Artigo de Adam Quarshie publicado em 10 de julho de 2025 pela Crack Magazine e noticiado pela Aurora, newsletter da Editora Seiva, em 25 de julho de 2025. Fotos de Maen Hammad Tradução de Thaïs Costa, jornalista, revisora de obras literárias e teses acadêmicas.
Fruto do tédio durante o primeiro confinamento na pandemia de Covid-19, a emissora palestina online Radio alHara passou a simbolizar oposição e esperança em meio aos horrores inimagináveis do genocídio em Gaza, dando voz à resistência criativa na Palestina e no mundo inteiro.
Foi durante uma chamada de Zoom que os membros principais da Radio alHara se deram conta: eles jamais estiveram juntos no mesmo espaço físico ao mesmo tempo. “Acho que isso nunca aconteceu. Há sempre uma pessoa faltando”, observa Saeed Abu-Jaber, que dirige um estúdio de design gráfico em Amã, na Jordânia. Os outros – Yousef Anastas, Elias Anastas, Ibrahim Owais, Yazan Khalili e Moe Choucair – estão participando da chamada diretamente da Cisjordânia, de Beirute e da Holanda. Juntos, eles mantêm a emissora no ar 24 horas por dia. Embora seja casual, o comentário de Saeed denota algo profundo sobre a emissora de rádio online palestina – ostensivamente baseada em Belém (seu nome significa ‘vizinhança ou bairro’ em árabe), porém com um escopo ameaçadoramente internacional. Apesar da variedade de restrições inimagináveis, a alHara conseguiu criar um espaço para a comunidade, a criatividade e a resistência, transcendendo fronteiras em uma região pesadamente definida por elas.
No dia em que conversamos, eles pareciam relaxados e otimistas, e alguns estavam ocupados trabalhando. Saeed sai do Zoom para atender à outra ligação e volta fumando um cigarro, enquanto Ibrahim está fazendo o upload do mix mais recente. Eles estavam entusiasmados para conversar, mas preocupações constantes persistiam em segundo plano: Israel havia fechado seus postos de controle perto de Belém nesse dia e, menos de duas semanas antes, havia atacado o Irã – enquanto, a 80,5 quilômetros, dali a violência inominável do genocídio continua em Gaza.
Embora os membros do grupo estejam lutando com essas questões gravíssimas, as origens da Radio alHara são bem mais prosaicas. Lançada em março de 2020, a Radio alHara começou como um meio de ficar em contato com os amigos – e de espantar o tédio – durante o primeiro confinamento na pandemia de Covid. “Eu conheço o Ibrahim desde 2010. Nós costumávamos fazer festas em Amã, e eu adoro o bom gosto dele. Ibrahim era a prova de fogo para a festa. Se ele estivesse feliz, nada mais me importava”, diz Saeed, sobre os primeiros tempos de sua amizade. “Depois conhecemos Elias e Yousef através de um amigo em comum. Dez anos depois, continuamos amigos.”
Desde o início, o projeto visava derrubar fronteiras e ter amplitude em sua programação: entre seus membros centrais estão arquitetos, designers gráficos, artistas sonoros e produtores criativos, cuja junção de paixões e criatividade ajudou a moldar a abordagem eclética da emissora. No início, a intenção era ter “uma plataforma pública na qual as pessoas fariam o upload de conteúdo”, explica Yousef, que, junto com seu irmão Elias e o artista sonoro Ibrahim, fica direto no Wonder Cabinet – um centro artístico em Belém, ao sul de Jerusalém na Cisjordânia. “Tudo era programado na rádio sem qualquer seleção específica, cronograma ou coisas do gênero. A rádio só tocava como em um espaço público.”
Até hoje, a Radio alHara prescinde de qualquer forma de arquivo e resiste a playlists movidas por algoritmos. Dependendo da hora do dia, você pode sintonizar a rádio e ouvir gravações de música folk palestina, um set de ambient experimental ou música da África Ocidental da década de 1970. “A rádio não se resume a música”, continua Yousef, aludindo à ampla variedade de opções sonoras da emissora. “Há conversas, podcasts, programas de culinária”. Quando a Crack sintonizou a rádio em uma quarta-feira de manhã, estava tocando a canção Intazirne com o músico libanês de jazz e folk Issam Hajali, um exilado que fugiu da guerra civil no Líbano em 1975. A seguir, veio Space 1, uma composição relaxante da artista belga-caribenha de ambient jazz Nala Sinephro.
