Irã: o que está em jogo

Ter, 23/06/2009 - 21:00
Um levante em defesa do candidato presidencial Mir Hossein Moussavi e, sobretudo, contra a polícia e os Guardas Revolucionários (pasdaran) do regime teocrático produziu-se depois das eleições iranianas, em que Mahmoud Ahmadinejad foi oficialmente declarado vitorioso, com 67-68% dos votos. As marchas com milhares de pessoas foram seguidas de forte repressão promovida pela polícia ou por integrantes de uma milícia islâmica, a Basij, uma numerosa força paramilitar. Centenas de manifestantes foram presos, jornais foram censurados, comícios foram proibidos e universidades foram fechadas. Uma dúzia de manifestantes foi morta pelos Guardas Revolucionários, inclusive três estudantes na cidade universitária (a Universidade de Teerã é o centro da oposição antiteocrática). Por trás da denuncia de fraude e da defesa de Moussavi, manifestou-se a luta pelas liberdades democráticas e contra as reacionárias leis teocráticas. Mas o descontentamento popular também está sendo manipulado por um setor da burguesia, inclusive uma poderosa ala do regime teocrático, com o apoio dos Estados Unidos. Para um comentarista iraniano de esquerda, “os pobres estão com Ahmadinejad e as classes médias estão rachadas”. A discussão sobre a “fraude” é em boa parte ociosa, pois no Estado “islâmico” as instituições representativas, eleitas em escrutínio eleitoral, estão subordinadas a instâncias não-eleitas próprias à instituição religiosa, configurando um regime de natureza bonapartista-teocrática. Os candidatos a qualquer cargo, do presidente ao vereador, devem previamente ser aprovados pelo Conselho dos Guardiães (composto por doze pessoas), instância não-eleita. Ou seja, as próprias eleições têm uma base fraudulenta. Ex-comandante militar paquistanês, o general Mirza Aslam Beig disse que o serviço secreto paquistanês tinha provas irrefutáveis de que os Estados Unidos trabalharam para tentar alterar o resultado das eleições no Irã: 'Há provas de que a CIA gastou 400 milhões de dólares em território iraniano para fazer eclodir uma revolução 'pacífica', 'colorida', contra o governo dos aiatolás, imediatamente depois das eleições'. Os jovens, em especial os mais instruídos, são a vanguarda da mobilização contra Ahmadinejad. A população do Irã, que era de 34 milhões na época da “revolução islâmica”, pulou para 70 milhões; 65% dela têm menos de 25 anos de idade. Esses jovens formam a população mais instruída do país de todos os tempos, pois o índice de alfabetização nunca foi tão alto, tendo passado de 59% para 82%, nos últimos vinte anos. Mas 40% dos jovens estão desempregados. A hierarquia islâmica do Estado tinha apelado, em fevereiro, antes do pleito, para o fato de que “as eleições presidenciais de 2009 no Irã terão proporções épicas e manifestarão que a nação iraniana está decidida a ser senhora de seu próprio destino. O número muito alto de votos na eleição presidencial mais uma vez fará prova do verdadeiro conceito de democracia religiosa”. O comparecimento às urnas foi entre 82% e 84%, índice superior às eleições prévias. Houve também manifestações em defesa da vitória de Ahmadinejad. Com Moussavi, ex-primeiro-ministro da República Islâmica durante a guerra contra o Iraque (1981-1989), que sumiu politicamente durante duas décadas para reaparecer recentemente, está o aiatolá Ali Khatami, ex-presidente 'reformista' de direita e, também, um dos pilares do regime teocrático, Hodjatoleslam Hashemi Rafsanjani, que fez enorme fortuna a partir do poder e impulsionou, junto à elite de novos ricos, a “liberalização” econômica e a adaptação crescente às exigências dos Estados Unidos e da União Europeia, cujo presidente, além do francês Sarkozy e do líder sionista Ehud Barak, coincidem no forte apoio a Moussavi, ele próprio responsável pela violenta repressão contra a esquerda e a classe operária na década de 1980. A União Europeia excluiu de sua lista de organizações terroristas o grupo chamado 'People's Mujahedin of Iran' (MKO), armado para cometer atentados no Irã. O presidente norte-americano Obama não foi tão longe, o seu governo está dividido, devido à pressão da direita do Partido Democrata, dos “neocons” republicanos e do lobby sionista, para quem o levante iraniano, depois da recente vitória eleitoral da coalizão pró-imperialista no Líbano, seria uma oportunidade para uma mudança de regime “pró-ocidental” no Irã, condicionada