“Turismo Doméstico II”: o cinema e as pirâmides

Ter, 12/06/2012 - 17:41
Em ambos os filmes “Turismo Doméstico I” e “Turismo Doméstico II”, meu interesse não foi o turismo em si, mas a representação visual genérica do Cairo num sentido amplo, as interrelações e experiências pessoais. Na série fotográfica “Turismo Doméstico I”, os gêneros das imagens turísticas do Egito fornecem uma referência formal, ou um ponto de partida, para uma experiência mais psicológica da cidade. Essas manipulações digitais das imagens apresentam problemas, imagens menos vendáveis e um pouco desconfortáveis em relação às imagens do Egito consumidas localmente. O turismo, neste contexto, refere-se a um modo de percorrer um lugar e aproveitar um local, seja por um estrangeiro ou por um residente, e o título “Turismo Doméstico”, refere-se a ambas as relações: íntima e distante com o ambiente.
 
Em “Turismo Domestico II”, meu ponto inicial era a representação das pirâmides no cinema egípcio. Meu interesse nas pirâmides começou, na verdade, quando eu percebi quão estranho era vê-las todo o tempo sem realmente ter consciência delas; ter essas estruturas minimalistas em frente a uma labiríntica e complexa cidade como o Cairo. E ainda como é estranho ter esses ícones estranhamente próximos à cidade, mas numa representação turística distante do tempo e do espaço presentes, mostradas apenas com um deserto sem fim ao fundo, referindo-se somente à antiga civilização egípcia. Então, eu comecei a me interessar pelas diferentes representações cinematográficas. Como elas estão envolvidas na luta da cidade debatendo-se entre passado e presente.
 
Na fase de pesquisa para “Turismo Doméstico II”, eu comecei a procurar por filmes que tivessem cenas com as pirâmides como pano de fundo. Para este levantamento, eu comecei a perguntar às pessoas se lembravam de filmes com cenas assim, que tendem a ser as mais dramáticas. Mas eu também me deparei com um monte de cenas banais. Olhando para esta grande coleção de cenas, acabei com uma espécie de line-up de significados simbólicos ligados a estes ícones, ou "um fluxo contínuo de referências a um único ícone", como o curador Bassam El Baroni descreveu em uma entrevista que teve recentemente e do qual este texto evoluiu.
 
Muitas das cenas das pirâmides, ou pelo menos aquelas das quais as pessoas se lembram, têm uma forte conotação política e estão ligadas a capítulos distintos da história moderna do Egito; uma vez que as pirâmides são comumente usadas como símbolo do país, uma constante contra a qual o presente vem à tona, contrastando com a ideia magnífica do passado, e estas são, geralmente, cenas de lamentação nostálgica, principalmente a partir dos anos 70 em diante, comparando o presente corrupto (leia-se governo ou às vezes a sociedade como um todo) com um passado imaginado como glorioso, ou como continuação desse passado glorificado, principalmente em cenas dos anos 50 e 60, quando a separação entre “nação” e “estado” foi brevemente suspensa e prevaleceu a retórica em nome de uma unidade nacional.
 
Trabalhando em “Turismo Doméstico II”, eu tentei não pesar a mão com o material, então eu continuei o que eu achei que fosse um método e uma composição menos intervencionistas, uma estrutura cronológica. Assim, o filme começa com as cenas mais recentes encontradas, voltando às mais antigas e, depois, volta para o presente, como numa estrutura piramidal. O cronograma é: anos 2000 – 90 – 80 – 70 – 60 – 50 – 60 – 70 – 80 – 90 – 2000.  Eu queria começar e terminar no presente para que o filme não acabasse como uma celebração de um passado romântico versus um presente difícil. Em vez disso, o filme visita o passado e mostra suas várias formulações por um presente em mudança. Claro que eu escolhi qual cena incluir ou excluir. Basicamente eu excluí as cenas que eu considerava repetitivas.
 
Dar ao filme uma estrutura cronológica/piramidal não era apenas uma preferência (simples) conceitual. Esta cronologia histórica é, ao mesmo tempo, uma cronologia emocional, e que traz consigo uma estrutura emocional e rítmica para o filme, à medida que o drama que engole as pirâmides gradualmente se eleva e diminui com o tempo. O filme começa com cenas recentes, dos anos 2000, com o seu leve e superficial envolvimento em questões sociais e políticas e, em seguida, o tom do filme aumenta enquanto se vai voltando para as décadas de 90, 80 e 70, com o maior engajamento do cinema com a dureza da realidade política e social. A tensão é então liberada com as cenas de celebração de alegria, política e social, nos anos 60 e 50, onde as pirâmides atuaram principalmente como pano de fundo para a empolgada e celebrada classe média. Aqui chegamos à mais antiga cena que eu tenho, o ponto de virada, depois que a tensão acumula-se gradualmente conforme nos aproximamos das convulsões traumáticas políticas e econômicas dos anos 60, desembocando no presente. O aumento gradual e a queda da intensidade das estruturas das cenas do filme tornam visível o todo, de modo que tem-se a percepção de que o filme tem uma introdução, um meio e um fim.
 
 “Mas é realmente interessante”, diz Bassan el-Baroni, “que você mencione a natureza minimalista do ícone mais conhecido do Egito e da divisão entre a natureza matemática e metafísica do seu peso e a presença da aparentemente desvinculada estrutura sócio-política do Cairo. Você diria que há uma estranha forma de metafísica acontecendo quando as pirâmides são o pano de fundo de cenas em filmes egípcios?”
 
Minha resposta é: eu acho interessante que você veja alguns dos aspectos “matemáticos e metafísicos” deste ícone abordados em filmes ocidentais, onde as pirâmides são tema de diversos filmes de ficção científica, por exemplo, ou filmes salpicados, embora superficialmente, com os fundamentos filosóficos da antiga civilização egípcia, e que no cinema egípcio, bem como em outras formas de produção de conhecimento em massa, estes aspectos quase não são abordados e a única narrativa na qual as pirâmides mais se destacam são convenientemente fixadas, numa historiografia nacionalista.
 
Contudo, reunindo numerosas aparições das pirâmides no cinema egípcio, nas quais elas falam a língua do momento, seja uma celebração social e política ou uma frustração, pode-se acabar acentuando a sua constante presença “matemática e metafísica” em detrimento das mudanças sócio-políticas em evidência. E talvez, então, a situação se inverta e o pano de fundo reformule ou reinterprete o cenário principal, e não o contrário.
 
“Então ‘Turismo Doméstico II’, de alguma forma, expõe este nicho onde uma espécie de supressão ou metafísica bastante latente cria atrito e age contra um esquema de nacionalismo?”
 
Minha resposta é: eu sinto que ter essas estruturas abstratas minimalistas pairando e parte do tecido urbano desta megalópole é quase surreal, pelo menos visualmente. E, sim, isso seria bom.
 
Artigo baseado em uma entrevista com Bassam El Baroni para o Passado dos Próximos Dias – Programa de Cinema e Performance com curadoria de Tarek Abu El Fetouh para a 9ª Bienal de Sharjah.

Maha Maamoun é diretora dos filmes Turismo Doméstico I e II e convidada especial da 7ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, que começa dia 26 de junho, em São Paulo