10ª Mostra Mundo Árabe de Cinema ganha sessões em quatro cidades brasileiras
Quem afirma é Geraldo Adriano Godoy de Campos, diretor e curador da Mostra. Em entrevista ao ICArabe, ele fala ainda sobre as contribuições do evento para o público brasileiro nesses dez anos de existência, como desconstrução de estereótipos disseminados pelos diversos meios de comunicação a respeito do Mundo Árabe. E ressalta a importância das parcerias para o sucesso do festival.
Confira a entrevista:
ICArabe - Qual o balanço que você faz desses 10 anos de Mostra Mundo Árabe de Cinema?
Geraldo Adriano Godoy de Campos - Esse balanço é feito, em primeiro lugar, pelo próprio público. O balanço mais relevante da Mostra é feito pela sociedade na qual ela ocorre. De que maneiras os temas, os filmes, os debates gerados, são capazes de gerar ramificações provocadoras e um maior conhecimento sobre regiões do mundo com as quais não temos muito contato? De que maneiras estão contribuindo para a formação de um público cinematográfico? Quais os principais desafios a serem vencidos após esta primeira década de existência?
Estas questões são importantes. Podemos perceber nestes 10 anos da Mostra a sua consolidação como principal espaço voltado para o cinema árabe no Brasil e um dos principais na América Latina. É um processo também da consolidação de parcerias importantes que foram se firmando ao longo desses anos. Acredito que a Mostra trouxe para o público brasileiro uma possibilidade de contato com diversas expressões do cinema árabe, tanto de diretores consagrados, como Youssef Chahine, como também, e principalmente, com a produção contemporânea, os jovens diretores. Ela revelou para muitas pessoas a existência do cinema em países sobre os quais, aqui no Brasil, raramente temos notícias, e quando as temos, é por meio de imagens negativas que são veiculadas. Neste sentido, a Mostra traz uma grande contribuição do ponto de vista de uma ampliação de um conhecimento sensível sobre a alteridade.
Outra grande contribuição da mostra é revelar a riqueza e a diversidade que se ocultam sob o conceito de “Mundo Árabe”. Na verdade, o que a Mostra faz é colocar em questionamento uma suposta unidade que passe por cima das singularidades e diferenças de cada cultura. Ao invés de reforçar uma ideia de que o mundo árabe é algo homogêneo, caminhamos no sentido contrário. Os filmes apresentados desestabilizam certos referenciais que muitas pessoas têm como certos, como por exemplo, a dicotomia entre Oriente e Ocidente. Não é, portanto, pequena a ligação com as idéias de Edward Said, intelectual palestino, cujo pensamento foi fundamental na criação do ICArabe e da Mostra. Abrir essa ideia de Mundo Árabe significa mostrar que esse é um universo de imensa diversidade de manifestações, de várias culturas e de vários olhares. Neste percurso, a Mostra permite uma permanente interação entre componentes estéticos e políticos.
Políticos em vários sentidos. Primeiramente, em um sentido da aproximação com questões geopolíticas e econômicas do Mundo Árabe e do Oriente Médio. Mas é também política a constatação de que as questões que a Mostra reflete falam também sobre nós. Quando debatemos o tema dos refugiados, dos movimentos de indignação, a questão de gênero, a questão urbana, a crise das instituições, a produção musical de atores sociais periféricos, entre tantas outras questões, não estamos também falando de nós mesmos? Sentir no nosso próprio cotidiano a presença dos elementos culturais que os filmes apresentam é uma descoberta muito rica.
Não somente pela presença dos imigrantes, mas também por essa reinvenção constante do que significa ser árabe, não como algo fechado, como uma essência, mas como algo que está sendo permanentemente reinventado. Por isso, creio que se trata de uma comunidade em devir. O cinema ajuda a pensarmos a ideia de uma comunidade de migrantes dessa forma. Por outro lado, a Mostra tem sido um termômetro muito importante das manifestações, dos processos sociais e políticos que estão em curso no Mundo Árabe. Os filmes têm refletido um conjunto de transformações que ainda estão em curso, não de uma maneira que se propõe a dizer quais são as respostas para esses problemas, mas permitindo que o público que sai das sessões repense suas próprias abordagens em relação a essa região do mundo.
Mas meu balanço é parcial, pois eu só assumi a Direção e curadoria da Mostra em suas três últimas edições. Nas primeiras, eu participei como parte do público. Há uma equipe de pessoas que tem méritos enormes e que começou todo o trabalho de cavar e pavimentar um caminho que não é fácil. Destaco especialmente a Soraya Smaili, que foi a idealizadora da Mostra e que foi capaz de aglutinar parceiros muito importantes, inclusive pessoas de referencia internacional, como a curadora Rasha Salti. O papel e a importância da Soraya e das pessoas que começaram a Mostra e conduziram por tantos anos é inestimável.