militarmente, a oeste, por um Iraque ocupado, e ao leste por um Afeganistão igualmente ocupado. Não se deve esquecer que forças da coligação EUA – Israel – Turquia, num estado de preparação avançada, têm realizado desde o começo de 2005 diversos exercícios militares projetados contra o Irã, que se mantêm de pé. A política “neutra” de Obama levou em conta, segundo um observador, “o efeito que suas palavras teriam em Teerã. Uma palavra mal pensada, de um oficial do Departamento de Estado, produziria reações e manifestações gigantescas de união nacional no Irã contra qualquer intervenção”. Outro comentarista apontou que “para os Estados Unidos há pouca diferença entre o suposto vencedor, Ahmadinejad, e o suposto derrotado, Mir Hossein Moussavi, já que quem continuará dando as cartas será o aiatolá [Ali] Khamenei [“Líder Supremo”, que controla todos os poderes e é, por sua vez, eleito por uma “assembleia” dos 86 membros da hierarquia xiita] . A aposta de Obama é insistir na neutralidade agora para retomar a aproximação entre EUA e Irã depois, na tentativa de brecar a corrida do país pelo programa nuclear e de conter a ação de Teerã junto a grupos extremistas da região. A estratégia fracassa se houver escalada na violência interna, com aumento do número de mortos, feridos e presos. E pode mudar se a avaliação da inteligência na região sugerir que há chance real de mudança de regime - o que não é o caso até agora”. Ou seja, Obama apostaria, como na América Latina, na domesticação do regime “hostil”, ou na quebra do nacionalismo “por dentro”, aproveitando suas contradições. A suposta reedição da “revolução laranja” (como em Belgrado, Kiev ou Georgia, que deu lugar a regimes pró-EUA), por sua vez, está possibilitada pela política da ala “populista” do regime, em torno a Ahmadinejad, incapaz de derrotar a ameaça imperialista: defendendo com seus próprios meios reacionários (incluída a repressão contra as minorias curdas, azeris e árabes) a ordem capitalista “iraniana”, abriu as portas para a liquidação da resistência anti-imperialista no Oriente Médio, resistência acentuada depois da revolução iraniana de 1979. A respeito da questão nuclear, disse Afshin Rattansi, no Counterpunch, que “o programa nuclear satisfaz todos os grupos [do Irã], exceto uns poucos intelectuais que só falam de energia solar. (Ele) faz salivar os corruptos mais ricos, já antegozando a perspectiva de nadar em lucros ainda maiores da exportação de petróleo. As usinas nucleares fornecerão energia para uso local e doméstico; e sobrará petróleo a ser exportado para gerar dólares fora do Irã. Quanto ao restante da sociedade civil, a energia nuclear é motivo de orgulho nacional e abre caminho para criar algum tipo de arma nuclear que será útil quando Israel e suas ogivas atômicas afinal partirem das ameaças ao ataque”. A defesa do programa nuclear unificou todas as correntes do alto clero xiita, de linha “moderada” ou da “radical”, do ex-presidente Ali Rafsanjani ao líder máximo espiritual (pela hierarquia islâmica, mais importante que o presidente) Ali Khamenei. A atual frente “reformista” tem o apoio da burguesia urbana e comercial iraniana com um programa não de real democratização do Irã, mas para por fim à política econômica inflacionária, iniciar cortes nos gastos sociais e nos subsídios aos gêneros de primeira necessidade, e retomar o comércio internacional. A frente é apoiada por setores da hierarquia religiosa, incluídos alguns pasdaran, preocupados pela estabilidade do regime devido à sua política econômica e ao confronto com os Estados Unidos na questão nuclear. A esquerda iraniana repetiu, ampliados, os erros do passado, quando subordinou-se a Khomeini na revolução de 1979, subordinando-se à “frente popular” com a “burguesia democrática” no “Conselho da Resistência Iraniana”. Bill Keller, editor executivo do New York Times, o que não é pouco, disse que “os moderados (Moussavi) têm poucos meios para contestar [a sua] derrota”: “Os otimistas no Irã e no exterior precisam se perguntar se a alegre agitação que encheu as ruas nas últimas semanas representava uma nova força popular ou apenas uma oportunidade de extravasar tensões”, o que se parece bastante com um atestado de óbito estendido à “oposição”. Para o Financial Times: “As dimensões reais do apoio a Moussavi são impossíveis de avaliar, além de Ahmadinejad conservar popularidade - especialmente entre os