"Opressão à mulher árabe tem origens mais profundas e de classe"
A diretora acrescenta que é preciso considerar sempre que o mundo árabe é bastante diversificado, com realidades mais ou menos favoráveis à mulher nos diferentes países. Entretanto, mesmo nos países em que a mulher parece sofrer maior opressão, a condição para sua liberdade está bastante relacionada à classe social a que pertence. Mesmo na Arábia Saudita, considerada a pior ditadura do mundo árabe, as mulheres da realeza têm direito de viajar e estudar, enquanto as demais sofrem todo tipo de restrição de liberdade. “A opressão à mulher tem origens mais profundas e de classe”, resume ela.
Soraya Smaili, graduada pela Universidade de São Paulo, obteve Mestrado, Doutorado e Livre-Docência na Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo e fez estudos de pós-doutorado no National Institutes of Health. É vice-presidente da Adunifesp-SSind, diretora regional do ANDES-SN e diretora cultural e científica do Instituto da Cultura Árabe - ICArabe (www.icarabe.org).
Confira a entrevista na íntegra:
Qual o papel das mulheres nas recentes mobilizações por democracia que, desde o final de 2010, têm sacudido o mundo árabe?
Embora a mídia em geral não tenha destacado ou mesmo analisado, o papel da mulher árabe nos recentes levantes ocorridos, a sua presença e participação têm sido e são fundamentais. A visão que o Ocidente tem da mulher árabe é de uma pessoa submissa ao extremo, sem educação formal e sem profissão. Muitas vezes acredita-se que os árabes e, consequentemente, as mulheres árabes são atrasadas e ignorantes. Isso faz parte de um imaginário criado cuja base ideológica está no pensamento Orientalista. O Orientalismo, iniciado como corrente de pensamento no século XIX, se desenvolveu plenamente no século XX e tratou de apresentar os árabes como seres exóticos, diferentes, inflamados, temperamentais, ignorantes e atrasados.
Ou seja, seres que eram diferentes dos homens e mulheres do Ocidente, ditos civilizados. Este Ocidente tratou de mistificar e discriminar esse povo apresentando-o como um “não-povo”, o que deu sustentação à colonização e partilha do Mundo Árabe em 22 países com fronteiras artificiais e à exploração brutal de petróleo tão necessário ao Ocidente. Uma análise sobre esse contexto do século XX foi feita de maneira clara e aprofundada por Edward Said em seu livro Orientalismo.
A mulher, neste cenário, sofreu as consequências das políticas implantadas para o Mundo Árabe, e como parte do pensamento Orientalista, também foi apresentada como um ser inferior. Somada às questões femininas primordiais, o Orientalismo reforçou a opressão e criou profundos esteriótipos para a mulher árabe, tendo sido escandalosamente ridicularizada. No entanto, do ponto de vista histórico, a mulher árabe desempenhou papel fundamental na base da organização social e impediu que uma maior degeneração social ocorresse durante a implantação dos colonizadores.
As revoltas no Mundo Árabe de hoje devem ser vistas a partir de uma análise da ocupação e colonização (Ocidentação) e da partilha dos árabes como povo em vários países, da imposição de didatores aliados para o controle da região e da exploração brutal de Petróleo. Aos longo de algumas décadas, os ditadores do Mundo Árabe trataram de controlar com mão de ferro, opressão e pobreza, a organização social que existia, impedindo e massacrando a possibilidade de desenvolvimento. Portanto, o levante árabe que o mundo está assistindo neste momento é um movimento por direitos universais, pelo fim da opressão, pelo direito à manifestação, pelo direito ao trabalho e a dignidade. É um movimento popular e, neste contexto, o movimento de mulheres está presente, participa e se insere plenamente.