A filosofia experimental da Radio alHara emergiu, um tanto paradoxalmente, devido às limitações impostas pelo confinamento, que espelhavam as restrições existentes à liberdade de movimento criadas pela ocupação militar israelense da Cisjordânia. Yousef se lembra da primeira vez que ele e outros palestinos de sua geração vivenciaram os toques de recolher: durante a segunda intifada no início dos anos 2000. “Naquele momento, nós tínhamos toques de recolher absolutos, ninguém saía. Só dava para ir a cada três ou quatro dias para comprar mantimentos e fazer outras coisas estritamente necessárias. A pandemia de Covid foi um tipo similar de situação.”
Yazan Khalili, arquiteto e artista visual de Ramallah, Palestina, que hoje mora em Amsterdã (e é chamado carinhosamente de “Karl Marx” por Saeed, devido à sua impressionante barba grisalha), discorre sobre como essas restrições levaram o grupo a questionar as estruturas radiofônicas tradicionais. “Nós queríamos brincar com um meio aberto experimental”, diz ele. “[Introduzir] diversos tipos de formatos sonoros desvendou o sentido que uma rádio digital poderia ter.” Ele explica que a plataforma aproveita muitas coisas das redes sociais e da rádio convencional, criando um formato participativo e comunitário – especialmente por meio de sua comunidade ativa no chat room, que rompe a distinção entre produtores e audiências.
No início, a seleção musical também tendia a ser menos focada na cena clubber e mais direcionada aos momentos liminares característicos de grande parte do confinamento. Os ouvintes eram estimulados a enviar mixes pelo Dropbox. “Muitas pessoas enviavam sets bem pesados de club, mas na real todos estavam de pijamas”, ri Saeed. “Aí eu enviava um e-mail para alguém e dizia, ‘Que tal esquecer o que você tocaria num sábado à noite e pensar no que você tocaria em um domingo de manhã?’”
Para Elias, o confinamento pareceu uma “nova página em branco” e trouxe uma mudança de perspectiva que ajudaria a guiar o etos do projeto alHara: “Todos nós começamos a questionar tudo que fazemos criativamente, mas também nosso modo de viver, de gastar dinheiro e de interagir uns com os outros”, explica ele. “O que foi realmente rico no início foi que a emissora também tentou criar um espaço no qual nós pudéssemos falar sobre esses elementos da vida cotidiana.”
Então, em 2021, Israel intensificou sua ocupação – que já havia sufocado grande parte da vida palestina – anexando várias partes da Cisjordânia. Isso incluiu a expulsão à força de moradores de Sheikh Jarrah, um bairro em Jerusalém Oriental ocupado onde muitos palestinos viviam desde a década de 1950. Tribunais israelenses emitiram ordens de expulsão contra centenas de famílias palestinas, demolindo algumas casas, ao passo que as famílias que ficaram eram intimidadas e assediadas pelos colonos israelenses. Um movimento de protesto em solidariedade a Sheikh Jarrah se espalhou pela Palestina, mas autoridades israelenses reagiram com força muitas vezes letal.
Em reação, a Radio alHara interrompeu sua programação normal e só transmitiu estática durante 24 horas. Logo após, ela passou a transmitir muitos programas sob a égide da Sonic Liberation Front (Frente de Libertação Sonora), o primeiro dos quais foi com o artista Dirar Kalash e apresentou gravações em campo de protestos contra as expulsões. Muitas colaborações semelhantes se seguiram sob a égide da Sonic Liberation Front, dando um espaço para artistas de todo o mundo prestarem solidariedade à Palestina.
A essa altura, Saeed intervém: “Muitas pessoas nos diziam, ‘Vocês adotaram uma abordagem política”, diz ele em referência à tendência da mídia ocidental de menosprezar a produção cultural palestina. “Quem vive no Oriente Médio não decide se absorve ou não a política. É diferente de estar no Ocidente, onde é possível pensar ou não em política como um passatempo. Aqui você a respira todos os dias.” Elias concorda: “Toda decisão que tomamos para a alHara não se baseou em ideias e objetivos pré-estabelecidos ou pré-concebidos”, diz ele. “Naturalmente, fazia sentido reagir por meio dessa estrutura ao que estamos passando na Palestina.”
