Cátedra Edward Said é inaugurada em São Paulo
Na abertura da cerimônia foi exibido o filme "O conhecimento é o começo", (Knowledge is the beginning), de Paul Smaczny (assista a um trecho aqui). O longa metragem retrata o encontro entre o maestro Daniel Barenboim, nascido em Israel, e o intelectual Edward Said, que culminou na criação da Orquestra Divã Ocidente-Oriente. O evento contou ainda com apresentação de música árabe com o músico Claudio Kairouz, mestre do quanoun.
O legado de Edward Said
Mundialmente reconhecida, a orquestra, que nasceu em um workshop, é composta por 100 músicos entre espanhóis, israelenses, palestinos e outros árabes. “O trabalho realizado há 15 anos é árduo, mas a luta não pode parar”, diz Mariam. “Eles tocam juntos. Aprenderam a conversar sem gritar um com o outro.”
Mariam ressaltou que a orquestra é um projeto humanista de educação musical e que politizar a missão é algo complicado. A mídia também interpretou de outra forma. “Acredito que a criação da orquestra foi um jeito do Said aplicar suas teorias no mundo real. Foi uma trajetória difícil e oscilante e que continua desafiadora. Vamos nos apoiar nos ombros dele [Said]. olhar além, olhar longe como ele fazia. Esse é o legado dele. Isso é o que se faz aqui hoje em sua honra”.
Em 2015, será fundada a Academia Barenboim – Said de Educação Superior em Música na Alemanha. “Isso vai abrir portas para a educação musical”. Mas este é apenas um dos trabalhos da Fundação presidida por ela. Há outros, como o projeto em Hamallah, o Jardim de Infância Musical – Edward Said, em parceria com a Organização Medical Relief.
Ao discorrer sobre as iniciativas, Mariam lamentou que exista tanta insensibilidade ao que acontece na Palestina. “É difícil, mas tudo que temos que fazer é continuar persistindo. À medida que falamos, o fogo se ergue de Gaza. Na Palestina, a esperança é um artigo raro. A orquestra é um deles, uma indicação, o último ponto de resistência está na orquestra”, ressaltou.
Durante a cerimônia, a convidada de honra falou também sobre as obras de Said e leu trechos de textos escritos por seus alunos sobre ele, ressaltando seu importante papel na resistência cultural árabe, na busca por justiça e na autodeterminação dos palestinos, bem como em outros movimentos libertários pelo mundo. “Espero que o novo centro torne mais visíveis estudiosos na área. Said acreditava no poder da universidade como uma ilha de livre expressão e crítica. Espero que o Centro respire novo oxigênio da vida cultural, intelectual que Said abraçava”. O estudioso, segundo Mariam, era admirador do trabalho do educador brasileiro Paulo Freire.
A Cátedra e os 10 anos do ICArabe
A Cátedra, afirmou, surge num momento crucial. “Said via o mundo além. Espero que este Centro se desenvolva e se posicione nesse quadro. O Brasil está numa posição ideal para discutir o assunto, como em outros lugares da América, onde surgem tendências de um pensamento crítico.
Para Soraya Smaili, reitora da Unifesp, a obra de Said representa e sintetiza a trajetória de muitas pessoas. O intuito com a instalação da Cátedra, segundo ela, é dar mais amplitude ao trabalho do pensador no Brasil. “A Cátedra vai não só sintetizar, mas dar continuidade e aprofundar, possibilitando que mais pessoas possam ter acesso aos seus estudos e usar toda a capacidade e todos os estudos desenvolvidos por ele para que novos conhecimentos sejam produzidos e que possam produzir benefícios, inclusive em prol da sociedade brasileira.”
Além da intelectualidade de Edward Said, enfatizou Soraya, há outros aspectos fundamentais necessários para a compreensão do sentimento de humanidade que ele produz. “O trabalho dele é um exemplo emblemático do despertar, não só dele, com relação à trajetória que iria ter depois, mas o despertar que muitos de nós, muitas vezes, temos frente a diferentes situações com as quais nos deparamos em nossas vidas.”
O outro sentimento, conforme ela, independe do fato de sermos brasileiros, árabes, palestinos, israelenses, judeus, muçulmanos. O sentimento do fora de lugar. (...) Todos nós já fomos migrantes de alguma forma. O sentimento de estarmos fora de um contexto, de não pertencimento, e que muitas vezes nos toca de diferentes maneiras. Ele soube muito bem escrever, falar, representar isso, o que é muito importante no momento atual, no contexto de toda a sociedade, não só nacional, mas de toda a humanidade.”
Em relação ao ICArabe, inspirado no trabalho do intelectual, Soraya destacou as ações do Instituto nestes 10 anos de existência. “Levamos à sociedade um pouco do trabalho de Edward Said. Fizemos muitas discussões, muitos cursos, muitos debates, uma belíssima Mostra de Cinema Árabe. Tivemos a participação de tantos queridos colegas e continuamos esse trabalho de divulgação de desfazer os estereótipos, que é tão a obra de Edward Said, o legado que ele nos deixa.”
