Um basta à submissão

Qui, 02/06/2011 - 12:35

 

A Praça Tahrir, no coração do Cairo, já é o símbolo de um povo que derrubou um regime corrupto e autoritário: uma ditadura que combinava repressão doméstica com submissão à política dos Estados Unidos e seus aliados, que durante 30 anos deram apoio político, financeiro e militar a Mubarak.Esses governantes e vários analistas internacionais têm uma visão preconceituosa, superior e hipócrita em relação às sociedades árabe e islâmica. Preconceituosa porque subestimaram os anseios democráticos e a capacidade de mobilização dos povos egípcio e tunisiano. Superior porque a visão desses dirigentes e analistas reduz uma parte do mundo à situação de região tutelada e inferior, protegendo regimes autoritários que atendam a seus interesses geopolíticos e econômicos. E hipócrita porque dissimularam ignorar as inúmeras revoltas árabes desde a época do colonialismo britânico e francês no Oriente Médio e no Norte da África. Essas revoltas se prolongaram mesmo depois da independência no século passado, quando vários desses países tornaram-se novos protetorados ou "aliados", alguns dos EUA, outros da ex-União Soviética.O Egito é o farol cultural do mundo árabe. Apesar da enorme desigualdade social e da repressão durante a era Mubarak, as classes média e operária egípcias reúnem centenas de milhares de pessoas politizadas ou razoavelmente informadas. Além disso, a produção acadêmica das universidades do Cairo e de Alexandria, a obra de romancistas, poetas, críticos, músicos e cineastas, os jornais e revistas (mesmo censurados) não são nem de longe desprezíveis. No ensaio Depois de Mahfuz, Edward Said ressaltou que o escritor egípcio e prêmio Nobel de literatura "pôde contar com a integridade vital e a densidade cultural do Egito. Apesar de sua longuíssima história, da variedade de seus componentes e das influências que sofreu - faraônica, árabe, muçulmana, helenística, europeia, cristã, judaica, etc. -, o Egito possui uma estabilidade e uma identidade que não desapareceram nos tempos atuais" (in: Reflexões sobre o Exílio, ed. Companhia das Letras). Said sublinha que o Egito, "devido a seu tamanho e poder, sempre foi um locus de ideias e movimentos árabes".Vários comentadores de política internacional, em vez de analisarem o significado histórico de uma insurreição popular, preferem insistir no risco de o Egito tornar-se um Estado teocrático. Mas eles sabem que a Irmandade Muçulmana não mantém vínculos políticos e religiosos com o Irã, muito menos com o Paquistão e a Arábia Saudita, dois aliados (nada democráticos) dos Estados Unidos. Vários candidatos dessa Irmandade que conquistaram um mandato no parlamento egípcio foram proibidos de tomar posse, algo que, no passado recente, ocorreu com políticos muçulmanos em eleições na Argélia e em Gaza.No levante popular contra Mubarak, os partidários da Irmandade Muçulmana somaram-se a centenas de milhares de egípcios laicos, coptas e católicos, de diferentes matizes ideológicos. É incompreensível, senão hipócrita e desonesto, que essas vozes quase histéricas contra partidos muçulmanos não critiquem a extrema-direita europeia e norte-americana, em que há figuras sinistras como o francês Le Pen (para quem as câmaras de gás do nazismo eram apenas "detalhes"), ou o partido austríaco e abertamente racista do finado Heider, ou Sarah Palin (a musa do Tea Party), com seu conservadorismo radical, de fundo religioso e pendor bélico: versão feminina de George W. Bush, que inventou a existência de armas químicas no Iraque para justificar uma guerra que destruiu esse país e matou centenas de milhares de inocentes. Nada dizem sobre a atual política israelense, que inviabiliza qualquer perspectiva de paz, pois estimula a demolição de casas e a usurpação de terras palestinas, além de manter a mais longa ocupação militar da história moderna, sem contar as afirmações de ódio racista, como a do influente rabino Ovadia Yosef, que declarou: "o povo palestino deveria desaparecer do mundo" (O Estado de S. Paulo, 30/8/10, A11). Tal declaração é tão sinistra quanto à do atual presidente do Irã, que afirmou querer varrer Israel do mapa.Mas a imensa maioria dos analistas norte-americanos (e já nem falo da falaz Fox News e congêneres) só foca suas análises tendenciosas e rasteiras na ameaça dos partidos políticos muçulmanos, como se estes fossem incapazes de participar de uma democracia. Como disse o escritor tunisiano Habib Selmi ao jornal El País (11/02/2011-Portal UOL): "O que aconteceu na Tunísia e no Egito, e pode ser que aconteça muito em breve na Argélia, prova que os árabes, ao contrário de tudo o que se diz no Ocidente com uma certeza tingida de arrogância, sentem um profundo apego pela liberdade e a democracia". WWW.miltonhatoum.com.br

A Praça Tahrir, no coração do Cairo, já é o símbolo de um povo que derrubou um regime corrupto e autoritário: uma ditadura que combinava repressão doméstica com submissão à política dos Estados Unidos e seus aliados, que durante 30 anos deram apoio político, financeiro e militar a Mubarak.

