Síria: agonia do regime e o nascimento de uma nova nação
Não é possível prever se, e quando, o regime de Bashar vai cair e quem serão os vencedores, mas quando os "novos conquistadores" tomarem o poder estarão de frente para uma nação que dificilmente será ludibriada ou amedrontada.
Artigo extraído da Carta Maior
Há um ano teve inicio a revolta na Síria que se tornou o episódio mais trágico, polêmico e incerto das revoltas árabes. Os altos custos humanos, econômicos e sociais do conflito relacionam-se cada vez mais à luta estratégica travada entre as grandes potências e os poderes regionais sobre o futuro do país. Historicamente, nos momentos em que a Síria encontra-se unida e estável, ela representa um importante ator regional, mas quando esta dividida e instável, como agora, torna-se uma arena para a luta de forças externas, muito embora a revolta tenha se originado exclusivamente no seio de sua sociedade.
Ao comparar o regime político da Síria com o de outras repúblicas árabes, é notável suas diferentes características: uma política externa mais congruente com a opinião pública (de forma retórica ou não), forças de segurança mais leais ao governo, uma sociedade civil mais fraca e uma oposição mais fragmentada. Talvez por isso mesmo a resposta inicial do regime frente às manifestações foi misturar repressão, ao condenar os manifestantes como parte de uma conspiração estrangeira, com tentativas tradicionais de apaziguamento e de cooptação.
Para o regime e seus aliados, a sociedade na Síria é imatura e suas tendências sectárias só podem ser contidas por uma estrutura de poder fortemente centralizada. Nesse sentido, remover Bashar é permitir a guerra civil e a hegemonia de poderes islâmicos apoiados pela Arábia Saudita e seus aliados ocidentais. Na verdade, essa estratégia - dividir para reinar - foi herdada do colonialismo, que já alimentava as fraturas na sociedade com o receio de que pudessem vir a sustentar um novo sentimento democrático verdadeiramente nacional.
É preciso reconhecer que nem todos os alauitas apoiam o governo. Alguns setores como intelectuais e camponeses ressentem-se com a forma que sua comunidade tem sido instrumentalizada pelo regime. Cristãos, que estão geograficamente dispersos, adotam pontos de vista extremamente diferentes.
Os que estão em Damasco e Alepo, em geral, apoiam o governo, mas em muitas outras áreas, os cristãos revelaram simpatia com os manifestantes. Os Ismaelitas, com sede na cidade de Salamiya, estavam entre os primeiros a aderir à oposição. Também não são todos os sunitas que protestam contra o governo, como por exemplo as tribos Shawaya no nordeste do pais.
Mais do que uma questão étnica, religiosa ou mesmo geográfica o conflito deve ser visto como um fenômeno de mudanças da base social do poder do governo Bashar.
O golpe que levou ao poder uma nova elite composta por oficiais militares foi moldado por suas origens rurais nas lutas sociais dos nacionalistas da década de 1960, resultando numa simbiose entre o partido Baath e as forças armadas (da seita alauita). Isso sempre provocou ressentimento entre a maioria da comunidade sunita, mais especificamente, nos setores comerciais urbanos representados pela Irmandade Muçulmana. As rebeliões urbanas, incluindo a insurreição que abalou as cidades do norte no início dos anos 1980 é um reflexo disso. Depois desse episódio, proliferaram as agências de inteligência para proteger o regime, os quais se mantinham leais por meio da tolerância de suas práticas corruptas. Hafez al-Assad usou e abusou de uma política externa nacionalista (árabe), como um Estado de linha de frente com Israel, para obter ajuda dos paises do Golfo Pérsico e da União Soviética.