A criação da Cátedra de Estudos Pós-Coloniais, pontuou, não é apenas uma homenagem a Edward Said. “A maior homenagem que podemos prestar a ele é continuarmos esses estudos e fazermos com que ele se reproduza. Hoje, criamos a Cátedra de Estudos Pós-Coloniais que, pelo que sabemos, é inédita no Brasil. Que tenhamos de fato nessa Cátedra o inicio de uma longa trajetória que vai produzir muitos frutos não só para a Unifesp, mas para toda a sociedade.”
Francisco Miraglia, membro da diretoria do ICArabe, também lembrou da importância do trabalho de Edward Said e da criação do Instituto. “A finalidade do instituto é a construção de um instrumento para estabelecer um embate que registre de modo unitário e laico a diversidade, a complexidade, a sofisticação e a extensão da maravilhosa cultura árabe, ontem e hoje, para que se construa também o recurso importante para subtrair legitimidade à sua desqualificação metódica”, disse.
“Em paralelo e no mesmo movimento estaríamos fazendo perante a opinião pública brasileira, através da divulgação em qualificação da cultura árabe, a luta política e o desmantelamento de um dos fundamentos da opressão a que estão submetidos esses povos. E nesse processo entender também a pressão à qual o povo brasileiro está submetido. A cultura é um instrumento de compreensão. Tanto de nós mesmos quanto do outro”, destacou Miraglia.
Miraglia enfatizou que Edward Said foi “um critico ferrenho, um artesão de primeira qualidade do ponto de vista do trabalho intelectual critico e construtivo da nossa emancipação, ou seja, da classificação das nossas experiências sociais e históricas”. A instalação da Cátedra, em suas palavras “é um passo importante do ponto de vista político, histórico e estratégico.”
O presidente do ICArabe, Salem Nasser, ressaltou que o lançamento da Cátedra sinaliza a grandeza de Edward Said. “Quando ela recebe esse nome de Edward Said e Cátedra dá um pouco a ideia da magnitude dele como intelectual e do peso que teve o seu pensamento sobre as ciências sociais como um todo e em intelectuais no mundo inteiro. Ele colocou realmente o dedo em algumas feridas fundamentais, muito para além da questão palestina.”
Além disso, acrescentou Salem Nasser, Said revelou dinâmicas basilares da relação entre discurso, representação narrativa e dominação. “Então que isso se faça aqui, que a Cátedra receba o seu nome. É extremamente importante porque dá esta dimensão do seu pensamento, mas também revela uma emergência, aqui mesmo no Brasil, de um debate extremamente importante que ainda vai ocupar muitos anos”.
Para Geraldo Adriano Godoy de Campos, curador da Mostra de Cinema do ICArabe e diretor cultural do Instituto, o ato de lançamento da Cátedra, além da importância que tem para a Universidade e para a sociedade brasileira, é também parte da história da Instituição. “É muito simbólico, forte, principalmente por ele ter acontecido na presença da Mariam Said. Edward Said foi e continua sendo o ponto de inspiração para a existência do ICArabe. A maneira de ele conceber o debate sobre a cultura e as relações de poder sobre a construção do outro como objeto, sobre a questão dos estereótipos. Isso tudo inspirou desde o começo a existência do Instituto.”
É muito oportuna, disse ele, a existência de uma Cátedra de Estudos Pós-Coloniais, principalmente pelas pretensões e pelo espaço que o Brasil vem ocupando hoje no cenário internacional e pela importância do nome que vai carregar. “Mais oportuno ainda é que essa Cátedra seja referenciada num nome como do Edward Said. Isso já dá um caráter também de qual é a concepção de Pós-Colonialismo que está inspirando essa Cátedra. Por isso que o Instituto hoje não teria melhor forma de marcar e comemorar os 10 anos de existência do que essa atividade, essa parceria com a Universidade Federal de São Paulo para o lançamento dessa Cátedra.”
A vinda de Mariam a cerimônia, segundo Geraldo, foi ainda mais representativa devido aos acontecimentos em Gaza. “Ter a Mariam Said aqui e conseguirmos recuperar o legado, as ideias do Edward Said é o momento que precisamos de uma coisa que ilumine, no sentido de conseguirmos respostas para o que é uma verdadeira catástrofe do ponto de vista humanitário. Edward Said tinha essa marca muito forte do humanismo no pensamento dele.”
A presença da Mariam Said, afirmou, também tem outro símbolo: o de “recuperar um pouco do humanismo comprometido politicamente, de um intelectual militante que nunca se calou, quando uma boa parte da intelectualidade brasileira está se calando frente ao que está acontecendo em Gaza. Essa é outra ideia que ficou forte hoje. Tem momentos na vida, perante certas situações, em que não podemos silenciar”.