Sobre o carnaval e nações
É sexta-feira de carnaval e em plena São Paulo os blocos passam na rua ao lado da minha casa e não consigo mais trabalhar. A interrupção me trouxe um questionamento: é a língua, religião e etnia que nós faz uma nação ou o fato de compartilharmos características culturais, ou os dois juntos? Eu explico o que esse texto faz aqui, em um site sobre cultura árabe: há mais de 20 países em que a língua árabe é oficial e, portanto, são países considerados árabes. Essas divisões fronteiriças foram, em sua esmagadora maioria, fruto da caneta das potências coloniais que fatiaram meio mundo a seu bel-prazer. Será que elas refletem verdadeiros países?
Um exemplo disso é o Iraque, uma criação da cabeça da diplomata britânica Gertrude Bell no início do século passado. Esse país de “araque” (aliás, essa palavra vem da bebida árabe feita de anis) colocou em um mesmo lugar curdos (povo de língua indo-européia) e árabes, que podem ser divididos por tradições religiosas, a maioria xiita e a outra sunita. O Iraque tem menos de um século de existência e, portanto, suponho que ainda não há um entrelaçamento tão grande entre curdos, obrigados a falar árabe, e seus compatriotas.
Outro caso interessante é o Marrocos. Ali, os árabes chegaram há muito tempo, junto com a expansão islâmica do século VIII. Havia uma população autóctone, os chamados berberes, que têm uma língua própria e costumes bastante ligados ao nomadismo. Hoje eles são 30% da população do país. Apesar de o árabe ser a língua oficial, o berbere ainda é falado por grande parte dos integrantes dessa etnia. Tanto árabes como berberes são muçulmanos sunitas. Outra coisa que talvez os una de alguma forma é a devoção à família real, que diz descender do profeta Muhammad.
O que une um marroquino a um iraquiano não é nem a língua falada, mas a escrita. Para quem não sabe, graças à influência berbere, o marroquino costuma engolir as vogais. E, portanto, fica um pouco difícil para um iraquiano entender. Já a escrita é totalmente igual, tendo como parâmetro o árabe corânico. Portanto, para alguns marroquinos e iraquianos, a língua e a seita islâmica são compartilhados, para outros, apenas a língua. Será que eles são realmente uma nação no sentido de povo?
A definição de nação do dicionário de Antonio Houaiss (um dos maiores filólogos do século passado, filho de imigrantes libaneses que aportaram no Brasil) é: “agrupamento político autônomo que ocupa território com limites definidos e cujos membros, ainda que não necessariamente com a mesma origem, língua, religião ou raça (como fazia crer um conceito mais antigo), respeitam instituições compartidas (leis, constituição, governo)”. Essa é a definição no sentido de país. Há outra: “comunidade de indivíduos que, dispersos em áreas geográficas e políticas diversas, estão unidos por identidade de origem, costumes, religião”. E é aí que me deparo com a maior de minhas dúvidas atuais: será que os árabes, além da língua e religião, têm hoje algo mais em comum?
Tenho a impressão de que há alguns fatores, como a simpatia (ou a retórica de alguns governos) pela autodeterminação palestina. Há o desconforto com o tratamento dado por europeus e americanos aos imigrantes árabes em suas terras. Há também o sabor amargo de olhar para trás e ver tantas glórias e hoje uma situação de pobreza e ignorância. Há ainda a insatisfação com esses governos ditatoriais que grassam em terras árabes. Sim, há um sentimento de que as coisas não andam bem, de que nos últimos anos o colonialismo e o imperialismo fizeram estragos enormes. E que os governos árabes não têm ajudado em nada.
É pena que eles não têm carnaval e um time de futebol como o nosso. A ilusão durante alguns dias talvez nos console, mas não nos afasta da indignação. Mas temos as urnas para soltar nossas frustrações. É pena também que o sistema democrático tenha várias imperfeições. Uma delas é que ainda não é possível votar para presidente do país que realmente manda no mundo e é responsável por decidir o que será feito com nações, países, etnias do resto do planeta. Tudo isso para dizer que acho que precisamos reinventar o sentido de nação. Ou talvez criar outro. Se pudéssemos criar a nação dos descontentes, dos sem voto, dos colonizados, dos oprimidos seria mais fácil entender por que o mundo está à beira do abismo.