Com algumas diferenças regionais, as mulheres e os movimentos feministas locais têm tido participação fundamental nos levantes populares. No Egito e Tunísia, organizaram manifestações específicas, chamaram as mulheres às ruas, clamaram e se organizaram na luta pela democracia. Na Tunísia existem organizações importantes de mulheres que marcharam contra o ditador Bin Ali. Logo após a sua queda, elas se organizaram em comitês e reivindicam que o estabelecimento do estado democrático passa também pela conquista dos direitos das mulheres. Depois disso, estabeleceu-se lá um Comite especial para reivindicar os direitos das Mulheres Tunisianas na transição democrática.
No Egito, as mulheres marcharam, convocaram e organizaram grandes manifestações e entraram diretamente nos confrontos. As TVs do mundo exibiram imagens marcantes de mulheres de todos os tipos clamando por democracia e pelo fim da ditadura Mubarak, para espanto geral do Ocidente. Criaram o movimento chamado “As Mulheres da Praça Tahrir”, que reuniu centenas de ativistas, dentre estas, algumas feministas históricas, como Nawal Al Saadawi. Isso mostrou uma faceta do Mundo Árabe que estava obscurecida pela visão orientalista, ou seja, apresentou os movimentos seculares e boa parte deles compostos de mulheres intelectualizadas. E também vimos as mais jovens atuando na organização por meio da internet e utilizando ferramentas de comunicação chamadas modernas. Mais uma vez, desfazendo a idéia de que as mulheres não teriam acesso ou não saberiam utilizar tais recursos.
Porém, existe uma grande diversidade no Mundo Árabe e o papel das mulheres em alguns outros locais, como no Iemen, talvez não esteja tão evidente. Mas é preciso lembrar que em alguns locais, os regimes ditatoriais foram ou são muito mais opressores para a população em geral, como ocorre na Líbia, no Iemen e em outros locais. De maneira geral, as mulheres têm tido grande destaque e são protagonistas dos movimentos, manifestações e atuam fortemente pela democracia, mesmo que isso nem sempre seja noticiado ou que esteja aparente para a mídia internacional. Portanto, é errada a idéia de que as mulheres árabes não participam, são alienadas ou reprimidas. Elas têm a consciência dos seus direitos e lutam por eles, como as mulheres do mundo.
A questão de gênero está pautada nesta revolução em curso? De que forma?
Sim, certamente. Como explicado anteriormente, os levantes populares devem ser vistos pelo prisma de um movimento pós-colonial e contra a implantação artificial de opressores e ditadores que foram impostos para controlar as manifestações da população árabe em geral. Esse povo foi colonizado por algumas décadas e depois controlado com mão de ferro pelas décadas seguintes. É um povo sedento por liberdade e pelo exercício dos seus direitos e dignidade. Portanto, todas as questões que dizem respeito às liberdades e aos direitos universais estão pautadas. A questão da mulher, dos seus direitos inalienáveis, faz parte deste contexto.
A opressão da mulher é maior no mundo árabe? Por quê?
Essa é uma pergunta bastante interessante, mas não dá para responder com um “sim” ou um “não”. Na verdade, podemos dizer que sim e que não. O Mundo Árabe é bastante diverso, são 22 países que vão da Península Arábica e se estendem a todo o Norte da África. Há questões culturais regionais importantes e que precisam ser consideradas. Há locais em que a mulher não tem direito ao voto, não tem direito à manifestação e várias outras coisas. É o que acontece na Arábia Saudita. Mas, novamente é preciso considerar o contexto social e político.
Nesse país, os homens também têm liberdades muito restritas, se comparados aos outros homens do mundo. Não é possível a livre manifestação de qualquer tipo, pois se trata de uma ditadura absoluta. Ou seja, homens e mulheres são reprimidos, porém, como em outras situações históricas, em uma sociedade repressora, os mais profundamente afetados são as mulheres, crianças e idosos. Eles são alvos centrais, pois o regime é muito mais danoso aos que têm menos recursos físicos ou sociais. Ainda na Árabia Saudita, a liberdade também depende da classe social, pois mulheres e homens da família real têm acesso à educação e recursos ilimitados. Há mulheres da realeza que pilotam aviões, que estudam, que viajam. Portanto, a opressão à mulher tem origens mais profundas e de classe.
