O Sapato Voador!
A última visita surpresa do presidente americano George W. Bush ao Iraque, o que podia ser sua última tentativa de melhorar sua imagem antes de sair do cargo, não foi muito feliz. Durante a coletiva de imprensa em Bagdá, o presidente americano enfrentou o que ninguém esperava. O jornalista iraquiano Muntadhar al-Zaidi levantou e atirou seus sapatos em cima do presidente Bush, um atrás do outro, gritando “Este é o beijo de despedida!”. Mesmo sem atingi-lo, o incidente se tornou uma notícia internacional cujos significados podem falar bem mais pelo próprio ato.
Antes de qualquer coisa, e para melhor entendimento da situação, o sapato e sua sola são considerados muito ofensivos na cultura árabe, assim como na cultura iraquiana. Desta forma, no Iraque, descrever alguém como um sapato, ser filho de sapato ou então mostrar a sola do sapato na cara da pessoa é considerado um insulto. Imagine jogar o sapato em cima de alguém. Talvez o leitor ainda se lembre da cena daquele menino batendo na cabeça da estátua destruída de Saddam com um chinelo, depois da invasão americana. A história se repete, mas desta vez com aquele que se declarava o vitorioso ao acabar com o ex-regime iraquiano. O governo americano, que acreditava que o povo iraquiano receberia seu exército invasor com as flores, acabou tendo seu próprio presidente se abaixando para evitar os sapatos de um iraquiano indignado com a situação do seu país, com toda destruição da infra-estatura e milhares de mortos causados pela invasão. Isto pode mostrar o desconhecimento americano da complexidade sócio-cultural do país.
As notícias confirmam que o jornalista foi agredido na prisão e que sofreu vários danos corporais. Isto é algo lamentável, pois vários políticos no mundo já foram agredidos de várias formas por pessoas que por um motivo ou outro resolveram jogar algo para protestar. O presidente americano então não vai ser o primeiro nem o último político no mundo a receber o protesto numa forma extralingüística! Ao final ele acabou saboreando um pouco da sua democracia implantada no Iraque depois de muitos anos de ditadura. Da mesma forma, este incidente pode ser uma boa chance para o governo iraquiano mostrar sua credibilidade de ser um governo democrático preservando a integridade do jornalista dando a ele um julgamento justo. O grande desafio do governo iraquiano atual é mostrar sua seriedade, em criar um sistema democrático adequado para nossa cultura e povo e não simplesmente copiar o modelo americano.
O que impressiona, porém, é a capacidade de o governo americano atual absorver qualquer revolta e aproveitá-la para mostrar “a selvageria” do ato e marginalizar seu executor. Desse modo, jogar os sapatos não ajudaria o Iraque, seria apenas um ato individual. Daí, a mídia americana não demorou muito para publicar o arrependimento do jornalista, que resolveu descreveu seu ato como “muito feio” numa carta para o primeiro ministro iraquiano al-Maliki, pedindo seu perdão. De acordo com o Al-Maliki, as investigações mostram que o jornalista foi incentivado por um criminoso que está sendo investigado pela justiça iraquiana. Desta forma, o ato é enquadrado como uma ofensa individual de motivos suspeitos.
As reações sobre o acontecimento foram diversas, tanto no mundo árabe ou fora dele. No mundo árabe, e até na mídia em geral, as risadas não pararam por ver o senhor da guerra se abaixando frente aos sapatos voadores, pois, afinal, a dominação aérea no Iraque é da força americana! Piadas, poesias e até imagens caricaturescas não faltaram e se espalharam na internet. Uma delas conta que a partir de agora as pessoas serão obrigadas a tirar os sapatos antes de se encontrarem com o presidente americano! Até um milionário árabe se ofereceu para comprar os sapatos do episódio.
Por outro lado, há quem achou que o jornalista exagerou e que sua reação foi inadequada ou até “primitiva”, trocando a caneta por um sapato para expressar sua opinião! “Ele não representa o povo iraquiano”, disse o próprio presidente americano logo depois de incidente. Porém, se esse jornalista não fosse de respeito e de boa conduta não teria sido aceito para participar de uma entrevista como essa, num país com situação de segurança crítica como no caso do atual Iraque. Os críticos acreditam que o jornalista não ajudou seu país ao passar uma imagem errada do seu povo e sua profissão. O que eles ignoram são os motivos que levaram esse jornalista a se comportar dessa forma. Alguns escritores e pensadores árabes mostraram sua indignação àqueles que mostraram seu apoio ao ato, pois para eles o jornalista não teria a mesma coragem de fazer o mesmo contra o ex-presidente iraquiano durante a época da ditadura. Uma coisa certa, porém, os sapatos de al-Zaidi reuniram a voz de milhares que estão cansados das promessas do governo americano e suas justificativas.
O presidente americano George W. Bush, antes do incidente, havia declarado o arrependimento das informações da inteligência americana sobre as supostas armas de destruição em massa no Iraque. Mas quais são, afinal, os motivos reais desta invasão e daqueles que estão ganhando por detrás dela? A revolta de al-Zaidi é a revolta dos oprimidos e injustiçados, num tempo onde a democracia se tornou um novo produto, o do colonizador vendido para nosso povo que esconde em baixo da sua embalagem brilhante vários interesses. A interferência do governo americano transformou o Iraque em um país que vivia a ditadura em um país caótico. As promessas de reconstrução do Iraque foram também um fracasso. Este quadro de desconfiança e amargura só poderia mudar quando todos começassem a respeitar a cultura e a integridade do outro, ou então um dia os sapatos começarão novamente a voar!