Esses governantes e vários analistas internacionais têm uma visão preconceituosa, superior e hipócrita em relação às sociedades árabe e islâmica. Preconceituosa porque subestimaram os anseios democráticos e a capacidade de mobilização dos povos egípcio e tunisiano. Superior porque a visão desses dirigentes e analistas reduz uma parte do mundo à situação de região tutelada e inferior, protegendo regimes autoritários que atendam a seus interesses geopolíticos e econômicos. E hipócrita porque dissimularam ignorar as inúmeras revoltas árabes desde a época do colonialismo britânico e francês no Oriente Médio e no Norte da África. Essas revoltas se prolongaram mesmo depois da independência no século passado, quando vários desses países tornaram-se novos protetorados ou "aliados", alguns dos EUA, outros da ex-União Soviética.

O Egito é o farol cultural do mundo árabe. Apesar da enorme desigualdade social e da repressão durante a era Mubarak, as classes média e operária egípcias reúnem centenas de milhares de pessoas politizadas ou razoavelmente informadas. Além disso, a produção acadêmica das universidades do Cairo e de Alexandria, a obra de romancistas, poetas, críticos, músicos e cineastas, os jornais e revistas (mesmo censurados) não são nem de longe desprezíveis. No ensaio Depois de Mahfuz, Edward Said ressaltou que o escritor egípcio e prêmio Nobel de literatura "pôde contar com a integridade vital e a densidade cultural do Egito. Apesar de sua longuíssima história, da variedade de seus componentes e das influências que sofreu - faraônica, árabe, muçulmana, helenística, europeia, cristã, judaica, etc. -, o Egito possui uma estabilidade e uma identidade que não desapareceram nos tempos atuais" (in: Reflexões sobre o Exílio, ed. Companhia das Letras). Said sublinha que o Egito, "devido a seu tamanho e poder, sempre foi um locus de ideias e movimentos árabes".

Vários comentadores de política internacional, em vez de analisarem o significado histórico de uma insurreição popular, preferem insistir no risco de o Egito tornar-se um Estado teocrático. Mas eles sabem que a Irmandade Muçulmana não mantém vínculos políticos e religiosos com o Irã, muito menos com o Paquistão e a Arábia Saudita, dois aliados (nada democráticos) dos Estados Unidos. Vários candidatos dessa Irmandade que conquistaram um mandato no parlamento egípcio foram proibidos de tomar posse, algo que, no passado recente, ocorreu com políticos muçulmanos em eleições na Argélia e em Gaza.

No levante popular contra Mubarak, os partidários da Irmandade Muçulmana somaram-se a centenas de milhares de egípcios laicos, coptas e católicos, de diferentes matizes ideológicos. É incompreensível, senão hipócrita e desonesto, que essas vozes quase histéricas contra partidos muçulmanos não critiquem a extrema-direita europeia e norte-americana, em que há figuras sinistras como o francês Le Pen (para quem as câmaras de gás do nazismo eram apenas "detalhes"), ou o partido austríaco e abertamente racista do finado Heider, ou Sarah Palin (a musa do Tea Party), com seu conservadorismo radical, de fundo religioso e pendor bélico: versão feminina de George W. Bush, que inventou a existência de armas químicas no Iraque para justificar uma guerra que destruiu esse país e matou centenas de milhares de inocentes. Nada dizem sobre a atual política israelense, que inviabiliza qualquer perspectiva de paz, pois estimula a demolição de casas e a usurpação de terras palestinas, além de manter a mais longa ocupação militar da história moderna, sem contar as afirmações de ódio racista, como a do influente rabino Ovadia Yosef, que declarou: "o povo palestino deveria desaparecer do mundo" (O Estado de S. Paulo, 30/8/10, A11). Tal declaração é tão sinistra quanto à do atual presidente do Irã, que afirmou querer varrer Israel do mapa.

Mas a imensa maioria dos analistas norte-americanos (e já nem falo da falaz Fox News e congêneres) só foca suas análises tendenciosas e rasteiras na ameaça dos partidos políticos muçulmanos, como se estes fossem incapazes de participar de uma democracia. Como disse o escritor tunisiano Habib Selmi ao jornal El País (11/02/2011-Portal UOL): "O que aconteceu na Tunísia e no Egito, e pode ser que aconteça muito em breve na Argélia, prova que os árabes, ao contrário de tudo o que se diz no Ocidente com uma certeza tingida de arrogância, sentem um profundo apego pela liberdade e a democracia". 

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Fonte: O ESTADO DE S. PAULO - CADERNO 2 | Publicado em 18 de fevereiro de 2011