Especialistas do ICArabe abordam mundo árabe em evento na USP
O professor Salem Nasser ressaltou que é preciso ter cuidado na forma de enxergar os acontecimentos, para que não ocorra uma visão limitada de que a revolução resume-se à luta do povo contra o regime, o que é preocupante. “Ao reduzirmos isso a uma revolução de setores que são muito indefinidos contra um sistema imperialista, que, de modo genérico, é o capitalismo, não estamos representando as coisas como elas realmente acontecem. Enquanto se acha que o jogo é esse, tragédias estão acontecendo.”
Nasser questionou ainda as razões que levaram o governo dos Estados Unidos – que, segundo ele, durante as revoltas no mundo árabe, dava a impressão de só estar observando o que acontecia –, a montar um projeto de intervenção militar na Síria. “Qual é o segredo que faz com que apenas na Síria as coisas tenham tomado essa dimensão? A arma do imperialismo que o projeto americano alimenta é o sectarismo. É essa ideia de que é uma guerra entre sunitas e xiitas. O resultante desse processo é a fragmentação, o dividir para imperar. Como aconteceu no Iraque, se desenha para o Líbano e a consequência para a Palestina é a normalização da ocupação.”
Arbex criticou fortemente os Estados Unidos, cujos “drones já mataram 2 mil mulheres e crianças no Iêmen, Afeganistão e Paquistão”. Para ele, por essa e outras tantas contradições, o país é o menos indicado para levar a “civilização” à Síria. Em relação ao imperialismo, ele é taxativo. “Os povos do Oriente Médio estão lá há milhares de anos, as fronteiras, há 80, 90 anos.” Há, segundo ele, uma clara perspectiva de caracterizar e responsabilizar o fundamentalismo islâmico pelas tragédias no Oriente Médio, o que classifica como falsificações históricas. Além disso, analisa, a disputa pelo petróleo e outras fontes energéticas está levando o homem a uma catástrofe, e isso não se restringe só ao Oriente Médio. “Sou contra qualquer perspectiva que postule a cisão da humanidade em blocos, que divida e privilegie um determinado bloco como detentor do progresso e condene o outro como depositário da barbárie.”
Segundo Arbex, o discurso de potências mundiais que pregam a democracia e lançam a ideia de que podem levar a civilização ao resto do mundo não tem validade, é pautado em outros interesses. “Isso é uma mentira histórica, uma construção política e uma justificativa para ter o controle sobre uma área estritamente rica. Tem a ver com uma política determinada a saber quem vai controlar as riquezas mundiais.”
Primavera árabe
Em sua palestra no simpósio, José Farhat fez um balanço do movimento. Para ele, a realidade dos fatos, desde que o jovem tunisiano desempregado Muhammad Bouazizi ateou fogo no próprio corpo na cidade de Sidi Bouzidi, na Tunísia, o que se constituiu na semente da primavera árabe, tem um significado sem precedentes para a juventude árabe sedenta por conquistar o seu lugar na sociedade que lhe deu o ensino, mas lhe negou o trabalho e a liberdade de decidir o seu e o futuro de seu país. “O fardo de decênios de submissão a governantes colocados na liderança dos países árabes da África do Norte e do Oriente Médio por potências alienígenas cujos interesses são diametralmente opostos aos da juventude árabe, em particular, e do povo árabe como um todo, demorou, mas teve no ato desesperado de Bouazizi a centelha que levou o mundo árabe para seu futuro radiante.”
O momento dos levantes e a velocidade na qual se espalharam, analisa Farhat, podem ter ocorrido como uma surpresa, mas o fato há muito tempo era esperado. “Com governos através da região malogrando na tarefa de garantir empregos e oportunidades à crescente população de jovens, as condições para os levantes estavam disponíveis há vários anos.”
Ele ressaltou que o nível de frustração devido à não realização das expectativas é comum em muitos países da região, mas o foco dos protestos que continuam varia de país a país, deixando alguns regimes mais vulneráveis à mudança.