ICArabe - Nesses 10 anos de Mostra, o mundo viu aumentar o preconceito contra árabes e muçulmanos. Aqui no Brasil, a Mostra contribuiu, por outro lado, para ampliar o debate sobre a cultura árabe, aumentar o público que aprecia o cinema árabe, expandir a programação para outros espaços culturais, não é isso?
Geraldo - A Mostra teve inicio em um contexto que, do ponto de vista geopolítico, era muito complicado, dois anos após a invasão do Iraque em 2003 e quatro anos após o 11 de Setembro, que foi catalisador de uma islamofobia e de um forte preconceito contra os árabes. Então, esse momento de balanço da primeira década de existência da Mostra, é extremamente oportuno para que também possamos estabelecer uma ponte entre a evolução da geopolítica na região e a produção estética cujas narrativas incidem neste contexto.
Para pensarmos esta questão do preconceito e dos estereótipos, acho importante chamar a atenção para três pontos, que estão interligados.
Em primeiro lugar, escapar da lógica defensiva, reativa. Em alguns momentos, parece que estamos tentando somente reagir aos estereótipos em relação aos povos árabes. É importante desconstruirmos, mas não somente pela negação, pela reação, mas também pela afirmação. Se olharmos o repertório de filmes que exibimos nos últimos dez anos, é fácil identificar que estamos falando de países e culturas que produzem uma cinematografia muito respeitável, além de outras expressões artísticas com muita circulação global. Por isso, é importante olharmos com cuidado para essas produções. A própria arte fala por si. Ela é capaz de afirmar valores, narrativas, estéticas. Já não é mais somente uma questão de falarmos “Ah, os árabes não são assim...”, mas de revelar a riqueza que está sendo produzida no campo cultural e que fala por si só, que afirma algo.
O segundo ponto é a questão temporal. Está ligado à ideia preconceituosa (e orientalista) de que a riqueza cultural nessa parte do mundo é algo de um passado distante, que ficou oculto nas areias do tempo. Muitos ainda têm essa percepção porque só têm contato com o que chega pelos grandes meios de comunicação internacional sobre o mundo árabe: guerras, massacres, violência de gênero, fundamentalismo. E assim, formam uma imagem que cristaliza tudo aquilo que resiste a estes traços como se pertencesse a um passado inalcançável. É necessário, antes de qualquer coisa, de fato olharmos para este passado, evitando, é claro, as idealizações mais rasas. Perceberemos que podemos extrair vários aprendizados, inclusive no campo da coexistência entre diferentes povos e religiões, da sofisticação nas formas de sociabilidade, da ciência, da filosofia, na poesia, na música.
O que conhecemos sobre a filosofia do mundo árabe aqui no Brasil? Quase nada, perto de sua importância. Então, é fundamental romper esta concepção temporal que cristaliza as contribuições dos povos árabes para a humanidade somente em um passado remoto. Há uma arte contemporânea poderosíssima, com novas formas de produção e circulação. Também um pensamento crítico muito afiado sendo produzido por intelectuais. Ambos se combinam na produção de narrativas que estão tematizando todo este intenso período das últimas duas décadas, refletindo, problematizando. Temos que estar atentos para esta contribuição artística contemporânea, que nos é muito útil, inclusive para pensarmos as questões que estamos enfrentando aqui no Brasil.
O terceiro ponto relacionado ao tema dos preconceitos é um dos esforços centrais da curadoria: deslocar essa produção cinematográfica riquíssima do incômodo enquadramento do “exótico”. O Outro folclorizado, que não é visto como sujeito. A exotização da arte e do pensamento é muito empobrecedora. Aqui, mais uma vez, lembramos de Edward Said. É possível entender o impulso inicial de curiosidade que leva uma pessoa a ver um filme do Yemen, pela total ausência de informações sobre o Yemen que ela possui. Mas essa curiosidade pode ser elaborada de várias formas, como por exemplo, por um desejo genuíno de se deixar ser afetado pelo Outro, em um sentido antropológico. De buscar um espaço de comunicação entre experiências culturais muito distintas.
Quando a chave de aproximação se dá pelo exótico, o máximo que conseguimos atingir é a constatação da enorme distância que nos separa do Outro. E com isso não avançamos muito do ponto de vista do potencial da arte. A busca pelo exótico nos conduz, no máximo, à postura da tolerância, que é muito acanhada perante os desafios que vivemos referentes à necessidade de coexistência. O Outro exotizado sempre vai confirmar as impressões e os conceitos prévios que eu tinha sobre ele. Os pré-conceitos.
