Independentes, mas ainda não livres - parte 5
Se a ambição e coerência do projeto de desenvolvimento da era Boumediene compensava e desculpava, aos olhos da maior parte dos argelinos, o autoritarismo do poder, juntando em volta de Boumediene um real orgulho nacional, seu desmoronamento e sua distância do mito igualitário mergulhou a Argélia em verdadeiras convulsões cujo fim não se vê ainda. Bernard Cubertafond, em L’Algérie Contemporaine, situa “na excessiva heterogeneidade da sociedade argelina [...] dividida sobre as questões essenciais dos valores e do modo de vida” o fundamento da crise argelina e Eric Hobsbown (1917-2012) em seu Age of Extremes é mais ilustrativo ainda quando diz que “Tanto por motivos políticos quanto porque o movimento revolucionário argelino tinha uma ampla base (especialmente entre o grande grupo de trabalhadores braçais emigrados para a França), houve um forte elemento islâmico presente na revolução argelina”.
Verifiquemos então por onde caminhou a Argélia, pós Boumediene.
Como aconteceu entre nós durante o regime militar (1964-1985), o coronel Chadli Bendjedid (1929-) foi indicado para a presidência da Argélia, em conclave militar, por ser o militar mais graduado disponível, por ser membro do Conselho da Revolução durante alguns meses, membro da FLN desde a sua fundação e por haver exercido diversas funções e responsabilidades durante a Guerra de Libertação Nacional argelina, de 1954 a 1962. Há quem acrescente que ele tinha como hobby reunir informações pessoais sobre os colegas, o que pouca dúvida deixa de que é verdade, pois desde o regime de Boumediene ele coordenava o conjunto de serviços de segurança.
As eleições que se seguiram à nomeação militar de Bendjedid para a presidência seguiram os passos comuns a todos os regimes totalitários: a oposição se abstém de votar e aqueles que votam o fazem por medo de represálias e o candidato é eleito pela quase totalidade dos que votaram.
Como também acontece em regimes militares totalitários, Bendjedid acumulou durante o seu mandato presidencial o cargo de Ministro da Defesa, para manter sob seu comando os assuntos militares, inclusive aqueles militares que o elegeram e também a presidência da FLN, transformada em partido único, para que os políticos em particular e os civis em geral também ficassem sob sua espada. Estava armado o circo que iria permitir que fosse eleito para a presidência por três vezes, acumulando um total de 13 anos no poder.
Bendjadid, logo ao tomar posse, em seu primeiro mandato presidencial, mandou soltar o primeiro presidente da república argelina, Ben Bella, que estava preso desde o golpe de estado comandado por Boumediene, em 1965. Se faltassem provas de que participava e se beneficiava dos favores do regime Ben Bella, Bendjedid ao mesmo tempo, autorizou a volta para a Argélia de companheiros antigos do regime Ben Bella e opositores históricos do regime de Boumediene, tais como Hocine Aït Ahmed e Bachir Boumaza (1927-2009), os dois membros fundadores da FLN e participantes do poder até contrariarem Boumediene.
Bendjedid reforçou sua posição presidencial trazendo para a política membros graduados do estado-maior do exército, entre os quais Larbi Belkheir (1938-2010); Khaled Nezzar (1937-), Mohamed Lamari (1939-) e Mohammed Touati (1937-) [El Mokh – “O Crânio”]. Eram todos amigos próximos dele, que ocuparam diversos cargos governamentais e acabariam participando do golpe militar que o derrubou e deu início à Guerra Civil. Todos continuaram influentes na era pós-Bendjedid. Como se vê, é difícil não tornar a História argelina um desfile de militares de alta patente, um derrubando o outro, numa passarela de linha do tempo onde o povo não é convidado.
O tempo vai passando e quem participou da Guerra de Libertação Nacional acaba cansado de esperar, como é o caso dos berberes e, em 20 de abril de 1980, irrompe a “Primavera Berbere” (em berbere Tafsut Imazighen) reclamando a oficialização da língua tamazight e o reconhecimento, além da língua, da identidade berbere na Argélia. Foi o primeiro movimento popular de oposição às autoridades desde a independência, em 1962. Os manifestantes foram reprimidos com selvageria e, nestes primeiros movimentos somaram-se 126 mortos e 5.000 feridos. Os berberôfonos representam, na Argélia, cerca de 25% da população, mas desde a independência, o francês foi substituído (a muito custo, confirme-se à margem) pelo árabe, com a arabização maciça da administração e do ensino. É de se perguntar onde estavam os militares e políticos berberes que não atenderam à reivindicação dos seus!
