“Fachadas da Espanha”, do poeta iraquiano Salah Niazi
Salah Niazi, é o último autor vivo dentre os grandes poetas iraquianos da geração dos anos 1950, que tiveram um importante papel no processo de modernização da poesia árabe contemporânea. O poema "Fachadas da Espanha" é fruto da vivência de um poeta e crítico da cultura, imerso no bilinguismo e no biculturalismo.
Salah Niazi, nascido em 1935 na cidade de al-Nasiriyya, é o último autor vivo dentre os grandes poetas iraquianos da geração dos anos 1950, que tiveram um importante papel no processo de modernização da poesia árabe contemporânea. Conhecido, por sua autodefinição, como um poeta de coração árabe e mente europeia, aliou em sua poesia o verso de expressão sensorial a uma prática poética culta, sem ser necessariamente formalista. Seu universo poético reflete ainda a angústia do poeta diante dos defeitos sociais e morais da sociedade, que em boa medida o leitor encontra nos excertos do poema que traduzo aqui.
Durante vinte anos atuou como editor da programação cultural do departamento árabe da rádio inglesa BBC, e durante vinte outros anos, até 2003, chefiou o periódico londrino quadrimestral Al’ightirab Al’abadi (A Eterna Aculturação), voltado a escritores árabes que vivem no exílio, como ele, que mora na Inglaterra desde 1963, onde chegou a doutorar-se em História da Poesia Árabe, pela Universidade de Londres.
Crítico da tradução literária, lecionou Arte da Tradução na Polytechnic of Central London e na Universidade de Edinburgo, durante vários anos. Como tradutor do inglês para o árabe, é conhecido por suas bem realizadas versões de peças de Shakespeare e Rattigan, além dos romances The Old Capital, do Nobel japonês Yasunari Kawabata, e Ulysses, do irlandês James Joyce – esta talvez sua principal incursão no âmbito da tradução comentada, em trabalho que revela conhecimento e aproveitamento seu da crítica joyceana precedente.
O poema “Fachadas da Espanha” é fruto da vivência de um poeta e crítico da cultura imerso no bilinguismo e no biculturalismo. Sua visão da Espanha e do seu passado muçulmano não parece dissociar aquele país e seu legado de outras realidades vividas na localidade ibérica, que dizem respeito não só aos muçulmanos do Alandalus ou aos católicos da Espanha, mas a todos os que habitaram aquele pedaço de chão, que viram crescerem e cairem outras tantas civilizações. Ao afetarem tanto a Espanha como a Alandalus, estas “Fachadas” de Salah Niazi revelam um modo de ser da civilização humana, cujo mecanismo parece repetir-se em outras partes e outros tempos deste nosso orbe. O poema, por isto mesmo, desconstrói o mito de uma Espanha de ocidentais e um Alandalus de orientais, de países idílicos, românticos, tolerantes. Invadir, conquistar, guerrear: nunca são atos inocentes; acarretam dor e oprimem a consciência.
As obras poéticas mais destacadas de Niazi são O pensador, de 1976, e Nós, de 1971. “Fachadas da Espanha” pode ser lido integralmente no livro Qamar Bagdad li Salah Niazi (La Luna de Bagdad), edição de Alfalfa Editorial, Madri, 2010.
FACHADAS DA ESPANHA
(excertos)
Tomei a Espanha como lugar deste poema, primeiramente devido à minha estreita relação com esse país, e em segundo lugar porque a Espanha foi o palco de sucessivas civilizações que ali medraram e feneceram. O leitor encontrará neste poema bosquejos gerais sobre o modo como as civilizações continentais (as das margens dos rios, as dos desertos, as das montanhas) sucumbiram diante das civilizações marinhas (os piratas). Hoje assistimos à civilização do espaço (ou da destruição espacial), representada pelo vento.
1. O Muçulmano
Inscrevo versículos no meu alfanje
e ando bêbado como o ar da manhã.
