zajal, antes citado: “Tal avô, tal neto, nisto é nato: do pai a hereditariedade. Justo! por que buscar outra estirpe? Necessariamente a qualidade foi buscar no avô, o grande cádi. Nem a alcunha está pela metade, nem tem outro nome: é Muhamade. O neto supre o avô na lide”. Na ocasião, os sons de Mouna e de Ivan transformam-se numa única melodia, na qual distinguimos o masculino e o feminino, vestígios do universo árabe e muçulmano, ecos da brasilidade tropical num enraizamento de abrangência universal. Fechando o conjunto de atividades, o concerto de encerramento “Mosaico de sons pela vida e pela paz entre os povos”, homenageou e ao mesmo tempo traduziu as ideias e ações de Averróis. De fato, a figura sábia de Ibn Rushd, que teve uma educação influenciada pela cultura árabe, vigente em toda a Espanha da época, desempenhou papel fundamental para, junto com Maimônides, transmitir a obra de Aristóteles ao Ocidente. Mais do que isso, ao considerar o Corão uma prescrição a ser conhecida, e não apenas acreditada, Averróis instalou a razão no âmago da fé. Assim, a costura entre as tradições do Oriente e Ocidente, entre o mundo cristão, muçulmano e animista, entre Europa, África e América Latina esteve representada nos cantos corais ibéricos de fundo moçárabe com as raízes africanas. Sob a regência do maestro Martinho Lutero, ouvimos o Coro Luther King, que ele fundou em São Paulo nos idos de 1970 e do qual é o diretor artístico. Tivemos o privilégio de escutar uma Missa Luba – a primeira obra musical de caráter verdadeiramente sincrética do ritual africano, uma composição coletiva dos anos 1960, do então Congo belga. Ela foi concebida a partir dos trechos cantados da missa cristã em latim, que funciona como uma espécie de tapete sobre o qual se baseia a percussão do Djembe Dumdum, tambores da Guiné. Junto deles, numa sobreposição de notas musicais que se complementam na sua diversidade, o tambor árabe chamado Derbaqui era perpassado pelos cantos islâmicos na voz de Mouna Amari. Residente na Tunísia, a primeira mulher a entoar os versículos do Alcorão em público, é uma das mais importantes instrumentistas do Alaúde. Ao seu lado, Ivan Vilela e sua viola caipira de novo dialogam com o alaúde de Mouna, enquanto o Djembedon, grupo de percussionistas africanos e brasileiros, acompanhou os cantos de tradição africana. Durante este verdadeiro ato ecumênico de sonoridades e melodias, que por alguns instantes mágicos nos carregou para uma dimensão imaginária na qual a intolerância cedeu lugar ao convívio harmonioso e enriquecedor entre culturas aparentemente tão díspares, foi inevitável relembrar o escritor e também musicista Mário de Andrade que em 1922, no verso O Trovador, do livro Paulicéia Desvairada, dizia: ”Sentimentos em mim do asperamente Dos homens das primeiras eras.... As primaveras do sarcasmo Intermitentemente no meu coração arlequinal. Intermitentemente. Outras vezes é um doente, um frio Na minha alma doente como um longo som redondo... Cantabona!... Cantabona!... Dlorom.... Sou um tupi tangendo um alaúde”.