radicais religiosos, os pobres e a população rural. Mas as divisões na sociedade que foram expostas nesta semana não irão desaparecer. Alguns comentaristas veem a eleição como golpe palaciano engendrado pela linha dura do regime, representada pelo establishment militar que apoia Ahmadinejad. É difícil avaliar se a crise vai desencadear um movimento de protesto mais amplo que possa abalar mais profundamente a estrutura de poder, ou se levará à consolidação total do poder nas mãos da linha dura. Moussavi... parece ter se deixado liderar pelas ruas, que vêm se mobilizando para protestos mesmo quando ele divulga um comunicado adiando uma manifestação. Parte da motivação dos protestos não é tanto apoio a ele quanto rejeição a Ahmadinejad” (grifo nosso). Afirmar, como o faz certa “esquerda” (chavista ou reciclada no apoio aos “líderes providenciais” depois do fim da URSS) que as mobilizações antiAhmadinejad são pura manipulação do imperialismo é ignorar o impressionante processo de acumulação de capital privado desenvolvido pelo regime teocrático em favor de setores entrincheirados na hierarquia religiosa ou nos Guardas Revolucionários. É o caso das grandes “fundações”, destinadas à caridade para os pobres ou para os feridos da guerra contra o Iraque, que “diversificaram suas atividades”, hoje situadas na indústria, no comércio, na agricultura, no turismo e até na aeronáutica, em associação com o capital externo. Afshin Rattansi lembra que “o Irã abriga o maior parque industrial de produção de veículos do Oriente Médio”, mas esquece que o faz com empreendimentos conjuntos com o capital francês (Renault e Peugeot-Citroën), e que este detém 51% do capital. Teerã e outras cidades conheceram sua “bolha imobiliária”, que fez nascer, segundo jornais iranianos, uma “nova burguesia imobiliária”. Os bancos “nacionais”, afetados pela crise mundial, aumentaram, em um ano (2007-2008), suas dívidas com o Banco Central em... 106%. Ao lado do enriquecimento de alguns “revolucionários”, os salários reais estão em queda livre, ao mesmo tempo em que aumenta a “prisão por dívidas” (que existe no Irã) com doze mil presos no último ano, em geral pessoas modestas ('só' 20 mil haviam sido detidos por dívidas desde 1979). A evasão fiscal dos empresários é geral. Com certeza, como afirma o mesmo autor, “os membros da pequena-burguesia e da elite iraniana, a classe dos Bazaari, não admitirão nenhum tipo de revolução nas políticas de impostos... A falange dos MBAs pró-Moussavi encorajará as loucuras de praxe da 'globalização' e enfrentará a oposição de vários poderosos Bazaaris que querem mercado fechado, nunca mercados abertos”, mas não por razões “anti-imperialistas”. Para o professor iraniano Ramine Motamed-Nejad, passou-se, na revolução, “do caritativo ao lucrativo”: “Contradizendo os ideais igualitários da revolução de 1979, as sanções impostas aos mais modestos são acompanhadas pela incapacidade, ou pela falta de vontade, do poder público para cobrar as dívidas (com o Estado) da maior parte dos grupos econômicos”. E somos informados também que “os sindicatos são cada vez mais ativos no trabalho de agitar as fábricas da República Islâmica”. Em síntese: o novo é o início de uma quebra da hierarquia islâmica, no poder desde 1979, e, sobretudo, o início de uma mobilização popular contra o caráter reacionário do regime. A repressão se valeu menos da “mobilização dos pobres”, e mais do uso de aparelhos paramilitares vinculados ao regime e à “nova burguesia”. Defender a repressão do regime teocrático contra os estudantes é criminoso, e duplamente criminoso quando feito em nome da “esquerda” ou da “luta contra os Estados Unidos” (mas não contra Obama, né?). A mobilização estudantil deverá encontrar canais independentes do setor tendencialmente pró-imperialista que pretende usá-la para seus próprios fins. E a agitação operária em defesa do salário e de suas condições de vida deverá encontrar um programa próprio, de independência de classe – que o próprio clima de luta criado pela mobilização citadina dos estudantes pode favorecer – para unir-se com a juventude que defende a revolução e rejeita sua burocracia capitalista. Por esta via, a revolução iraniana poderia recuperar, num plano superior, seu papel aglutinante da luta anti-imperialista em todo o Oriente Médio, superando clivagens religiosas e étnicas, e expressando seu autêntico conteúdo histórico: a revolução social.