Bendjedid declararia em discurso à nação que a Argélia era um país ”árabe, muçulmano e argelino” e que “a democracia não significava anarquia”, isto antes de mandar atacar o campus da Universidade de Tizi Ouzou. Colocou os berberes contra eles.
Indiferentes à luta dos berberes e dos demais argelinos, Bendjedid e o presidente da França, François Mitterand (1916-1966), longe dos ideais de esquerda, se beijaram no Aeroporto, no início da visita oficial do presidente francês, e blababaram propondo que as relações franco-argelinas fossem “um símbolo das novas relações entre o norte e o sul”. Três meses depois, assinam um acordo sobre o preço do gás que a Argélia fornece à França; a verdadeira razão da visita de Mitterrand a Bendjedid. Pouco tempo depois, Bendjedid efetuou a primeira visita de um chefe de estado argelino à França, após a independência. Os argelinos continuaram atrás do “pão nosso de cada dia” enquanto os franceses consumiam gás a preço abaixo das cotações mundiais.
Foi o mesmo com outros governantes árabes que se reelegeram inúmeras vezes, enquanto apoiados pelas cúpulas das forças armadas e pelo partido único e Bendjedid não seria exceção e, em 12 de janeiro de 1984, foi reeleito para a presidência da Argélia e, ato contínuo, para agradar aos islâmicos retrógrados que vinham angariando apoios sem cessar, fez com que a Assembleia aprovasse o Código do Estatuto Pessoal e o Código da Família. Este se mostrou particularmente reacionário. Foi um furo n’água, pois como se verificaria depois, os islâmicos continuaram seu caminho e as mulheres argelinas, sujeitas à iniquidade e à injustiça (o que de certa forma perdura ainda até agora), não aceitaram as condições do Código que as reduzia ao estatuto de menoridade, durante toda a vida, e passaram todas à oposição ao regime. Bendjedid não agradou ninguém.
Fiel a si mesmo, a rebelião de operários e estudantes, principalmente as manifestações em Setif e Constantine, Bendjedid mandou reprimi-las com selvageria.
Daí em diante a insurreição tomou conta também de Argel e se estendeu por todo o país, sempre reprimidas com dureza insana. De 4 a 10 de outubro de 1988 os jovens, desempregados e estudantes desesperançados, ocuparam as ruas da capital e atacaram símbolos e propriedades do Estado. Bendjedid decretou o estado de sítio e o número de jovens mortos ultrapassou os 600, sem contar o número muito maior daqueles que foram presos nos comissariados de polícia e centros secretos de detenção dos serviços de informação, onde foram torturados impiedosamente.
Aos que reivindicavam trabalho, moradia e disponibilidade de produtos de primeira necessidade, Bendjedid respondeu, na tentativa de peitá-los, anunciando o pluralismo político. Foi neste contexto que a Frente Islâmica da Salvação (FIS), fundada nesta época, pareceu encarnar o descontentamento popular contra o partido único. Foi sobre tudo isto que a FIS construiu a sua campanha política eleitoral encaixando a Sharia Islâmica como base, em face de um povo desorientado que lhe garantiria vitórias significativas no futuro.
Bendjedid prometeu reformas políticas e econômicas, sentindo ser esta a única forma de ser reeleito, mais uma vez, para a presidência, o que aconteceu nas eleições diretas que ele ganhou, em dezembro de 1988.
A era das reformas começou com a adoção, por referendo de 23 de fevereiro de 1989, de uma nova Constituição garantindo a liberdade de associação e de formações políticas. Os dirigentes argelinos deram a Bendjedid um voto de confiança e voltaram do exílio. Entre eles estavam Ahmed Ben Bella e Hocine Aït Ahmed. Vários partidos foram oficialmente criados, entre os quais a FIS, dirigida por Abassi Madani (1931-) e Ali Belhadj (1956-).
