Em sua décima edição, Mostra Mundo Árabe de Cinema consagra-se como evento internacional
Esta edição será a coroação da internacionalização da Mostra - iniciada em 2010 -, desse diálogo que a cada ano ganha mais destaque e importância, de acordo com sua idealizadora, Soraya Smaili, uma das fundadoras do ICArabe. O significado do evento hoje, com todas as mudanças que ocorreram no mundo na última década, é um pouco diferente daquele de 2005, ano da primeira Mostra Mundo Árabe de Cinema, embora, segundo ela, aquele também tenha sido um momento difícil.
A mostra, conta Soraya, começou trazendo o objetivo de dialogar com a sociedade brasileira e mostrar uma parte considerável da cultura árabe para esse público. “Não só a cultura árabe do passado, mas a cultura árabe do presente, que é muito viva. Mostrar as questões sociais, sociológicas, antropológicas porque cultura é isso. Cultura não é uma coisa estática. É algo muito dinâmico.”
O objetivo, afirma, foi plenamente atingido “e num segundo momento de maturidade, após uma construção paulatina, atingiu um grau de internacionalização e de referência como mostra de cultura árabe”.
Neste cenário, o diálogo promove a cada ano a quebra de preconceitos formados sobre a cultura árabe. “Existe toda uma atmosfera de contracultura árabe no sentido de obscurecer o que é, o que ela representa para o ocidente, de distorcer a imagem, distorcer as informações e nós precisamos continuar trabalhando para desmistificar, diluir, desfazer os estereótipos”, afirma. “Neste sentido, embora o contexto seja um tanto diferente, dos atores políticos e dos aspectos que estavam norteando a formação dos estereótipos, a necessidade de continuarmos é premente, muito viva”, completa.
Soraya salienta a importância do cinema, por meio do qual, segundo ela, é possível produzir além do dialogo, da aproximação, do reconhecimento do outro. “Isso é o que Edward Said (intelectual que inspirou a fundação do ICArabe) sempre preconizou. Nesses termos, a obra de Said continua extremamente viva. Nós começamos dez anos atrás com a obra dele e ele continua norteando os nossos caminhos para desfazermos os estereótipos e a construção orientalista do mundo árabe que o ocidente criou e que precisamos ainda trabalhar muito para desfazer.”
Da pequena mostra à internacionalização
Segundo Soraya, em 2004, ainda no inicio da fundação do Instituto da Cultura Árabe, seus membros começaram a discutir e a investigar quais seriam as atividades culturais que deveriam ser realizadas e que eram pouco acessíveis em território brasileiro.
Descobriram que tudo que estava sendo desenvolvido em termos de arte e cultura no mundo árabe não tinha vazão ou expressão no Brasil. “Verificamos que, entre outras coisas, por exemplo, a poesia não era conhecida e a literatura, pouco, mas não muito conhecida”, lembra. “Nós tínhamos artistas, artes plásticas, artes visuais praticamente desconhecidas do publico brasileiro. E na parte de cinema, uma arte no campo visual, verificamos que havia uma produção enorme, intensa no mundo árabe, muito rica e muito criativa e que tinha pouca penetração no Brasil”.
Em junho de 2005, poucos meses depois da criação do ICArabe, foi realizada uma primeira e pequena mostra, com três filmes inéditos e três outros já até conhecidos do público, mas que tinham passado no cinema um tanto despercebidos. Um deles foi o “O destino”, de 1997, do diretor egípcio, já falecido, Youssef Chahine.
O filme de abertura escolhido para inaugurar o evento, realizado no Centro Cultural São Paulo (CCSP), conta Soraya, foi “Selves and Other”, o último filme de Edward Said, inédito no Brasil, no qual o estudioso fala de sua obra, do orientalismo, de sua vida como um intelectual palestino que viveu nos Estados Unidos e que produziu uma obra que tem um impacto importante na cultura ocidental e nessa visão que o ocidente tem em relação ao oriente e ao mundo árabe. “Esse filme teve um impacto muito grande”, lembra ela. Edward Said tinha falecido havia cerca de um ano na ocasião.
Emir Sader, membro do ICArabe, muito próximo de Said, e Carlos Calil, então secretário de Cultura de São Paulo, foram os convidados para abrirem a mostra de 2005 e debaterem o filme de Said. Nascia a Mostra que, apesar de pequena e de ter uma curta duração, teve grande impacto no meio cultural e repercussão na mídia. “Ela virou uma espécie de referência e vários outros órgãos, instituições tanto de São Paulo como de fora, começaram a procurar o Instituto para que nos fizéssemos mais atividades de cinema”, conta Soraya. “E isso trouxe para nós uma dimensão que não tínhamos. Não tínhamos essa clareza de que o cinema atendia tanto ao gosto do público brasileiro”.
Soraya ressalta que o Instituto da Cultura Árabe não foi feito para os descendentes de árabe, mas para dialogar com a cultura da sociedade brasileira. A mostra, pontua, foi um excelente caminho para que isso acontecesse. “Verificamos que por meio dela passamos a dialogar muito mais proximamente com a sociedade e com a cultura brasileira, mostrar suas semelhanças com o mundo árabe, os dramas, os conflitos, as questões de pertencimento, as visões que um tem outro. Isso abriu uma nova perspectiva muito boa. É por isso, no meu modo de ver, que a mostra cresceu tanto. Ano após ano estamos dando passos. E procuramos dar sempre o passo do tamanho que podíamos dar”.
Entre 2007 e 2010, paralelamente ao evento, o ICArabe realizou a Mostra Imagens do Oriente, que também faz parte do contexto da Mostra Mundo Árabe de Cinema.
Em 2010, segundo Soraya, a Mostra atingiu um patamar bastante interessante do ponto de vista da internacionalização. Em 2011, veio o passo decisivo neste sentido: a curadoria externa. Uma dessas curadoras foi a diretora tunisiana Dora Bouchoucha, uma referência no cinema internacional árabe. “Ela, junto com a Nágila Guimarães, deu um espectro internacional para a Mostra, levando-a para outros festivais, como o de Canes, o de Dubai, o de Abu Dhabi”.
Em 2011, o evento também contou com a curadoria internacional, com outros nomes convidados. Em 2012 foi a vez de Rasha Salti, curadora mundialmente renomada, produtora do Festival de Toronto, uma grande marca do cinema.
Em 2013, iniciou-se uma parceria com o Cine Fértil, que promove o LAIFF - Festival Latino Americano de Cine Árabe, na Argentina. “A partir de então começamos a trabalhar com todos os organismos internacionais. O Geraldo Adriano Godoy de Campos [diretor cultural do ICArabe e diretor da Mostra] faz essa ligação muito bem feita com os parceiros internacionais, com instituições do Egito, Líbano, Síria, Emirados. Hoje somos convidados por todos eles para participar de júri, de parcerias. Realmente a Mostra se tornou internacional. Este é um ano para comemorarmos muitas coisas”, ressalta Soraya.
Por todas essas conquistas, esta edição será especialmente significativa para o ICArabe e para o cinema árabe no Brasil, “Tenho muito orgulho de ter participado desta história e ter ajudado a construí-la. Hoje vejo que era um embrião que se tornou um adolescente e já é quase um adulto que está bem formado, que tem muita força e que vai continuar independente da minha atuação direta. Mas sou uma apoiadora incondicional de todos os aspectos da Mostra e pretendo continuar porque acho que é um patrimônio que não podemos deixar de apoiar.”
Nas próximas semanas, o ICArabe publicará mais entrevistas e detalhes da programação da 10ª Mostra Mundo Árabe de Cinema.
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