Por isso, eu disse, os três pontos estão entrelaçados: a postura defensiva, o congelamento temporal e a exotização. É sempre um objetivo da Mostra avançar no sentido de desmontar este tripé e, por isso, ela é um acontecimento político em um sentido mais profundo, de colocar a questão da coexistência, da produção de um espaço comum.
ICArabe - Como as parcerias nacionais têm contribuído para o sucesso da Mostra?
Geraldo - As parcerias nacionais têm contribuídomuito. Estamos expandindo cada vez mais. Do ponto de vista dos desafios, creio que em 2015 estamos dando um passo importante ao extrapolarmos o circuito Rio-São Paulo. Estaremos em cinco cidades simultaneamente, incluindo todas as capitais da região sudeste. Temos dois objetivos centrais: descentralizar o circuito de exibições, não somente no plano nacional, mas também na própria cidade de São Paulo, ir para outros bairros, para outras regiões; e gerar uma interação cada vez mais forte com o espaço público, com a cidade, gerar espaços de trânsito entre temáticas comuns (o que já começamos fazendo quando tornamos a sessão “Diálogos Árabe-Latinos” uma janela permanente da Mostra).
Este ano teremos a maior Mostra dos últimos dez anos. A décima edição é maior não só do ponto de vista da sua dimensão, da quantidade de filmes, mas também da quantidade de exibições, da quantidade de espaços exibidores, da quantidade de cidades e, portanto, da quantidade de pessoas que serão atingidas por isso.
Um das contribuições centrais que uma Mostra de Cinema, seja ela qual for, pode ter é mostrar a complexidade em várias situações e que muitas vezes são colocadas como se só tivessem dois lados. Romper também as dualidades, essas polarizações que muitas vezes são apresentadas. Os filmes mostram que na verdade são vários pontos de vista que estão em jogo, várias perspectivas.
No momento em que vivemos, o fato de conseguirmos mostrar que existem sempre mais do que dois lados nas situações, me parece que já é bastante coisa. Sempre há expectativas quando começa a Mostra que são geradas pela visão hegemônica sobre o que é o mundo árabe. As próprias perguntas de muitos jornalistas geralmente refletem essas expectativas de que os filmes falem sobre a situação das mulheres, sobre os conflitos, sobre a questão religiosa... Como se estes temas fossem inerentemente atrelados aos países árabes. Como se o cardápio de temas não incluíssem muitos outros assuntos.
O recorte da curadoria nesta 10ª edição está fortemente vinculado ao diálogo entre o cinema e outras expressões estéticas e artísticas. Temos filmes que vão tratar sobre poesia, música, teatro, literatura, artes plásticas. Claro que existem questões transversais. É muito difícil imaginar que um cineasta vai ignorar um processo revolucionário que o seu país atravessou há poucos anos. Mas esta relação não é direta no que diz respeito à linguagem. Esses fenômenos podem gerar filmes muito distintos, com propostas estéticas muito diferentes, tratando de aspectos humanos, que muitas vezes ficam secundarizados perante grandes acontecimentos políticos.
Os filmes, ao longo desses dez anos, passaram por um conjunto muito variado de olhares e acabamos universalizando certas questões que às vezes são tratadas como questões próprias do Mundo Árabe e na verdade não é assim.
ICArabe - Relembrando os 10 anos da Mostra, gostaria de mencionar alguns momentos marcantes?
Geraldo - Posso lembrar um momento que me marcou pessoalmente com muita intensidade: a abertura da Mostra de 2013, no CineSesc, com o “Cinco Câmeras Quebradas”, com a presença do Emad Burnat, diretor do documentário palestino e seu filho Gibreel. Essa foi uma sessão muito emocionante.
No ano passado, tínhamos uma sessão dupla no CCBB seguida de debate, com dois filmes tratando do tema dos campos de refugiados. Na sequência faríamos uma discussão com o João Amorim, da Cátedra Sérgio Vieira de Melo, da Unifesp, que é voltada para o trabalho com os refugiados. Quando o João chegou no CCBB, ele percebeu que a pessoa que o atendeu na porta possuía um sotaque e ele, ao perguntar a origem, descobriu que se tratava de um refugiado haitiano, que estava no Brasil e queria muito começar um curso universitário. O João teve a sensibilidade de convidá-lo a compor a mesa conosco e foi uma sessão incrível! Ou seja, é disso que estamos falando: os temas não estão distantes. Não são realidades distantes que os filmes apresentam. As questões estão ao nosso redor, é só estarmos atentos.
ICArabe - Qual o significado da Mostra para diretores brasileiros e descendentes que trabalham com a temática?