“Quem vive no Oriente Médio não decide se absorve ou não a política. Aqui você a respira todos os dias” – Saeed Abu-Jaber
“Ao fazer isso, nós descobrimos que não é o conteúdo que precisa ser politicamente direcionado”, acrescenta Yazan. “O ato político é a própria estrutura. É como a comunidade se reúne sob certos títulos, sob certos tipos de abordagem na transmissão – falar, anunciar sua repulsa [à injustiça] ou sua solidariedade à Palestina.”
Quatro anos após suas intervenções sonoras iniciais, a Radio alHara continua sendo uma plataforma na qual os palestinos – muitas vezes em colaboração com artistas do mundo inteiro – podem fazer experimentos sonoros livremente. No entanto, a violência e a volatilidade da ocupação continuam causando impacto. O coletivo continua disperso geograficamente, mas metade da equipe marca presença no Wonder Cabinet, onde há acesso a uma cabine de rádio e um espaço para artistas e produtores de diversas disciplinas experimentarem e colaborarem. Trata-se de um centro criativo vital, mas que não está imune à brutalidade triturante da ocupação.
“No Wonder Cabinet, nós temos diversas residências e convidamos artistas da Palestina e da região para virem e produzirem, tocarem sets”, diz Ibrahim. “Mas nem sempre é fácil tê-los aqui, por causa da situação. Por exemplo, agora, todos os postos de controle militares israelenses estão fechados e não podemos programar nada no Wonder Cabinet nem convidar artistas para virem e tocarem.”
De maneira semelhante, a chacina israelense em curso em Gaza afetou profundamente a equipe. “No início do genocídio, nós paramos a emissora de rádio por dez dias ou mais, tentando pensar e descobrir: o que fazemos agora?”, diz Yazan. Uma de suas primeiras medidas foi o Learning Palestine: Until Liberation, um mix contínuo de canções, poemas e conversas por 12 horas sobre a luta constante por justiça. Ele apresentou as vozes de escritores, ativistas e acadêmicos, incluindo Edward Said e Angela Davis.
Colaborações internacionais continuam tendo um papel vital no uso sonoro para chamar atenção sobre o que está acontecendo na Palestina. Um dos projetos recentes da Radio alHara é a residência do artista sonoro venezuelano Julio César Palacio no Wonder Cabinet. “Ele criou uma escultura sonora que tem alguns alto-falantes – como aqueles nos minaretes de mesquitas”, explica Elias. “Essa torre sonora que ele construiu nos jardins do Wonder Cabinet está transmitindo determinados programas que são ouvidos no domínio público e na rua.”
Isso é parte de um projeto com a Soundcamp, uma cooperativa de artes baseada no sul de Londres que transmite gravações em campo de lugares pelo mundo e mantém uma residência na Radio alHara. “Nós estamos trabalhando juntos na criação de um programa sonoro que se alinhe com a Sonic Liberation Front, para o qual as pessoas enviem conteúdo sonoro reverberando o que está acontecendo em Gaza”, diz Elias.
Yazan acrescenta que seu projeto só tem um papel ínfimo para jogar luz sobre a catástrofe em curso na região. “O que está acontecendo agora em Gaza e na região obviamente vai muito além do que nossa emissora de rádio consegue abarcar”, reconhece ele. Todavia, ele continua otimista sobre o potencial da rádio para abrir espaços para a solidariedade. “Com o acúmulo de pequenas iniciativas como a nossa, algumas mudanças positivas podem começar a acontecer em uma escala maior”. A Radio alHara pode ser pequena, mas seu impacto tem longo alcance. Popular, comunitária e desafiando fronteiras, ela continua sendo uma plataforma essencial para os palestinos fazerem experimentos, comunicarem sua própria realidade e criarem um diálogo permanente com ouvintes mundo afora que compartilhem o amor pela música e o som.
Sintonize já: radioalhara.net
* Crack Magazine (crack magazine. net) é uma revista mensal independente de música e cultura, com circulação mensal e distribuição por toda a Europa. Fundada em Bristol, no Reino Unido, em 2009, pelo designer gráfico Jake Applebee e pelo jornalista Thomas Frost, também está envolvida na curadoria do Simple Things Festival. Luísa Brailey é a editora da publicação.