"Cultura árabe ainda é vista de forma bastante preconceituosa"
Icarabe: Quais os problemas que uma editora como a Boitempo sofre hoje em dia para sobreviver financeiramente? Ivana Jinkings: O público consumidor de livros no Brasil ainda é pequeno. A produção de um livro é mais cara para uma pequena editora - que paga mais caro pelos insumos, na maior parte das vezes paga melhor o trabalho de tradutores, etc. -, para a qual o custo unitário do livro é maior, e também porque suas tiragens são menores. Mas essa editora precisa colocar no seu “produto” um preço de mercado, compatível com o preço de um best-seller. Na distribuição, da pequena editora são também exigidos descontos maiores porque ela tem menor poder de barganha. Ou seja, não há uma regulamentação minimamente decente, nem do “mercado”, como seria mesmo de se esperar, mas tampouco do poder público, que reproduz nas compras oficiais as mesmas distorções praticadas pelo mundo do dinheiro. Há ainda o problema da força que algumas poucas grandes redes de livrarias têm no mercado, que se volta apenas para lançamentos comerciais da indústria de entretenimento, como Harry Potter e Código da Vinci, ou de auto-ajuda. Essas redes de livraria não têm o cuidado e a atenção necessária com o livro, e esquecem seu papel de agentes de conhecimento. Elas vendem espaço em vitrine como se fossem gôndolas de supermercado. Essa mesma lógica neoliberal de concentração de mercado influencia os espaços na imprensa. Como somos uma editora que tem uma relação grande com o público universitário, a crise da universidade pública, o baixo valor das bolsas de pós-graduação, os salários dos docentes e o baixo estímulo à pesquisa, ainda mais a pesquisa crítica, também acabam afetando editoras como a Boitempo. De um modo mais amplo, a falta de valor dado ao conhecimento, à cultura no Brasil afetam muito quem lida com a propagação do saber. Icarabe: Analisando o mercado hoje, o que tem vendido mais, que tipo de livro é uma aposta segura para as grandes editoras e como isso influencia na atuação de vocês, que não priorizam ou não se guiam prioritariamente pelo lucro, pela aposta no dinheiro? Jinkings: As apostas seguras para as grandes editoras são os best-sellers importados, como os já citados, Harry Potter e o Códiga da Vinci, que em geral vêm em um pacote do tipo “compre o livro, veja o filme, compre o álbum de figurinhas”, além dos de auto-ajuda. Isso não nos influencia. Nosso caminho e nosso público se pautam por conteúdo, e não o mercado. Icarabe: Qual o público leitor da Boitempo? Jinkings: Embora prioritariamente seja um público ligado à universidade e à militância política, é mais amplo e diverso que isso, inclusive porque nosso catálogo também inclui literatura, crítica literária, teatro, artes plásticas, música. Eu diria que nosso público é basicamente de formação universitária, mas não necessariamente é formado por acadêmicos. Icarabe: Sempre se fala que a TV passa o que o público quer ver, a rádio fala que transmite o que o público quer escutar. As editoras funcionam dessa maneira? Você acredita que existe uma outra forma de enxergar e lidar com o público? Jinkings: Isso é uma lenda que a indústria cultural gosta de difundir. Indústria cultural que no fundo é operada como um cartel, por grandes empresas privadas que controlam o mercado e impõem os grandes “fenômenos”, que são muito mais fenômenos de marketing que realmente culturais. São acordados e decididos entre elas mesmas. As grandes empresas do mercado editorial, muitas delas braços de grupos maiores, funcionam sobre esta mesma lógica. Mais que acreditar que existe outra forma de enxergar e se relacionar com o público, nós a praticamos diariamente. Editamos obras que acreditamos terem valor e nos relacionamos com o público-leitor com bastante respeito. Icarabe: Vocês prioritariamente editam livros de teoria social e política, de reflexão social, críticos, de esquerda. Você acredita que ocupam um setor de mercado, se é que podemos dizer assim, que não interessa a mais ninguém? E dentro desse contexto, e fazendo uma relação com a pergunta anterior, o público de vocês estaria muito limitado? Jinkings: Outras casas publicadoras atuam neste setor, além da Boitempo. As editoras universitárias são um exemplo. O