Este deus meu é único, então adorem
um deus que é todo fogo e todo perdão.
Como o sol, parei no pico de “Um Rochedo” e
clamei: “Ó mares, ó campos espalhados
vinde à oração
vinde à salvação”
A terra e seus arroios se extasiaram
e árvores quiseram erguer-se como asas.
Tirei o véu que tinha o meu rosto envolto
- você sabe o vento como ataca o rosto? [...]
Ergui a morada de Deus no exílio
de amor e de ambição eram seus ladrilhos.
Adornei-a com as letras de um versículo
pus ramo em ramo, ela cantou, exalou.
Plantei uma oliveira, mas quem foi
que fez dardos e flechas dessa madeira?
Sete séculos foram-se eu sem dormir
me desvela uma voz de fundo gemido.
Terá vindo comigo o deserto no barco?
E as belas escravas riem desse espanto [...]
É sangue de criança este em meu alfanje
ou de grávida assustada ao ver-lhe a lâmina?
Uma gota só que fosse derramada
seria um cataclisma, a paz devastada.
Lavei-a no mar, não ficou bem lavada e
noutra parte a cinta aparece manchada.
Embainho mesquita na minha cinta e
volto a andar abatido pela ferida.
– Olho para trás. Ninguém está chorando.
(Málaga, 20-03-1985)
2. Lorca e a Cigana
[...] Naquela noite Lorca não dormiu
cantou como uma brasa que se consome:
“Cigana, vento verde que se orvalha
na água e cobre a flor,
toma minhas costelas como guitarra
e toca nela a paixão e o amor,
os respingos de sangue das minhas bodas
levem ao mundo todo o delírio
e o libertem da prisão
as praças de touros hão de fazer-nos coro”
De manhã a cidade estava inflada por fumaça e algazarra.
Lorca olhou para o mar repleto de marines norte-americanos
cantando com vozes graves, como cordas a ponto de rebentar
olhou os pomares, devorados pelos hotéis e os seus turistas
... e um ônibus passou e o cobriu de pó.
Éramos turistas de todas as línguas no ônibus
o guia se virava em todas as línguas mas não sabia nenhuma
eram câmeras como escopetas prontas para disparar
dois alemães sem rir, como dois cientistas
um norte-americano sardento como um meio pássaro carpinteiro
gargarejando como se conversasse
com uma esposa meio surda
e velhas excitadas
como galinhas começando a manhã no galinheiro [...]
(Málaga, 24-03-1985)
3. Os Vikings¹
[...] Quando o mar acalmou rasgou a rede e gritou:
“Ó terra, sou um novo deus, meu emblema
são dois ossos cruzados e entre eles uma caveira
a morte silva de seus dentes
e dentro dela tudo é escuridão”.
Já se rendeu às montanhas, já
se rendeu aos beduínos do deserto
já buscou refúgio junto aos riachos serpenteantes
agora este é o meu tempo, sou o mar, as ondas meu exército
dito a lei e a ordem
sou eu quem hoje embala a morte, invado as suas praias – onde vai se esconder?
Carrego os meus piratas, cada casa que erga a minha bandeira
trago nas costas os mongóis do Norte, surdos, mudos,
não ouvem o choro, têm o olhar duro
recebem a súplica no machado.
Este é o inferno das neves.
Queimarei as civilizações anteriores.
Sou a língua dominante.
Até uma mãe foge, sufocada, de seus filhos
cadáveres, podres.
(Málaga, 27-03-1985)
¹ A pirataria escandinava se deu entre os séculos VIII e X. (nota do poeta)
4. Doentes da Escandinávia²
Como árvore que começou a secar
nem a terra, nem a água, nem o sol
é capaz de reviver a clorofila nela
até os ninhos deixam de ser feitos em árvore agonizante.
... Assim eles se deitam
nas areias das praias
abrem mão de outras necessidades
prolongam a trégua entre eles e a morte com remédios e sol
medicam-se com sol, despem-se, cobrem só as partes [...]