Nesse contexto, segundo o professor, a Tunísia, de onde partiu a centelha que incendiou os países da região, é um exemplo a ser seguido. A característica principal do movimento popular da primavera árabe na Tunísia, aponta, é que o povo está acompanhando tudo e não dá trégua ao governo atual e pressiona o governo da Annahda sempre que necessário. “O povo tunisiano finalmente deu um basta ao governo e, sob a liderança da União Geral Tunisiana do Trabalho (UGTT), uma organização que engloba o operariado, aquele que ainda mantém um trabalho e também os desempregados, os intelectuais e estudantes, as organizações femininas, o povo em geral levaram o governo a concordar em entrar em negociações, iniciadas no sábado, 5 de outubro de 2013, que durarão três semanas.”
Israel/Palestina: conflito sem fim?
Abordando esse tema, Soraya Misleh iniciou dizendo que é “otimista”. “Como dizia nosso poeta Mahmoud Darwish, que faleceu em 2008, nós, palestinos, sofremos de um mal incurável: a esperança.”
Ela destacou, contudo, que a solução passa por entender o passado e agir no presente para transformar o futuro. Nesse contexto, contou a história de seu pai, um palestino que foi expulso de sua terra, uma pequena aldeia de 2 mil habitantes, chamada Qaqun, em 1948, quando da criação do estado de Israel em 15 de maio daquele ano, em 78% do território da Palestina histórica. Soraya enfatizou: “Naquele momento, foram expulsos, segundo o historiador israelense Ilan Pappé, 800 mil palestinos de suas terras e destruídas cerca de 500 aldeias.”
Ela discorreu sobre a criação de Israel como um estado exclusivamente judeu em terras palestinas, o que seria a realização do projeto sionista. A Palestina seria o destino escolhido para a implementação desse estado no I Congresso Sionista da Basiléia, na Suíça, em 1897. Naquele momento, destacou, a maioria dos judeus no mundo não tinha a pretensão de imigrar para a Palestina, que viam como um lugar sagrado, não como sua futura nação. Para convencer os judeus a imigrarem para a Palestina e o mundo, os sionistas usaram uma série de representações e mitos, fundados em textos bíblicos. Países como os Estados Unidos, destino preferencial de muitos judeus que eram perseguidos na Europa central e do leste, com os pogroms, fecharam suas portas a esses imigrantes, contribuindo com o projeto sionista.
Conforme explicou Soraya, a ideia era que, para executá-lo, seria preciso aliar-se à potência hegemônica no momento. A Grã-Bretanha, que detinha o mandato sobre a Palestina como espólio, quando o Oriente Médio e Norte da África foram divididos entre os vencedores da Primeira Guerra Mundial, seria o parceiro estratégico.
Ela lembrou o historiador Nur Masalha, para quem o projeto sionista seria um projeto de transferência: de uma população que estava fora da Palestina para dentro e da que estava dentro para fora de suas terras. “Trata-se de um eufemismo para a limpeza étnica dos habitantes nativos da Palestina. Sua expulsão e exílio forçado até os dias de hoje, com a destruição total dessa sociedade e sua fragmentação, é resultado de um plano deliberado de limpeza étnica, como demonstrado pelos chamados novos historiadores israelenses”, afirmou.
Para embasar o plano, conforme apontou a palestrante, teriam sido feitos arquivos dos vilarejos, inclusive contando com a hospitalidade dos habitantes das aldeias. Os sionistas, assim, deteriam dados sobre quantos homens entre 16 e 50 anos havia em cada uma, mulheres, jovens, idosos, participantes da grande revolta de 1936 a 1939 contra o mandato britânico e a imigração com o objetivo colonial, árvores, fontes de água, casas, entre outros.