público infelizmente ainda é limitado, mas entre os que mais compram e lêem livros – professores universitários e alunos de pós-graduação – minha impressão é de que a cada ano ocorre uma demanda e um reconhecimento maior pela publicação de qualidade, e por autores considerados “difíceis”, por serem muito densos, ou cujas obras seriam “ultrapassadas”, como István Mészáros e o próprio Marx. Acredito que a Boitempo cumpre hoje papel de destaque na formação de uma consciência crítica e tomamos a divulgação do pensamento de esquerda como “tarefa” militante. Teremos tempos difíceis, ao que parece. Mas continuamos acreditando e apostando na possibilidade de mudar o mundo. Icarabe: Que solução você sugere para o problema acima? Educação? Jinkings: Educação, investimento em ensino em todos os níveis, inclusive superior, e ao lado disso, valorização da educação e do conhecimento. Também é necessário que a grande mídia não seja pautada pelos interesses do capital e da indústria do entretenimento, mas do interesse público, o que inclui o conhecimento e a cultura. E, claro, políticas públicas de formação de leitores. Icarabe: Vocês editaram alguns livros de Edward Said. Qual foi o interesse da editora na sua obra? E qual é a resposta do público brasileiro à sua obra? Jinkings: Como intelectual fundamental para a compreensão das relações entre centro e periferia no campo da cultura, e como um dos maiores, talvez o maior, exemplo de intelectual militante dos últimos tempos, sempre tive respeito e admiração pela obra de Edward Said. Foi uma satisfação e um orgulho publicar dois livros dele, “Cultura e Política” e “Freud e os não-europeus”. A resposta e o interesse pelos livros têm sido muito bons, inclusive porque muito do trabalho dele sobre os preconceitos e estereótipos culturais do “exótico”, que a cultura “ocidental”, européia e norte-americana aplicam aos outros povos, é bastante útil para entender a posição e a inserção da nossas próprias cultura e identidade no mundo. Útil para entender como nossas elites também lidam de forma preconceituosa com a cultura, a identidade e o povo brasileiro. Icarabe: Na sua opinião, como editora à frente da Boitempo há dez anos, como é retratado o mundo árabe ou a cultura em geral – seja ela religiosa ou não - que vem da região do Oriente Médio? Jinkings: De forma ainda bastante preconceituosa. Do Oriente, em termos culturais, o que desperta interesse é sempre o lado exótico, “diferente” sob o ponto de vista ocidental. Mas creio que a literatura do mundo árabe começa a conquistar um espaço interessante, e isso pode ser observado pela boa recepção que tiveram recentemente algumas traduções de clássicos. Icarabe: Ampliando um pouco a pergunta acima, sob o ponto de vista não só editorial, mas da imprensa, como o Brasil olha para outras culturas? Jinkings: Infelizmente, por conta da importação desmedida de produtos culturais (cinema, best-sellers, música), produzidos principalmente nos Estados Unidos, e uma falta de uma imprensa independente que olhe para o exterior com os nossos olhos, já que a grande imprensa compra o material jornalístico produzido por agências de notícias (AP, Reuters, France Press) dos países ricos, nós, neste processo, também importamos os preconceitos e a arrogância destes países em relação a outros povos e culturas. E isso tem um propósito, que é comprarmos as visões convenientes aos interesses, econômicos, políticos, estratégicos, destes países. Interesses que não são os nossos, tanto como brasileiros, como quanto pessoas interessadas em um outro tipo de sociedade, em uma solidariedade e autodeterminação dos povos, ao invés de violências imperialistas como a intervenção norte-americana no Iraque. Isso cria barreiras culturais entre os povos, inclusive com o próprio povo norte-americano, que é estimulado a desenvolver preconceitos e paranóias. É fundamental, para isso, investirmos em cultura e desenvolvermos nossas próprias iniciativas. A Boitempo está fazendo uma enciclopédia sobre a América Latina. É um exemplo de produção de um material amplo, próprio, onde temos a chance de criar, vindo da própria América Latina, uma obra de referência sobre a região. É através deste diálogo de culturas que se supera preconceitos e se constrói nossa identidade.