Por outro lado, há outros locais em que as mulheres têm acesso à educação, trabalho e liberdade de expressão, como no Líbano e na Palestina, e as questões femininas que vivem são semelhantes às que as mulheres ocidentais enfrentam. Porém, no mundo árabe, há outros valores que o Ocidente não leva em consideração, mas que são valores humanos, como a dignidade e o respeito à mulher. Por exemplo, existe uma impressão generalizada de que todas as mulheres árabes são muçulmanas e usam o lenço (hijab). Não é verdade que todos os árabes sejam muçulmanos e também não é verdade que todas as mulheres sejam obrigadas a usar lenço, nem mesmo as muçulmanas. Existe a idéia de que as muçulmanas são reprimidas e obrigadas a usar o hijab, quando na verdade, em boa parte dos casos trata-se de uma opção pessoal.
No Líbano, Síria e Egito, por exemplo, as mulheres não são obrigadas a cobrir os cabelos e muitas muçulmanas cobrem por opção, porque faz parte dos costumes e da cultura. Em vários locais, como no Líbano e Tunísia, uma boa parte das muçulmanas não quer e não são obrigadas a se cobrir. Por terem a opção de usar o lenço, as mulheres árabes se sentem respeitadas, pois é um direito. Ao contrário do que ocorre em alguns países do Ocidente civilizado, onde as muçulmanas foram impedidas do seu direito de utilizar o hijab, o que é extremamente autoritário.
Qual o papel da religião no processo de opressão da mulher?
Inicialmente, é preciso salientar novamente que nem todas as mulheres árabes são muçulmanas. No Egito, por exemplo, uma parte da população é cristã copta. No Líbano, há católicos de várias igrejas e também judeus. Além disso, é preciso fazer uma distinção entre os países onde o Estado é teocrático, como na Arábia Saudita e Iêmen. Neste caso, a religião é usada para a opressão, embora a religião muçulmana, em seus preceitos fundamentais, não prega a opressão ou retirada de direitos. Ao contrário, no momento da fundação do Islã, as mulheres eram fortemente oprimidas em uma sociedade tribal. O Islã, como filosofia, trouxe a regulamentação de direitos femininos, como o acesso à educação e participação na expansão da civilização islâmica do século VII ao XIII. Portanto, é preciso separar o Islã da religião islâmica.
A religião, como outras doutrinas, sofreu adaptações e regionalizações e foi implementada de acordo com os costumes locais, sendo utilizada como instrumento de controle ideológico. Além disso, em muitos lugares onde chegou, se deparou com costumes tribais (não só na Península Arábica, mas também no Norte da África e Oriente). Por isso, hoje, em vários países de maioria muçulmana, são perpetrados costumes tribais que não têm a menor fundamentação religiosa, como por exemplo, a mutilação de órgãos genitais que ocorre em regiões da África (muçulmana ou não). O Islã proibiu fortemente essa prática, mas ela tem sido divulgada como uma prática muçulmana, mas na verdade é uma prática tribal, exercida por comunidades não muçulmanas também. A maior parte das práticas opressivas à mulher e que ocorrem em países árabes se deve mais aos costumes regionais ou às distorções criadas por fundamentalistas religiosos, que existem em todas as religiões, do que propriamente por conceitos do Islã.
Os países árabes também têm a tradição de comemorar o Dia Internacional da Mulher?
Sim. Há movimentos muito fortes e sérios no mundo árabe e as mulheres estão organizadas e concatenadas com outros movimentos feministas do mundo inteiro. Há inúmeras organizações em diversos países e há uma corrente feminista que irmana as mulheres árabes entre elas (já que estão distribuídas em diferentes regiões) e com as mulheres de todo mundo. Neste sentido, as mulheres árabes estão muito mais avançadas e há muito participam da internacionalização dos movimentos sociais universais, que incluem o movimento feminista.
Fonte: Andes-SN