Entre eles e o passado há uma zona neutra
entre eles e o futuro há uma zona neutra
entre eles e o presente
há hospitais e linhas aéreas, e pílulas antes de cada refeição
doenças, nomeadas em latim, ainda em estudo nos microscópios
mas apesar de tudo são felizes em suas gaiolas
como elementos químicos não reagentes.
Bloqueiam o sol com óculos escuros, e os jornais
que não lhes causam nenhuma emoção
não deixam neles marcas, nem de tempo nem de lugar.
De noite, riem entre si
entopem suas vasos com vinho
e dormem sem tempo
dilatando a trégua.
(Málaga, 18-04-1985)
² Numerosos escandinavos –descendentes dos Vikings– acorrem atualmente às costas de Málaga, a maioria aposentados ou doentes quem buscam o sol. (nota do poeta)
5. Moça Europeia
O cozinheiro espanhol assa a carne
e lança olhadelas para ela
como um pássaro que bica grãos dispersos [...]
Ela olha para ele querendo um pedaço
a mão dela dança graciosa enquanto pega a taça de vinho
seus lábios intumescem, e ela muda de posição.
O cozinheiro vai servir a comida.
Passa entre as mesas como se fossem as veredas de um jardim.
Agora pega outro pedaço de carne crua
o sangue saltita, a carne inflama
ele olha para ela entre a fumaça, demoradamente
desta vez ele arma uma barraca para dois na praia
a mão dele dança enquanto vira a carne
ela olha para ele com um demorado interesse e uma feminilidade madura.
A barraca é pequena, o lampião é fraco
a areia causa cócegas nela, e ela ri com todo o corpo [...]
De manhã, a neblina cobre os dois.
Ela se alonga, depois fica com vontade de mais um pedaço.
(Málaga, 18-04-1985)
6. O Vento
Sou eu vosso Senhor.
Não quero outro para ocupar o trono.
E não há deus depois de mim.
Sou a própria lapidação.
Minha nuvem são meus cavalos e meu exército.
Sou o selo final.
Sou a hora derradeira.
Pairo sobre todas as fronteiras.
Estou oculto em todas as tumbas [...]
O sufi alardeia: “Deus está na minha aljuba”
mas eu estou até nas roupas íntimas, nos frascos de remédio
nas mais distantes ermidas escuras [...]
Deus sem lei, sou a doença, sou o contágio, minha misericórdia é a morte.
Sobre mim orbitam satélites escuros artificiais
e para espionar tenho olhos eletrônicos e antenas atômicas.
Eis a nova forma de assassínio. Quem inventa
uma arma de destruição domina.
Esta é a lei dos tempos [...]
Não há mais fronteiras seguras
os mapas são desenhos para crianças colorir.
Eu sou a fronteira.
Transporto as nuvens tóxicas de um estado a outro
levo as criaturas à letargia, à paralisia.
Nem o amante cuida mais de sua amada
nem o touro investe mais os seus chifres.
Por minha causa conflitos se dão
e em nome da contaminação irrompem-se as guerras.
Vejo países inteiros a emigrar
buscando respirar
nos confins mais distantes.
Hoje, o mar está proibido, e todos procuram por ilhas perdidas.
Amanhã a pátria estará proibida.
Máscaras serão alugadas, como se alugam vídeos.
Garrafas de oxigênio serão vendidas em prestação.
Viagens em grupo serão organizadas para outros lugares
num deserto esquecido
numa caverna alta.
Empresas aéreas descobrirão países sadios para respirar.
Vejo países inteiros a emigrar
aos desertos e às altas cavernas.
Primeiro, as viagens em grupo.
Baratas, em princípio.
Os paises se amontoarão como formigas no interior das altas cavernas.
E eu, o deus da contaminação
paro diante da porta
e não gosto de esperar.
(Londres, 01-04-1988)