Vale a pena recordar que Madani entrou para a FLN em sua juventude e que ele participou no primeiro dia da Guerra da Independência da Argélia, em 1º de novembro de 1954 e, 17 dias depois, foi preso pelas autoridades francesas, por plantar uma bomba em uma emissora de rádio de Argel, ficando preso até a Independência, em 1962. Doutorou-se em psicologia educacional em Londres e passou a lecionar na Universidade de Argel onde angariou a admiração dos jovens estudantes. Passou a ser um crítico da orientação socialista da FLN e a considerar que as Cartas de Trípoli e de Argel e outras, seguidas por Boumediene e Bendjedid, traíram a essência islâmica que deveria ser seguida. Advogou a introdução da Sharia Islâmica (a Lei Islâmica) e considera Muhammad ibn Abd al-Wahhab (1703-1792) o teólogo do salafismo wahhabita que domina o movimento religioso da atual Arábia Saudita o “vanguardeiro da reforma de orientação islâmica do mundo” com algumas atenuantes (não imposição do uso de véu e não proibição de que as mulheres possam dirigir automóveis). Por ser considerado o representante da ala moderada da FIS acabou entrando em choque com Belhadj e se retirou do partido que ajudou a fundar. Suspeita-se que tenha ido morar no Qatar.
Já Belhadj representa, dentro do FIS, a ala kharijita (do árabe: aqueles que saíram; assim considerados por divergirem e acharem que sunitas e xiitas deixaram o caminho certo da salvação e merecem a morte). Ele é contra o trabalho das mulheres. É também contra a democracia, por ser invenção ocidental. É também considerado membro de relevo da al-Qaida, no Maghrib muçulmano.
Bendjedid estava querendo agradar a todos para garantir a sua posição. Ousou mexer num verdadeiro vespeiro ao enfraquecer os aparelhos repressivos do Estado, começando por reduzir o poder do Departamento Geral de Segurança do Estado (DGSN), que também interferia até então nos costumes, civismo e segurança pública. Interferiu também na Segurança Militar e seu papel de polícia política e de segurança nacional, dividindo-a em três departamentos menores. É óbvio que desagradou aos militares.
Enquanto isto permitiu a liberdade de opinião e inúmeros periódicos apareceram como se por milagre. No plano econômico-social realizou obras de infraestruturas (estradas, barragens, habitações), mas por outro lado acabou, em 12 de junho de 1990, com a reforma agrária. Foi quando simplesmente fechou dois dos seis projetos de zonas industriais e favoreceu as importações em detrimento do desenvolvimento local. A queda dos preços do petróleo agravaria ainda mais a situação. Desagradou assim a todos os argelinos, inclusive por serem mudanças essenciais na política de Boumediene, além de serem prejudiciais aos interesses da população; um verdadeiro desastre seja lá sob que ótica se olhe para o panorama socioeconômico argelino.
Em matéria de relações exteriores desagradou igualmente ao se afastar dos não alinhados e procurar se aliar às grandes potências. Foi o primeiro presidente argelino a oficialmente visitar os Estados Unidos.
Nas eleições municipais e regionais de 1990, as primeiras livres desde a independência, não deu outra: a FIS ganhou-as com uma grande vitória, o que era de se esperar. O povo manifestou seu descontentamento com seu voto.
Em 23 de maio de 1991 a FIS convocou uma greve geral ilimitada que resultou em confrontos entre as forças governamentais e seus militantes que resultaram em dezenas de mortos. Os militares se aproveitaram para pedir a demissão do primeiro-ministro Mouloud Hamrouche (1943-) por vir tentando, há muito tempo, a redução do papel das forças armadas no governo do país; ele foi substituído por Sid Ahmed Ghozali (1937-), mais cordato com os militares. Era a reação dos militares intensificando sua demonstração de influencia.
De seu lado, a FIS também demonstraria a sua força, vencendo o primeiro turno das eleições legislativas de 26 de dezembro de 1991, com uma margem de 47% e os militares cancelaram o processo eleitoral. A reação veio com a FFS (Frente das Forças Socialistas) de Aït Ahmed apelando, em 2 de janeiro de 1992, para uma marcha histórica reivindicando a continuação das eleições.
Por suspeita de complacência com a FIS, um grupo de militares obrigou Bendjedid a pedir demissão e foi substituído por um Alto Comitê de Estado (HCE), dirigido pelo opositor histórico Mohamed Boudiaf (1919-1992) que se encontrava há muitos anos exilados no Marrocos.
O segundo turno das eleições foi anulado pelos militares e as violências continuaram resultando em uma contagem inicial de 70 mortos. Em fevereiro o HCE proclama estado de emergência e dissolve a FIS.
Boudiaf não permaneceria muito tempo à frente do HCE, sendo assassinado em Annaba em 29 de junho de 1992, com direito a transmissão direta pela televisão e, em 26 de agosto, um atentado a bomba no aeroporto de Argel, por membros da FIS, causou a morte de 8 pessoas e centenas de feridos. Boudiaf foi substituído por Ali Kafi (1928-).
Começa aqui o “decênio negro”.
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