Como contou Soraya, o texto do plano descreve as operações, as brigadas que participariam em cada região e em que condições este seria posto em prática: “somente após a saída dos britânicos da Palestina e sem a presença de forças internacionais naquelas terras; em caso de resistência, a população deveria ser expulsa, as aldeias destruídas, as lideranças e apoiadores mortos ou presos.” Ela continuou: “Cita bombardeios nos centros das aldeias como forma de afugentar a população das aldeias.” Soraya destacou: “O termo ‘limpeza étnica’ se aplica a esse plano, conforme definição da ONU apresentada por ocasião da Guerra dos Balcãs (entre 1991 e 2001). Em suas memórias, os palestinos contam como se deu sua expulsão, convergindo com o que é apresentado no texto do Plano Dalet.”
Em sua fala, Soraya comentou ainda os acordos de Oslo, firmados entre o governo de Israel e o presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat, e seus efeitos 20 anos depois: a contabilidade é de “mais 7 mil palestinos mortos, mais 12 mil casas destruídas, mais 250 mil assentamentos israelenses construídos (entre 1993 e 2000, o número dobrou e hoje é de 600 mil); desvio de água para esses assentamentos por Israel; efeitos catastróficos à economia palestina diante do fechamento de fronteiras aos trabalhadores palestinos que seriam substituídos por novos imigrantes russos. Em 1993, segundo escreve a jornalista Naomi Klein, o PIB per capita nos territórios ocupados despencou quase 30%; em 1994, a pobreza entre os palestinos subiu 33%. Em 1996, 66% da força de trabalho palestina estava desempregada ou subempregada. Oslo representou menos trabalho, menos liberdade e menos terra”.
Ela não vê na retomada das negociações neste ano a solução. “Um dia depois do comunicado sobre a reabertura das negociações, paralisadas desde 2010, Israel anunciou a construção de mais de 1.200 assentamentos.” Sobre a promessa de libertação por parte de Israel de 104 presos políticos palestinos, que serão soltos escalonadamente (26 foram libertados em agosto, sendo 11 na Cisjordânia e 15 em Gaza), Soraya observou que a maioria já estava próxima de completar a pena e estaria em liberdade em breve. Além disso, segundo dados da Addameer – Prisioners Support and Human Rights Association, mais de 23 mil palestinos teriam sido soltos desde 1993 como “medidas de boa vontade” durante várias negociações e processos de paz. “Todavia, no mesmo período, pelo menos 86 mil palestinos foram presos, incluindo crianças, mulheres, pessoas com alguma deficiência e estudantes. Atualmente, mais de 5 mil encontram-se nos cárceres israelenses.” Diante disso, ela foi taxativa: “Essas medidas são uma farsa. Israel não quer a paz. A Autoridade Nacional Palestina (ANP), desacreditada, se converte em gerente da ocupação e muitos palestinos levantam cartazes dizendo que ela não os representa. O caminho é o reconhecimento histórico do que foi e continua sendo feito na Palestina.”
Soraya enfatizou: “Meu pai contava que, em sua terra, brincava com judeus, muçulmanos e cristãos, não havia rótulos. É possível resgatar isso com esse reconhecimento histórico. A solução para contemplar a totalidade dos palestinos, cuja maioria vive fora de suas terras, é um estado único palestino laico, democrático, com direitos iguais para todos e todas. Para tanto, a memória dos palestinos e palestinas é fundamental e vamos continuar a contar a história dos nossos pais. O primeiro-ministro de Israel em 1948, David Ben-Gurion, afirmou: ‘Os velhos morrerão, os jovens esquecerão!’ Ele estava errado.” A palestrante concluiu: “Vamos continuar porque, como dizia o intelectual palestino Edward Said, que homenageio aqui pelos dez anos de sua morte completados em 24 de setembro, ‘se qualquer um de nós for eliminado, dez outros devem vir em seu lugar. Essa é a marca genuína de nossa luta e nem a censura, nem a simples cumplicidade covarde hão de apagá-la.”