Mas com o fim da Guerra fria a ajuda externa diminuiu consideravelmente, provocando fortes impactos na base fiscal do Estado e fazendo com que suas vulnerabilidades econômicas viessem à tona, apesar das receitas provenientes das reservas de petróleo que também diminuíram no final da década de 90. A legitimidade política derivada do "contrato social" pelo qual o regime proporcionava alimentos subsidiados e emprego para as classes média e baixa entrou em crise, dando inicio a uma política de austeridade com o congelamento dos benefícios sociais e redução do poder aquisitivo dos funcionários públicos. Os gastos do governo caíram de forma pronunciada (de 50% para 25% do PIB). Nesse contexto o regime pode manter um equilíbrio precário entre os seus antigos aliados e recém-emergentes burgueses apelando, para a necessidade de um novo consenso
Buscando consolidar o poder dentro do regime que herdou de seu pai, Bashar viu enfraquecida a sua capacidade de sustentar seu poder sobre a nova base de apoio social. Ao mesmo tempo a legitimidade nacionalista de política externa já não era capaz de se conciliar com a identidade nacionalista árabe, no conflito com Israel, com a integração da Síria na economia mundial. Mas quando o regime parecia mais vulnerável e isolado, Bashar deslocou o comércio exterior da Síria para China, Irã, Turquia e países do golfo. Em 2005, a Síria aparecia como o quarto maior país beneficiário do investimento árabe. O investimento estrangeiro direto passou de US$ 111 milhões em 2001 para US$1,6 bilhão em 2006.
Essas ações proporcionaram alivio econômico para as contas do governo, mas resultaram em uma mudança significativa da base social de sustentação do regime que passou a transferir suas responsabilidades de proteção social e de criação de empregos para instituições privadas, respondendo à demanda da nova elite. As terras do Estado foram vendidas para os novos investidores, o que resultou na elevação do custo da moradia e, consequentemente, no crescimento de bairros pobres em torno das cidades.
Não por acaso nas principais cidades, Damasco e Aleppo, onde o boom de investimentos, o aumento do turismo e do novo consumo se concentraram, o governo foi capaz de mobilizar demonstrações de apoio importantes, embora tenha ocorrido revoltas em seus arredores. A classe média dessas cidades via inicialmente Bashar como o protetor da ordem, preferindo a estabilidade aos riscos de democratização que pudesse trazer a guerra civil e a perda de seu estilo de vida moderno. Mas, a partir do momento que o regime mostrou sua incapacidade de manter a segurança, passou a criar desconfiança entre alguns de seus aliados.
Dificilmente o regime irá sobreviver a esta crise, que pode assumir novos e perigosos contornos. Os manifestantes, cada vez mais desesperados, devido a brutal repressão, se submetem a qualquer tipo de ajuda exterior sem pesar o custo de certas alianças políticas que poderá desfigurar aquilo que apareceu como a maior ameaça ao governo: amplo movimento democrático autônomo exigindo profundas mudanças políticas e econômicas. Entretanto, ao tratar todo e qualquer manifestante como inimigo, Bashar forjou contra si mesmo uma coligação (interna e externa) muito grande.
Apesar de o regime de Bashar revelar sinais de esgotamento a economia do país não vai entrar em colapso no curto prazo. A Síria não esta completamente isolada e continua o comércio com Iraque, Jordânia, Irã, Rússia e China. Alguns bancos do Líbano são susceptíveis de agir como um paraíso para o dinheiro sírio. Quase todos os clássicos ingredientes para ocorrer uma revolução podem ser notados na Síria: crescimento demográfico, mobilização social, estagnação do desenvolvimento econômico, déficit fiscal crônico, aumento da desigualdade social e repressão política. Falta, entretanto, outro elemento necessário que abreviaria o final do regime: divisão das forças armadas.
Muito embora não se possa prever se, e quando, o regime de Bashr vai cair e muito menos quem serão os vencedores, cito aqui o velho ditado lembrado pelo prof Hamid Dabashi, que a partir de agora deverá ser válido para a Síria: você pode conquistar uma terra a cavalo, mas você deve descer para governá-la. Ou seja, quando os “novos conquistadores” tomarem o poder estarão de frente para uma nação que dificilmente será ludibriada ou amedrontada.