Geraldo - A Sessão “Diálogos Árabe-Latinos” tem um papel importante neste sentido. É um espaço permanente da Mostra voltado para a produção de diretores brasileiros, latino-americanos, ibéricos, que estejam realizando filmes sobre o mundo árabe ou filmando por lá. Não há necessidade de ser uma co-produção. O inverso também vale. Ou seja, diretores árabes que estejam realizando alguma obra sobre América Latina, por exemplo. Este ano teremos uma versão egípcia de Jorge Amado, “Morte e Morte de Quincas Berro D’Água”, teremos um filme português sobre as revoluções no mundo árabe e um filme brasileiro sobre a mesma temática. Em 2013, fizemos a pré-estréia nacional do filme “A última Estação”, que é uma co-produção entre Brasil e Líbano, dirigida por Marcio Curi.
Pretendemos não somente exibir os filmes dos diretores brasileiros (que não precisam ser de origem árabe, mas tratar da temática ou filmar nos países árabes), nossa ideia é cada vez mais abrir um espaço que favoreça as interlocuções. Já fizemos isso. Por exemplo, hoje em dia já colocamos em contato com alguns parceiros internacionais, diretores que nos procuraram e que estavam buscando co-produções ou financiamento para os seus filmes. Nós fazemos essa ponte de colocá-los em contato com outros, apresentamos a outros parceiros nossos, diretores de fora que queiram filmar no Brasil. Há uma produção crescente com essas características.
Ficamos muito felizes também que as pessoas já nos mandam espontaneamente os filmes, quer dizer, a mostra já é reconhecida lá fora e as pessoas hoje já submetem seus filmes para nossa curadoria. Destaco também nossa parceria com o Festival LatinoArabe de Cinema, o LAIFF, organizado pelo CineFertil, em Buenos Aires. Compartilhamos visões sobre a relevância e potencial dessas interações entre nosso continente e o mundo árabe. São amigos com os quais estamos desenhando projetos nessa direção.
ICArabe - Que novidades você pode adiantar para esta 10ª edição?
Geraldo - Teremos uma homenagem a um filme muito importante do cinema brasileiro que é o “Lavoura Arcaica”, no ano em que o Raduan Nassar completa 80 anos [autor do romance de 1975] e que o livro completa 40. Vamos ter dois filmes do Luiz Fernando Carvalho, o “Lavoura Arcaica” e “Que teus olhos sejam atendidos” em sessões especiais e uma delas com a presença do Milton Hatoum, no dia 14 de agosto. Teremos a presença do ex-ministro Paulo Sérgio Pinheiro, que é Relator do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) para discutir a questão da Síria. Teremos uma palestra do professor Miguel Chaia, grande estudioso da obra de Shakespeare, sobre “A dimensão trágica na Arte e na Política”, um tema essencial para pensarmos alguns retrocessos que estamos enfrentando globalmente.
Este ano teremos shows também. A mostra está agora produzindo esses diálogos árabe-latinos também em outras expressões estéticas. No ano passado, tivemos uma primeira experiência de um show latino-árabe com um músico da Tunísia e dois músicos brasileiros, mesclando músicas árabes e brasileiras. Foi um show produzido especialmente para a Mostra e esse ano eles virão com novo repertório. Vamos levar, pela primeira vez, para Belo Horizonte e Espírito Santo. Isso também é uma grande alegria, podermos dialogar, criar novas interlocuções com outros públicos, com outras questões que surgem. Abrir e entender a mostra como algo que é da sociedade brasileira. Essa sempre foi a característica do ICArabe. Teremos também Alaa Karkouti, um dos principais jornalistas da área de cinema do Mundo Árabe e Brahim El Mazned, um dos grandes diretores de festivais de música no Mundo Árabe e na África, que discutirá o Pan-Arabismo e Pan-Africanismo nas artes. Este ano teremos uns cinco filmes que tratam da música, de maneiras muito diferentes.
A mostra terá uma grande festa de abertura, com três bandas, no dia 15, e uma festa de fechamento. Nesta 10ª edição, teremos sessões de curtas-metragens. Como sempre, é muito importante também o debate sobre a questão palestina, mostrar quais são os olhares, como que a questão palestina vem aparecendo no cinema. Esse é um elemento que é parte da identidade da mostra também sob a inspiração do Edward Said. No fundo, a mostra é muito alinhada, para resumir, com tudo aquilo que o professor Aziz Nacib Ab’Saber [outra inspiração para a criação do ICArabe] sempre dizia da importância de trabalharmos nesse termo da cultura como forma de aproximação entre povos, ainda mais em um momento em que vemos o crescimento de várias formas de intolerância e agressividade.
Nas próximas semanas, o ICArabe publicará mais entrevistas e detalhes da programação da 10ª Mostra Mundo Árabe de Cinema.
Leia também Edward Said e Aziz Ab’Saber, nossas inspirações: http://www.icarabe.org/noticias/edward-said-e-aziz-absaber-nossas-inspiracoes
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